A Espanha invertebrada

Pedi emprestado a José Ortega y Gasset, um dos principais expoentes da filosofia espa­nhola ou castelhana do início do século passado, o título do presente texto. E fi-lo, delibe­rada e conscientemente, não só por entender que o mesmo se adequa cabal­mente à reflexão que aqui pretendo deixar como, também e sobretudo, como uma simples e singela forma de homenagem a um dos textos mais clarividentes, quiçá mesmo prescientes, de Gasset. Naquele seu texto, recordemo-lo, o filósofo de Salamanca refletia, já em 1922, praticamente há um século, sobre o fenómeno da desestruturação e desintegração de Espanha, com base e a partir de uma das suas principais fragilidades – o seu plurinacionalismo. Decerto – o enquadramento de que Gasset parte é substancialmente diferente da situação dos nossos dias. A essência do diagnóstico, porém, perma­nece incólume e intocável.

Quando Gasset escreveu a sua obra, a Espanha das primeiras décadas do século XX defrontava-se com as ameaças que incidiam principalmente sobre as suas principais possessões ultramarinas. E o filósofo identificava tais ameaças com a plurinacionalidade dessas mesmas diferentes colónias que, gradualmente, pressionavam o centro da governação, num movimento que era oriundo das periferias para esse mesmo centro do poder. E, refletindo sobre a realidade peninsu­lar dessa Espanha do seu tempo, atreveu-se a prever que idêntico movimento acabaria por se replicar na própria Península, fruto dos regionalismos que, tendo na sua base diferentes nacionalismos, acabariam por conduzir, fatalmente, a fenómenos secessionistas. A desintegração ultramarina seria, assim, a antecipação ou prelúdio, o prenúncio da desintegra­ção peninsular espanhola.

Ora, nunca como hoje a profecia ou leitura feita por Ortega y Gasset esteve tão perto de se concretizar e de se tornar realidade. A situação que está a ocorrer na Catalu­nha ilustra-o na perfeição. E é sobre isso que devemos meditar.

O poder central de Madrid até pode vir a conseguir estancar todas as pressões nacionalistas e independentistas que se fazem sentir na Catalunha. Poderá, no limite, conseguir impor a força da legalidade constitucional e fazê-la prevalecer sobre o espírito nacionalista e as ânsias independentistas que, admitamo-lo, até podem ser atualmente minoritárias. Tudo isso é possível; tudo isso é provável. Nada disso garantirá, porém, a resolução de fundo para o problema que a Espanha tem. E esse problema é, justamente, a multiplicidade das suas nacionalidades. Como já tivemos oportunidade de escrever e de anotar, por diversas vezes, a Constituição espanhola parte e assenta num equívoco. Esse equívoco chama-se “nação espanhola”. Pelo simples e elementar facto de que é uma realidade virtual, que não existe no terreno. Que foi ficcionada pelos pais da Constituição de 1978; mas que nunca saiu do domínio da ficção. A Espanha não é uma nação; é um Estado multinacional ou plurinacional, onde convivem e confluem várias nações. Nações essas que, em regimes democráticos, mais tarde ou mais cedo aspirarão a organizar-se politicamente sob a forma de Estados. Essa é uma inevitabilidade história e uma aspiração a que, por regra, nenhuma nação renuncia ou foge. Por isso, quando este fenómeno é contrariado, nascem e emergem os nacionalismos perigosos, fonte de muitos dos problemas que a Europa tem conhecido. Mas o nacionalismo apenas se torna perigoso quando é reprimido ou combatido.

Este princípio, de resto, do chamado Estado nacional e de dar a cada nação a possibilidade de se organizar politicamente sob a forma de Estado, não é uma descoberta recente. Já no início do século XX o Presidente dos EUA Wilson o enunciava como uma das condições necessárias para evitar novos cataclismos como o da primeira guerra mundial. Não é por ser antigo que perdeu validade.

