O pacto europeu para a imigração e o asilo

A agenda europeia da pretérita semana ficou marcada pela obtenção do acordo entre os Ministros do Interior dos Estados-Membros da União Europeia em torno do projecto de Pacto europeu para a imigração que deverá ser solenemente aprovado na próxima cimeira do Conselho Europeu. O documento, consensualizado em sede do Conselho de Ministros, teve necessidade de conciliar diferentes posições e diferentes enfoques que o tema suscita nos vários Estados-Membros da União. Convém, por isso, retornar à génese do tema para tentar perceber o que efectivamente está em causa com a obtenção do acordo político cujas bases foram seladas em Bruxelas.
Como afirmou há cerca de um ano o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, quando respondia a perguntas sobre temas europeus no Parlamento português, faz cada vez menos sentido que um projecto político como a União Europeia, congregando actualmente 27 Estados-Membros, e caracterizando-se, entre outras coisas, por estabelecer uma completa liberdade de circulação de pessoas dentro do seu espaço interno, com abolição das fronteiras internas, possua 27 políticas nacionais de imigração total e completamente diferentes, em que cada um dos Estados-Membros, livre e autonomamente, possa fixar as regras de acesso e permanência no seu território a cidadãos de países terceiros não comunitários. É que, pese embora a essência das políticas de imigração ser e permanecer responsabilidade de cada um dos Estados-Membros da União, as suas consequências eram e são susceptíveis de se reflectir em todos os demais Estados-Membros. Basta pensar que, uma vez autorizado a permanecer num qualquer Estado-Membro da União Europeia, qualquer cidadão de um Estado terceiro não comunitário, qualquer «imigrante», se poderá deslocar – e localizar – praticamente sem restrições, e sem possibilidades de controle, para qualquer outro Estado comunitário, beneficiando dos supracitados princípios da livre circulação de pessoas e da abolição das fronteiras internas. Percebe-se, assim, que apesar de estarmos ante uma questão política sensível que se coloca individualizadamente a cada uma das 27 administrações nacionais, estamos também perante um problema de inegável contorno supranacional e dimensão europeia.
Para se ter uma percepção clara da realidade que estamos a abordar, será sempre necessário ter presente que, em menos de 15 anos, o número de imigrantes legais que chegam anualmente à Europa triplicou, passando de 590 mil em 1994 para 1,8 milhões em 2007, segundo o Eurostat; e estes números não consideram os clandestinos que, segundo estimativas da Comissão Europeia, representam cerca de 25% (4,2 milhões de pessoas) do número de imigrantes legais – 21 milhões de estrangeiros – que entre 1994 e 2007 chegaram à União Europeia.
Ora, a presidência de turno francesa da União Europeia assumiu a responsabilidade e o encargo de tentar resolver o problema e inseriu-o no seu programa semestral e na sua agenda semestral de prioridades. Cedo, porém, concluiu pela dificuldade de encontrar um consenso político sobre temática assaz melindrosa e matéria tão controvertida. O lançamento da discussão permitiu evidenciar a multiplicidade de visões que emanam de diferentes concepções e diversas visões e valores presentes no debate político europeu. Foram chamados à discussão a tradição humanista e personalista europeia para justificar a maior liberdade e quase completa liberalização das regras relativas à imigração de cidadãos de Estados terceiros para Estados-Membros da União Europeia; foram evocadas e invocadas questões atinentes à segurança nacional dos Estados europeus para sustentar a necessidade de mais e maiores controles nacionais limitativos do acesso de imigrantes aos Estados europeus; em época de crise económica e financeira, não faltou mesmo quem recorresse a argumentos economicistas e à repercussão e influência da presença e da contribuição de imigrantes para os orçamentos nacionais para dosear o grau de flexibilidade que as legislações europeias em matéria de imigração deveriam possuir. E as temáticas do desemprego não foram alheias ao debate, não faltando quem recordasse o número de desempregados existentes na Europa para o relacionar com o número de imigrantes que a Europa já hoje acolhe. Se é verdade que o espírito europeu se afirma por ser plural, que é liberdade mas também conhece a opressão, que é direito sem deixar de ter sido força, que é razão mas que também já foi mito – poderemos, então, concluir que tais contradições, intrinsecamente europeias, estiveram por demais evidentes quando a Europa da União se predispôs a discutir a temática da imigração.
