Vítimas políticas da crise financeira

1. A Europa da União vive tempos difíceis; nunca conheceu uma crise como aquela que a afecta no momento que passa. Até agora tínhamos por hábito ensinar que as grandes crises do projecto europeu haviam ocorrido nos anos cinquenta – quandoa Françachumbou a criação da Comunidade Política Europeia e da Comunidade Europeia de Defesa – ou nos anos sessenta – quando essa mesma França se retirou das instituições comunitárias, na que ficou conhecida como a crise da «cadeira vazia». Comparados com a época que atraves­samos, não foram mais que simples entraves no projecto comunitário.
2. A verdadeira crise estava por surgir; coube-nos vivê-la e a ela assistir; e a sua causa é múltipla e difusa; as suas origens, endógenas mas também exógenas. Não valerá a pena determo-nos nas suas causas porque elas são por demais conhecidas, embora não possamos deixar de referir que, paradoxalmente, a UE acabou por ser vítima do seu próprio sucesso e do seu poder de atractivi­dade relativamente a um número cada vez maior de países. Centremo-nos nos seus efeitos e nas suas manifestações práticas.
3. A UE, sobretudo para fazer face aos desafios do pós-guerra, foi apos­tando na construção de um modelo social cada vez mais exigente para as contas públicas dos seus Estados-membros. A sociedade do bem-estar criou um modelo social como nunca antes se vira, assentando num conjunto de direitos sociais cada vez mais alargado, a par de uma desvalorização acentuada de importantes sectores da economia clássica, nomeadamente dos sectores primário e secundário. A tercia­rização da economia acompanhou o nascimento do modelo social europeu; com a particularidade de essa economia terciarizada não gerar os suficientes recursos para manter e sustentar as prestações sociais que progressivamente iam sendo conferidas ao abrigo desse mesmo Estado social.
4. Como consequência, lentamente, os Estados europeus foram-se endividando e ape­nas à custa da contracção de dívida pública conseguiram dar resposta às solici­tações que iam sendo criadas. Enquanto cada Estado manteve a sua moeda pró­pria e os mecanismos a elas associados, a situação estava ocultada atrás dessa mesma moeda e em situações-limite os Estados dispunham de mecanismos que permitiam iludir e adiar o problema.
5. A introdução de uma moeda única europeia, por paradoxal que possa parecer, ape­sar de ser vista como um inegável sucesso do projecto europeu, veio evidenciar o problema e pôr a nu as insuficiências e as debilidades do caminho que estava a ser seguido. Com a agravante de o projecto ter ficado pela metade – foi criada uma moeda única europeia mas não foram instituídos os mecanismos mínimos que por definição associam à existência de uma moeda ou de uma zona monetária perfeita: criou-se um Banco Central com poderes limitados, não se criou um tesouro europeu, não se avançou para um ver­dadeiro orçamento europeu, não se deram quaisquer passos no domínio fiscal, não se previram mecanismos de governação monetária a nível europeu. Em síntese – criou-se uma moeda comum a (neste momento) 17 Estados mas conferiu-se a sua defesa a 17 administrações nacionais. Visto à distância, o euro, com as condições e nas condições em que foi criado, tinha uma forte probabilidade de ser fonte de perturbação do projecto europeu. E a probabilidade acabou por se verificar.
6. As primeiras vítimas da inevitabilidade acabaram por ser os Estados que, aderindo à moeda europeia, maiores debilidades das suas economias revelavam. Eram os que mais vulneráveis se mostraram aos ataques especulativos duma realidade chamada «mercados»; realidade antiga mas que, fruto da globalização, surge com uma força redobrada e uma capacidade de influenciar decisões políticas como até então nunca se tinha visto. Os mercados aproveitaram-se das fragilidades da moeda única e acabaram por beneficiar de algo que não estava no programa e constituiu um bónus suplementar dado pela União Europeia e pelos seus Estados-Membros: a atávica incapacidade demonstrada pelas instituições europeias em reagir de forma pronta, enérgica e eficaz aos primeiros ataques especulativos de que a sua moeda comum foi alvo. Evidenciou-se, de forma incontornável, a menoridade das lideranças europeias que tragicamente coincidiram num mesmo momento. Por contraposição com as gerações de ontem, a quem a vivência das agruras da guerra conferiu indubitável capacidade de sonho, a geração de hoje que nos coube em sorte conhecer denotou insuficiências e falta de ambição em matéria europeia. Deixou que as preocupações económicas se sobrepusessem ao sonho e à ambição política. E por isso acabou por ser sacrificada à medida e ao ritmo que os mercados foram atacando e especulando com as dívidas dos diferentes Estados europeus.
7. Não é por acaso que, até hoje, as lideranças dos Estados que tiveram de ser acolher sob a protecção das instituições financeiras internacionais foram consumidas no fogo mais ou menos brando que não souberam atempadamente apagar. Brian Cowen na Irlanda, José Sócrates em Portugal e George Papandreou na Grécia, já foram substituídos. 3 Primeiros-Ministros de 3 Estados resgatados. Berlusconi, em Itália, não se pode dar por seguro na função e tem surgido cada vez mais enfraquecido na razão directa dos receios que incidem sobre a dívida italiana; e até José Luís Zapatero, pese embora pareça ter conseguido retirara Espanha da linha da frente dessas preocupações, entendeu por sábio e prudente não se apresentar à renovação do seu mandato, relembrando aos desatentos que saber escolher o momento da saída é sageza que não está ao alcance de todos. Resulta daqui que estamos face a factos em demasia para podermos remeter a sua justificação para o simples domínio da coincidência. A razão deve ter-se por mais profunda e de maior alcance.
8. Vivemos num Mundo e numa Europa onde o económico e o financeiro tendem a prevalecer inequivocamente sobre o político. Numa sociedade onde as lideranças políticas são derrubadas a partir dos insucessos económicos e financeiros ditados por poderes que não controlam nem dominam, poderes insindicáveis, destituídos de qualquer legitimidade política e democrática. É justamente por esta ser uma das premissas dos nossos dias que podemos afirmar que a condição primeira para que a Europa, e sobretudo a Europa da União, possa ultrapassar a crise em que se encontra mergulhada reside, precisamente, no necessário regresso ao político e à prevalência da política sobre a economia. Prevalecesse a política sobre a economia e, por certo, não teria a actual crise económica e financeira que atravessa a Europa produzido as «vítimas» que já produziu. As que já produziu e aquelas que ainda virá a produzir – pois não está dito nem escrito em lado algum que a saga já tenha terminado. Para mal da Europa e para nosso mal.