Voltando ao caso espanhol – aquilo a que assistimos na Catalunha pelos dias de hoje é à emergência do nacionalismo catalão em busca da sua organização política autónoma. O gene da nação está-lhe imanente e, por isso, esta é uma batalha condenada a não terminar. Pode ser derrotada, pode ser amordaçada, pode ser apoucada. Dificilmente será vencida.

Nesse quadro, melhor fariam os dirigentes de Madrid em buscar uma solução de longo prazo do que uma vitória de curto prazo. Para tal, porém, também se requereriam políticos com sentido de Estado, mais do que governantes com sentido eleitoral. E isso é coisa que também pela Espanha dos nossos dias não abunda.

Paradoxos europeus

Durante os chamados “anos de chumbo” da crise europeia que teve o seu início em 2008 – proveniente do outro lado do Atlântico, onde rebentou um ano antes – parte significativa da Europa entreteve-se a criticar e a censurar a atuação da chanceler alemã, Angela Merkel, responsabilizando-a por quase tudo o que de negativo afetava a Europa, mormente as duras medidas de austeridade que foram impostas a muitos Estados europeus, nomeadamente os Estados do sul da Europa, que eram os que mais se debatiam com a célebre questão das dívidas públicas quase insustentáveis. Merkel era, por esses dias, a personificação e o rosto da austeridade, a cara das duras medidas que se abatiam sobre parte muito significativa dos europeus e que se traduziram nos resgates financeiros que não pouparam a Grécia, a República da Irlanda, Portugal, Chipre e a Espanha (ainda que esta de forma encapotada, sob a forma de apoio exclusivo à banca).

Escassos anos volvidos, deixada para trás – assim se acredita! – a crise europeia, as eleições legislativas do passado fim de semana na Alemanha vieram pôr em destaque que Angela Merkel emergiu como um dos principais rostos não só da Alemanha como, também, do que sobra desta União Europeia que, por vezes se nos afigura caminhar em passo acelerado para o seu processo de desintegração.

Fruto de uma política profundamente humanista e personalista – que a levou a abrir as portas da Alemanha a mais de um milhão de refugiados da guerra síria que demandaram o continente europeu em busca apenas e só de serem felizes e realizarem os mais básicos dos direitos humanos, e que lhe custou alguns milhões de votos – sem igual nem paralelo na história europeia, sobretudo na história recente da Europa, e face ao descalabro eleitoral social-democrata e socialista, que obteve os seus piores resultados desde o fim da segunda guerra mundial, Merkel volveu-se na imagem e no rosto visível que concitou as atenções tanto de alemães quanto de europeus na esperança de conter e de travar o movimento ascensional de uma extrema-direita constituída em torno da Aliança para a Alemanha (AfD), mas desprovida de coerência doutrinária ou homogeneidade ideológica.

O objetivo apenas parcialmente foi alcançado. Merkel logrou obter o seu quarto sucesso eleitoral, ainda que sem alcançar a procurada maioria absoluta. E apesar da sua política humanista – ou por causa dela – das esperanças que nela depositou uma parte significativa da Europa, a AfD guindou-se ao terceiro lugar no sufrágio, obtendo 13% dos votos e fazendo entrar no Bundestag, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, deputados de uma extrema-direita antieuropeia, anti-imigração, xenófoba e profundamente racista. Na noite do passado domingo, parte significativa da Europa deu consigo a recordar alguns dos seus piores demónios internos, que julgava já enterrados definitivamente no baú das recordações e dos seus próprios horrores. A chanceler, se não foi capaz de travar esta ascensão ficou, todavia e paradoxalmente, ainda mais responsabilizada na construção de uma alternativa política de governação para o gigante económico europeu. Alternativa que, sabe-se já, não deverá contar com o apoio e a participação social-democrata: Martin Schulz foi claro na noite eleitoral – o destino do seu partido seria ir para a oposição no próximo quadriénio, reorganizando-se para o combate de daqui a quatro anos. À chanceler, por simples exclusão de partes, não restam mais de duas possibilidades para continuar a governar a Alemanha: ou partir para a legislatura com um governo minoritário, o que está longe da tradição política do Bundestag, ou tentar formar a inédita (a nível federal) e improvável “Coligação Jamaica”, associando os democratas-cristãos da CDU/CSU aos Verdes e aos liberais do FDP que regressaram ao Parlamento depois de quatro anos de ausência. A formação desta improvável coligação não deixará de constituir importante teste para a capacidade negociadora de Merkel – que tentará moderar e conciliar as exigências da sua esquerda (Verdes) e da sua direita (Liberais). Talvez o maior teste em termos de negociação política desde que ocupa a chancelaria.