E foi sob uma bandeira securitária ou restritiva que o Presidente Sarkozy lançou o tema, em Junho passado, submetendo-o à discussão dos seus parceiros europeus. Logo aí as divergên-cias saltaram para cima da mesa das negociações – e a proposta francesa acabou por ser flexi-bilizada sob pena de não existir consenso entre os 27 e inexistir um compromisso político capaz de consubstanciar as necessárias regras de compromisso entre todos os Estados-Membros da União Europeia. Esse compromisso acabou por ser alcançado em torno da consagração de regras comuns para regular a imigração laboral, reforçar os controles nas fronteiras externas da União, facilitar o regresso aos países de origem de quem tenha conseguido entrar na Europa e harmonizar as exigências para os pedidos de asilo. A regularização de imigrantes clandestinos acabou por ser um dos centros da polémica, acabando por ser acolhido um princípio de regularização de imigrantes clandestinos por questões económicas.
A questão do Pacto sobre a Imigração, todavia, não pode nem deve ser percebida de uma forma isolada – deve ser tratada e enquadrada conjuntamente com dois outros documentos que recentemente a União Europeia se predispôs a adoptar – o chamado «blue card» e a directiva do retorno.
O «blue card» – inspirado no modelo do “green card” norte-americano – pretende ser mais um elemento para competir com os Estados Unidos na atracção de imigrantes altamente qualificados, constituindo, de facto, uma licença de trabalho e residência comum a todos os países da UE, ainda que sujeita a regras e critérios apertados.
A directiva do retorno, por seu turno, aprovada no passado mês de Junho pelo Parlamento Europeu, no meio de significativa polémica e controvérsia, veio uniformizar a forma como os 27 tratam a imigração ilegal, uniformizando a legislação da maioria dos países da União Europeia. Entre as várias medidas aprovadas, os Estados-Membros ficaram incumbidos de fornecer uma assistência jurídica gratuita aos imigrantes, conforme às disposições previstas pelas suas legislações ou às regras previstas pela legislação europeia para os refugiados, estabelecendo-se um prazo máximo durante o qual os imigrantes ilegais podem ficar detidos, que será de seis meses, ampliáveis a 18 em casos excepcionais.
Ora, todas estas medidas – (i) pacto para a imigração e asilo, (ii) blue card e (iii) directiva de retorno – devem ser percebidas e compreendidas de uma forma integrada e como tentativa da União Europeia de controlar os fluxos migratórios que demandam as suas fronteiras externas e cuja resposta exige que sejam levados em consideração uma multiplicidade de valores e de princípios, não raro contraditórios, mas integrantes, todos eles, do espírito e da alma europeia. Na certeza de que, para questões transnacionais, não existem respostas nacionais que se mostrem suficientemente aptas e adequadas à sua solução.

A UE, a Rússia e a crise no Cáucaso

A recente crise na geo-politicamente sensível região do Cáucaso constituiu mais uma prova – se necessário fosse encontrá-la – do quão impreparada se encontra ainda a Europa da União para lidar com as situações controvertidas que ameaçam surgir um pouco por todo o globo. A necessidade de convocar de urgência uma Cimeira extraordinária do Conselho Europeu para discutir uma matéria que seria suposto caber na competência da presidência (francesa) de turno da União, os resultados produzidos por essa mesma Cimeira e constantes do seu comunicado final, o apagamento da figura do Alto Representante Javier Solana (uma vez mais…) no desenrolar dos acontecimentos e, até, o prudente silêncio a que se remeteu a Comissão Europeia de Durão Barroso, atestam as dificuldades de Bruxelas em concertar e executar uma posição consensual sobre uma crise que não esperava e que afecta uma das regiões estratégicas mais importantes para o abastecimento energético de uma parte substancial dos Estados membros da União. Por outro lado, o crescente alargamento em que a União Europeia mergulhou ao longo das duas últimas décadas, trouxe à tona da água a multiplicidade de interesses divergentes e não raro contraditórios que, hoje em dia, tipificam o chamado interesse comum europeu, impedindo a estruturação de uma verdadeira política externa europeia. A evidência dessa multiplicidade ficou bem expressa não só no facto – inédito nos anais da União – de cinco chefes de Estado e de governo de Estados membros haverem marchado em Tiblissi em manifestação popular de apoio a Saakashvili como, igualmente, no diferente grau de exigência e tipo de reacção que diferentes Estados membros, sobretudo os da nova Europa, mais tributários e dependentes da respectiva relação com Washington, reclamaram que fosse adoptado relativamente a Moscovo.
Por outro lado, a posição recentemente adoptada por um número importante desses mesmos Estados em matéria de reconhecimento da independência do Kosovo também criou um precedente que, longe de facilitar, complicou de sobremaneira qualquer posição que viesse a ser tomada quanto ao fundo da questão da crise que eclodiu no Cáucaso. Indo ao cerne da questão, é-se forçado a reconhecer que nenhuma razão de facto ou de direito recomenda um tratamento diferenciado para a secessão da Ossétia do Sul em relação à Geórgia ou para a secessão do Kosovo relativamente à Sérvia. E a coerência – que é um valor que nem sempre está presente nas relações internacionais – obrigará a reconhecer que a postura Ocidental face ao Kosovo não deve ter sido alheia ao eclodir da conflitualidade no Cáucaso – a Geórgia desencadeou o conflito apressando-se a colocar um ponto final na ameaça secessionista e é impossível a Ossétia do Sul (e talvez também a Abkázia) não terem encarado a tergiversação ocidental face à integridade territorial da Sérvia como um convite ao aprofundamento da sua aspiração independentista. Incongruência, de resto, que, em sentido contrário, não deixou de ficar evidente na posição assumida por Moscovo – ao não reconhecer a independência do Kosovo mas ao fazê-lo relativamente às regiões secessionistas da Geórgia, Medved evidenciou que também de dois pesos e de duas medidas se fazem as relações internacionais modernas, ao mesmo tempo que deixava bem claros os fundamentos da nova política externa russa que, pelos vistos, na tradição da melhor escola soviética, não dispensa o seu cordão sanitário e de segurança feito de muitas das repúblicas outrora soviéticas a quem o novo poder russo não reconhece a necessária e suficiente autodeterminação para definirem os seus rumos políticos.
No cruzamento de todos estes interesses contraditórios e de aspirações potencialmente conflituantes poder-se-á encontrar o fundamento para mais uma (falta de) reacção europeia à crise que desta feita eclodiu no Cáucaso.
E se há ilações que a mesma crise nos permite retirar com razoável dose de certeza e de segurança, elas apontam no sentido de reconhecer que, (i) face aos instrumentos legais de que actualmente dispõe, a Europa da União não pode ambicionar a ter uma efectiva palavra no mundo em situações controvertidas e de crise, o que reclama com urgência renovada a aprovação de novas regras tais como as que se apresentam no Tratado de Lisboa ou em documento similar que vier a ser aprovado; e que (ii) nessas mesmas situações, sobretudo nas que se localizem na Europa, a Europa e o mundo têm que voltar a contar com o papel e o interesse estratégico de uma nova Rússia, cada vez mais oligárquica e cada vez menos democrática.

Os desafios de Sarkozy

Quando se aprestava para dar início à sua presidência rotativa e de turno da União Europeia, no passado dia 1 de Julho, o Presidente francês Nicolas Sarkozy sabia que tinha pela frente o enorme desafio de tentar reverter a situação resultante do referendo irlandês sobre o Tratado de Lisboa – na esteira do que havia sido acordado na última Cimeira do Conselho Europeu. Esse era, à partida, o grande desafio político com que a França se defrontava – numa cruel ironia da história que depositava nas mãos francesas a resolução de uma crise institucional que teve o seu primeiro momento mais visível no exacto momento em que essa mesma França recusou, também por referendo popular, ratificar o célebre Tratado Constitucional europeu.