Paradoxalmente, porém, não serão só os alemães que estarão expectantes e atentos. Também aos europeus, a todos nós cidadãos desta União Europeia sobrante, o que se vier a passar não nos será, de todo, indiferente. Pelo papel liderante que desempenha na União, a posição do governo de Berlim será determinante para muitos dos dossiers que estarão em cima da mesa de Bruxelas. Do Brexit à reforma institucional e ao aprofundamento da zona euro – a palavra final passará sempre pelo governo de Berlim. Também nessa medida o paradoxo se verifica – quem ontem era detestada pelas suas opções políticas, é vista hoje como a única capaz de sustentar as reformas que a União necessita e carece urgentemente. Reformas como aquelas que, por exemplo, Merkel já havia dado mostras de ter articulado com Macron. E que, agora, estão objetivamente postas em causa, sobretudo pela agenda europeia dos renovados liberais alemães. Outro paradoxo do passado domingo: mesmo sem ter ido a votos, Emmanuel Macron foi um dos grandes derrotados do sufrágio alemão. Os resultados saídos das urnas alemãs podem ter hipotecado o apoio alemão a parte importante da sua agenda política europeia.

Assim se vai fazendo e construindo a política europeia dos nossos dias: navegando à vista, sem uma linha de rumo definida, com avanços e recuos. E com paradoxos; muitos paradoxos – que só servem para a tornar cada mais indecifrável e menos previsível.

Nos cem dias de Macron

A passagem dos primeiros cem dias da presidência de Emmanuel Macron coincidiram, para quem esteve atento ao pormenor e ao detalhe, com a divulgação de sondagens e estu­ dos de opinião que reflectiram uma acentuada queda da popularidade e índice de aprova­ ção do Presidente da República junto do eleitorado francês. Pouco mais de três me­ ses depois de haver cilindrado e pulverizado todas as oposições, o centrista que apare­ ceu como demasiadamente liberal para muitos socialistas e o liberal que não dei­ xava de ter uma importante veia socialista para outros tantos republicanos, começou a sen­ tir na pele o inevitável choque de realidade que, mais tarde ou mais cedo, teria inevitavel­ mente de o atingir.

Curiosamente – e sem deixar de ser paradoxalmente – é no momento em que conhece as suas primeiras dificuldades políticas internas que Macron assume protagonismo pelas propos­ tas que avança no domínio e no plano europeu.

A defesa da criação de uma espécie de Fundo Monetário Europeu, a admissão da existên­ cia de um ministro das finanças da zona euro, o aprofundamento da própria união económica e monetária – constituem algumas das propostas que, no plano euro­ peu, Emmanuel Macron tem acolhido e sustentado.

Isto é – deliberadamente ou não, o Presidente francês tem tentado suprir as insuficiên­ cias denotadas no plano da política interna com a aposta deliberada nas questões euro­ peias. Dando a entender – e bem – que percebeu e compreendeu o papel que a França, conjunta­ mente com a Alemanha, pode vir a desempenhar no projecto europeu. Reacti­ vando o célebre “eixo Paris-Berlim”, personificado por Kohl e Mitterrand e, posterior­ mente, deixado cair em desuso por um Chirac cujos danos que infligiu à Europa – quando resol­ veu reavivar os fantasmas da Europa nova e da velha Europa – ainda estão por determi­ nar em toda a sua extensão e, seguidamente, enterrado por um Sarkozy que se subme­ teu em toda a linha e de forma indecorosa aos ditames da chanceler Merkel. Hollande, pelas razões óbvias e conhecidas, nem sequer pode ser chamado para estas con­ tas.

Esta ambição europeia de Macron – que já deixou indícios suficientes de não se preten­ der conformar com uma simples referência numa nota de rodapé da história do projeto euro­peu – pode vir a beneficiar, inequivocamente, da renovação do mandato de Merkel, que se anuncia como o cenário mais provável a sair das eleições legislativas germânicas do próximo dia 24.

Essas eleições, de resto, fecharão o ciclo das eleições legislativas e presidenciais ocorridas em 2017 que se revelarão determinantes para o futuro da União Europeia. Serão, tudo o indica, a consagração dos mandatos sucessivos de Angela Merkel – ainda que estando longe de poder vir a alcançar uma qualquer maioria absoluta que lhe permita vir a formar um governo unipartidário em Berlim. Eis-nos, pois, com enorme probabilidade, chegados à situação tida por paradoxal há poucos anos: Angela Merkel estará em vésperas de se volver na estadista de referência do projeto europeu. Quem o diria nos anos de chumbo da crise! Para a concretização deste estatuto, muito poderá Merkel vir a beneficiar da ambição francesa protagonizada por Macron. Este tem dito e feito propostas que a Alemanha tem gostado de escutar. Basta termos assistido ao debate eleitoral que a chanceler travou com o social-democrata Schulz para ficarmos a perceber os caminhos comuns que Paris e Berlim podem estar dispostos a trilhar. E, nessa medida, o futuro do projeto europeu poderá não ser tão sombrio como o foi o seu passado recente e o tem sido o seu longo presente. Oxalá não surjam, de onde menos se possa esperar, obstáculos ou entraves, endógenos ou exógenos, ao aprofundamento desse projeto. Por vezes, donde menos se espera, é donde vêm os entraves mais difíceis de ultrapassar.

E com isto estaremos reconduzidos à possível – e desejável! – reconstrução da velha aliança franco-alemã que, tendo estado na origem do projeto europeu, poderá voltar a estar na origem da sua refundação. É o seu alfa e será o seu ómega.

Uma nova normalidade

Os tempos mais recentes têm sido pródigos em notícias esparsas, aparentemente não relacionadas entre si, que nos dão conta da realização de “pequenos” crimes cometidos um pouco por toda a Europa, tendo por alvo quer agentes de forças de segurança, quer militares, quer simples cidadãos individuais e indefesos. Por regra, são incidentes com viaturas automóveis, atropelamentos, crimes cometidos com armas brancas proibidas, um ou outro com armas de fogo. Crimes que, nas sociedades ocidentais de há poucos anos se incluiriam na lista da pequena criminalidade que deveria ser tratada no âmbito da segurança pública.

Acontece que, a ligar todas estas ações criminosas, tem surgido quase sempre a sua reivindicação por parte do Daesh – que tanto reclama a autoria e paternidade dos grandes atentados como o de há duas semanas em Barcelona como, simultaneamente, reivindica os “pequenos” crimes praticados em Bruxelas, em Cambrils, em Estocolmo ou em Turku, por exemplo.

Significa isto que, hoje em dia, face à radicalização jiadista em curso em muitas comunidades muçulmanas, nenhum lugar, verdadeiramente nenhum lugar, do Ocidente se pode considerar um lugar seguro e um lugar onde estejamos a salvo dos que invocam Deus para cometerem toda a espécie de barbárie e de carnificina. E que, cúmulo dos cúmulos, justificam essa mesma barbárie com a invocação desse mesmo Deus. Paradoxos e contradições.