Não estaria, seguramente, era na mente do Presidente Sarkozy o «efeito dominó» que a votação de Dublin provocou no exacto dia em que a Presidência da União mudava: (i) o Presidente polaco Lech Kaczynski, anunciou que não assinaria o Tratado de Lisboa, sustentando que ele está agora “sem substância” depois da recusa dos eleitores irlandeses a ratificá-lo; (ii) o Presidente da República Checa, Vaclav Klaus deu sinais de poder seguir idêntico caminho, demonstrando compreensão para com a atitude do seu homólogo polaco; e, como se tudo não bastasse, (iii) o Presidente da República da Alemanha, Horst Köhler, anunciou que não assinaria a lei de ratificação do mesmo Tratado sem que o Tribunal Constitucional alemão se pronunciasse sobre a sua compatibilidade com a lei fundamental de Berlim, nomeadamente em matéria de salvaguarda de competências do Bundestag. Pior que tudo – em lado algum está escrito que este movimento súbito de reserva ao Tratado de Lisboa se fique por aqui e que não venham a ser mais os líderes europeus que venham pôr em causa o documento que assinaram, que o mesmo é dizer, a palavra que deram. O que demonstra à saciedade que não foi preciso chamar os cidadãos a pronunciarem-se sobre o Tratado de Lisboa para que o seu êxito e sucesso fosse posto em causa e a sua entrada em vigor fosse ameaçada e, pelo menos, desde já protelada para lá dos inícios de 2009.
Tudo visto, os desafios que se passaram a deparar a Sarkozy aumentaram exponencialmente e com consequências não despiciendas. Por um lado, não deixarão de constituir entrave sério à plena concretização da agenda que Paris havia fixado para a sua presidência; por outro lado, obrigarão essa mesma presidência a recentrar as prioridades do seu semestre europeu, voltando a dirigir o centro da sua atenção menos para as políticas concretas por que a União e os europeus anseiam para enfrentar a difícil conjuntura internacional do tempo que passa e mais para as questões institucionais, isto é, para os assuntos que, dizendo respeito essencialmente à repartição de poder entre os Estados-Membros e à forma de funcionamento das instituições europeias, são os temas que menos dizem aos cidadãos e à cidadania e cuja prevalência na agenda pública europeia para mais não serve do que para afastar os europeus da Europa da União, os cidadãos das instituições, inquinando – quiçá definitivamente – o rumo do processo de integração europeia.
Arriscando-se, este, a ser mais um «semestre perdido» em matéria de aprofundamento das políticas comunitárias que mais de perto tocam a atenção e os interesses dos cidadãos em concreto, impõe-se a necessária reflexão sobre a capacidade que a União Europeia ainda terá de reverter uma série de sucessivos insucessos que vêm caracterizando os anos mais recentes da história europeia. A reflexão é tão mais premente quanto são sabidas e conhecidas as necessidades da conjuntura que aconselham o reforço e o fortalecimento da cooperação internacional como forma cada vez mais recomendada para fazer face e frente aos desafios com que a globalização nos interpela a cada dia que passa. E nessa perspectiva a Europa – sobretudo a Europa da União – não se livra de ser constante e permanentemente interpelada pelo Mundo. Por muito furtivas que sejam as suas políticas, por muito que as suas questões internas e de repartição de poder continuem a predominar na sua agenda política, o Mundo continuará a interpelar a Europa. E a esperar dela as respostas que, teimosamente, ela teima em não lhe dar. Reverter este estado de coisas, ou pelo menos ajudar a revertê-lo, é também, inquestionavelmente, um dos desafios de Nicolas Sarkozy. E o facto de ser dos menos falados não significa que seja o menos importante.

E depois da Irlanda?