Mas isto significa, também, que não basta nem chega proclamar que não devemos deixar que os terroristas condicionem e determinem o nosso modo de vida e influam sobre as nossas decisões. É falso. É mentira. Por muito que nos custe termos de o admitir, os terroristas já condicionam e já determinam e já influem sobre o nosso modo de vida. E, no mínimo, ingénuo será todo aquele que programar qualquer alteração à sua rotina diária sem levar em consideração essa nova normalidade que se instalou nas nossas vidas e na vida de muitos dos nossos concidadãos europeus (sim, porque não nos esqueçamos que todos nós, europeus dos Estados da União, além de sermos cidadãos de cada um dos seus Estados, estamos unidos por uma cidadania comum que é a europeia; uma cidadania que tem a particularidade de, pela primeira vez, nos aparecer dissociada do conceito de nacionalidade).

É, pois, com uma nova normalidade que temos de nos confrontar.

Nessa perspetiva, o desafio que temos pela frente não pode nem deve ser a negação dessa mesma realidade que a todos se nos impõe e que a todos nos condiciona. Fazê-lo equivaleria a usar a tática da avestruz, enfiando a cabeça na areia para não vermos nem conhecermos dessa mesma realidade.

Pelo contrário – o desafio que temos por diante passa pela adoção de todas as medidas que se afigurem necessárias para reverter essa nova normalidade, não nos conformando com ela, mas partindo do princípio – inteligente – de que ela está aí e veio para ficar se nada fizermos para a alterar.

E no domínio das medidas a tomar, um princípio existe que se afigura inquestionável. Nenhum Estado, hoje em dia, tem a possibilidade de, por si só, isoladamente, combater este fenómeno do terrorismo hodierno. Nenhum Estado. Impõe-se, inelutavelmente, reforçar e aprofundar a cooperação internacional no combate ao terrorismo. E não deixar que este reforço e este aprofundamento se limite a nobres proclamações, de muito escasso efeito prático.

Se levarmos em consideração que, só no quadro dos Estados-membros da União Europeia existem mais de 50 serviços e autoridades com competências (nacionais ou regionais) para atuarem nos domínios da prevenção e combate ao terrorismo, percebemos com facilidade que a ineficácia terá de ser a regra e a norma. Talvez, por isso, começar por criar um serviço europeu, supranacional, de informações e inteligência possa ser o ponto de partida para um eficaz combate multidisciplinar a este fenómeno novo que já condiciona as nossas vidas e a nossa nova realidade. Dir-se-á: tal constituiria mais uma diminuição do que resta da soberania dos Estados. É verdade. Mas perante desafios transnacionais, a resposta não pode ser nacional. Será, provavelmente, o menor dos preços que teremos a pagar para garantia da nossa segurança.

Catalunha, 1 de outubro

Tem passado significativamente ao lado quer da nossa opinião pública quer da nossa opi­ nião publicada a verdadeira querela autonómica-constitucional que, por estes dias, se vai travando aqui ao lado, em Espanha, a propósito do referendo autonómico que a Generali­ tat da Catalunha convocou unilateralmente para o próximo dia 1 de outubro e que o governo central de Madrid tem contestado e ameaça impedir por todos os meios ao seu alcance. A pergunta que será colocada aos catalães é a seguinte: “Está de acordo com um Estado Independente sob a forma de República?” Se o “sim” vencer, a independência será declarada no parlamento catalão 48 horas depois do referendo. Se perder, serão convocadas novas eleições autonómicas. E se o Governo espanhol impedir a realização desse referendo, a secessão será proclamada de forma automática e imedi­ ata pelo mesmo parlamento.

Esta disputa em torno da marcação e eventual realização deste referendo autonómico e independentista tem dominado todo o debate político em Espanha e tem vindo em cres­ cendo de radicalização, com as duas partes envolvidas a recorrerem a todos os meios ao seu alcance para conseguir a realização do sufrágio ou para impedir a sua concretiza­ ção. A ponto de, em boa verdade, nenhuma delas ter, já, margem de recuo ou de negociação sob pena de perder irremediavelmente a face. E é esta radicalização já atingida no clima político da Catalunha que tornam o processo referendário em curso num momento potencialmente perigoso, tanto para o Estado espanhol como para a pró­ pria Catalunha.

No que à Catalunha diz respeito, a generalidade dos estudos sociológicos encarrega-se de demonstrar uma realidade iniludível: a Catalunha está partida em dois blocos pratica­ mente iguais. Significa isto que o referendo de 1 de outubro, a realizar-se e concretizar-se, ameaça assim tornar-se numa verdadeira batalha de catalães contra catalães. Com ou­ tra agravante: o próprio bloco nacionalista catalão está longe de possuir uma estru­ tura homogénea ou coerente, com uma agenda coesa e coerente. A coligação Juntos pelo Sim – formada pela Esquerda Republicana da Catalunha e o Partido Democrata Euro­ peu da Catalunha (PDeCAT, antiga Convergência) – e a CUP – Candidatura de Uni­ dade Popular – convergem no apoio parlamentar ao governo autonómico catalão, na de­ fesa da independência da Catalunha, mas não têm uma base doutrinária homogénea e comum.

Mas também do lado do bloco nacionalista espanhol – dominado pelo Partido Popular, pelo Partido Socialista e pelos Cidadãos – as divergências são profundas e assinaláveis. Une-os a recusa do referendo independentista, a negação da possibilidade de autodetermina­ ção de qualquer autonomia espanhola e pouco mais. Entre estas forma­ ções partidárias, porém, não se divisa uma coesão ou uma homogeneidade de visões so­ bre o futuro territorial daquilo que é a Espanha dos nossos dias. Nesse plano, aliás, es­ tará do lado do Partido Socialista espanhol – sobretudo muito por efeito da renovada lide­ rança de Pedro Sanchez – a abordagem doutrinária e dogmática mais consistente dessa mesma realidade da Espanha dos nossos dias, definindo-a como uma “Nação de Na­ ções”. É uma perspetiva e uma abordagem, cremos, muito mais consentânea com a reali­ dade do que aquela, por exemplo, que é sustentada pelo Partido Popular e por Mari­ ano Rajoy – que embarcam no mito e no sofisma que a Constituição espanhola consa­ gra, ao criar e referir-se a uma “nação espanhola”, realidade absolutamente mí­ tica, inexistente quer no plano dos princípios quer no domínio dos factos.

É assim, uma Catalunha profundamente dividida no quadro duma Espanha minada pelas suas contradições territoriais, que se apresta a ter uma palavra decisiva sobre o seu futuro no próximo dia 1 de outubro. Se o referendo se realizar, o dia 2 de outubro será uma incógnita tremenda. Com ondas de choque que não se limitarão a Espanha e que poderão fazer-se sentir em vários territórios da União Europeia que anseiam pelos momentos de, igualmente, se poderem expressar sobre as suas autodeterminações. Se a vontade – e a força – de Madrid se impuserem e ganharem o braço-de-ferro com Barcelona, as consequências também não se adivinham fáceis de antecipar, atendendo, sobretudo, à divisão reinante na Catalunha.
O dia 1 de outubro marcará, assim, o confronto do Estado (dotado do acervo de competências que lhe restaram) com a sua Autonomia (que busca disputar uma parcela significativa daquele acervo). Saber quem levará a melhor neste braço-de-ferro pode ser determinante para o futuro não só da Catalunha, não só de Espanha, mas também de muitos outros territórios europeus. Por isso, toda a atenção que lhe dediquemos, não será demais.

Dois ícones europeus.

Devido aos seus insondáveis desígnios, em pouco mais de duas semanas a Divina Providência levou-nos duas figuras de relevo na construção do projecto europeu de unificação da Europa do pós-segunda guerra mundial; duas personalidades de exceção nos respetivos países que foram, justamente, a Alemanha e a França, isto é, aqueles Estados cuja ligação o tal projecto europeu começou por afirmar que era preciso aprofundar como condição prévia à manutenção da paz no continente europeu, evitando a repetição de chacinas como aquelas que, nos 75 anos anteriores, por três vezes praticamente haviam destruído este nosso velho continente; dois exemplos de integridade cívica e moral que o foram e, decerto, continuarão a ser, não só para os seus contemporâneos como, também, para as gerações vindouras, que nas suas vidas não deixarão de identificar o exemplo a seguir e a imitar.

Helmut Kohl e Simone Veil deixaram-nos num curto intervalo de tempo, mas os exemplos das suas vidas perdurarão por muito e longo tempo para além da sua morte.

De Helmut Kohl já tudo ou quase tudo foi dito, escrito e recordado. Detenhamo-nos um pouco sobre Simone Veil, cuja vida e obra nunca tiveram a mesma repercussão e dimensão pública de Kohl, o que não significa que tenham tido menor importância.

Nascida a 13 de julho de 1927, em Nice, no seio de uma família judia e laica, foi vítima, na sua infância, dos horrores de Auschwitz. Aliás, toda a sua família foi deportada em 1944 para campos de concentração: o seu pai e o seu irmão, Jean, para a Lituânia, uma das irmãs para Ravensbruck, e ela, a sua mãe e uma segunda irmã foram deportadas para Auschwitz. Tornou-se advogada e subiu a pulso na vida política francesa, onde chegou a ser Ministra por várias vezes (com a eleição de Valéry Giscard d’Estaing para a Presidência da República francesa em 1974, foi nomeada Ministra da Saúde no governo liderado por Jacques Chirac, cargo que conservou nos governos seguintes de Raymond Barre até julho de 1979).

Após os primeiros passos do projecto europeu do pós-segunda guerra mundial, empenha-se activamente na causa do europeísmo militante. Tornou-se deputada ao Parlamento Europeu em 1979 presidindo a esta instituição entre 1979 e 1982 (foi a primeira mulher a presidir à Assembleia de Estrasburgo). Entre 1984 e 1989 liderou o Grupo Liberal e Democrático do mesmo Parlamento. Ficaram célebres as suas expressões em que afirmava ser uma optimista mas, desde 1945, já não ter ilusões. Ou aqueloutra onde afirmava que “o facto de ter feito a Europa reconciliou-me com o século XX”. Foi uma protagonista de excepção desta causa europeia, à qual emprestou a sua credibilidade e a sua honorabilidade.

Terminada a sua passagem pelas instituições europeias, voltou à vida política ativa na sua pátria – em Março de 1993, com Jacques Chirac na Presidência da República, foi nomeada Ministra de Estado, Ministra dos Assuntos Sociais e da Cidade no governo liderado por Édouard Balladur, cargo que desempenhou até Julho de 1995). Em 1998 foi nomeada membro do Conselho Constitucional de França onde permaneceu até 2007, ano em que terminou seu mandato, abandonando as suas funções públicas com o apoio à eleição presidencial de Nicolas Sarkozy.

A consagração do se percurso de vida, tanto no plano político como nos planos académico e cultural, é coroada em 2008 com a sua eleição para a Academia Francesa, tornando-se a sexagésima mulher a pertencer à instituição.

A sua voz tornou-se, gradualmente, uma das mais escutadas, em França e na Europa, sendo-lhe reconhecida, unanimemente, uma enorme integridade moral e uma profunda auctoritas. Poderíamos aplicar-lhe, na íntegra, a velha figura de retórica regularmente utilizada pelo Professor Adriano Moreira: a Europa acaba de perder uma daquelas raras vozes encantatórias, destinadas a falarem ao ouvido dos príncipes. E com isto a Europa acaba de ficar mais pobre; e todos nós com ela.

Ficámos, aliás, duplamente mais pobres – com a perda de Helmut Kohl e de Simone Veil são dois dos símbolos da construção do ideal europeu que nos deixam, não se vislumbrando, de momento, que possa ser o legatário dos seus exemplos, dos seus valores e das suas convicções. Ambos personificaram estadistas e valores europeus, coisa que, infelizmente, nos nossos dias, vai rareando e escasseando.

Louvemo-nos nestes dois exemplos que nos foram legados e tentemos apreender o essencial do que nos deixaram. Será a melhor forma de suprirmos a perda que a sua partida nos proporcionou.