Veio de Dublin o último desafio lançado à UE, com a recusa de ratificação do Tratado de Lisboa resultante do veredicto popular – numa União que teimou em promover a diferença entre os seus cidadãos ao conferir apenas aos irlandeses (e por imperativo constitucional) um direito de pronúncia sobre um seu texto de natureza estruturante e fundamental. Por muito que os chefes de Estado e de governo hajam acordado em cercear esse direito a todos os demais cidadãos europeus, os irlandeses resolveram tomar nas suas mãos o futuro institucional da Europa e interpretar aquele que supostamente seria o sentido de voto de muitos outros cidadãos se os mesmos tivessem tido idêntica possibilidade de se pronunciar sobre o Tratado porreiro. E assim criaram nova encruzilhada para a qual, reconhecidamente, a UE não estava preparada. Não só inexistia qualquer «Plano B» como o próprio Conselho Europeu acabou por demonstrar o quão impreparadas estavam as instituições europeias para um cenário como o que acabou por se verificar. Impõe-se, assim, por antecipação e com o risco que tal exercício comporta, tentar divisar quais os caminhos possíveis que a União poderá trilhar no pressuposto óbvio de que qualquer Tratado, para entrar em vigor, por muito porreiro que seja, terá sempre de ser aprovado por todos os seus 27 Estados Membros.
A primeira via passará pela repetição do referendo irlandês sem promover qualquer alteração ao Tratado de Lisboa. Será a solução mais fácil e mais cómoda para a UE; não se afigura, todavia, muito viável pelo ambiente político existente e também porque teria dois graves inconvenientes: acentuaria a desigualdade entre os Estados-Membros da UE porquanto idêntica repetição não foi imposta à França e à Holanda quando ambas recusaram a Constituição europeia; e desqualificaria definitivamente o instituto do referendo em matérias europeias, dado que faria passar a ideia de que tais referendos só seriam válidos se dessem um determinado resultado.
O segundo caminho possível passará pela abertura de negociações com a República da Irlanda visando obter alterações ao Tratado de Lisboa por forma a que o Tratado que possa voltar a ser sujeito a referendo naquele país seja materialmente diferente do que já foi referendado. Tratar-se-á, porém, de uma solução de difícil concretização – o Tratado foi o mínimo denominador comum a que chegaram os Estados-Membros da UE, para o qual todos tiveram de fazer cedências. Reabrir as negociações em benefício de um único Estado poderá equivaler a abrir uma caixa de Pandora donde não se sabe o que poderá sair, havendo a possibilidade de desconstruir equilíbrios alcançados. Acresce que, se o Tratado for – ainda que ligeiramente – alterado, que acontecerá às ratificações já promovidas em 18 Estados Membros? As mesmas teriam incidido sobre um Tratado que já não existia, que teria sido alterado. A lógica jurídica mandaria repetir tais ratificações.
O terceiro e mais radical caminho passará pela assunção da «morte jurídica» do Tratado de Lisboa, por falta de verificação de uma condição indispensável à sua produção de efeitos jurídicos: a ratificação por todos os Estados signatários – com reabertura de uma nova CIG visando rever e alterar os Tratados em vigor. Tratar-se-á, obviamente, de uma solução extrema e radical que equivalerá a mais uma perda de tempo irrecuperável por parte da UE que daria mostras de permanecer refém de si própria e dos seus Estados-Membros, enredada em questões institucionais e de repartição de poder enquanto «lá fora» o Mundo passa por ela a correr, e ela se mostraria incapaz de dar resposta às questões com que esse mesmo Mundo a interpela de forma cada vez mais intensa.
Ao contrário de qualquer um dos caminhos citados, o último Conselho Europeu, sem o assumir claramente, parece ter optado por «decretar» uma nova pausa para reflexão, à semelhança do que ocorreu após os referendos francês e holandês, a par, da continuação dos processos de ratificação por parte dos Estados Membros que ainda não ratificaram o Tratado. Em boa verdade não se terá tratado de uma solução para o problema em questão mas de um adiamento de uma solução. A finalidade, porém, percebe-se: isolar politicamente a República da Irlanda por forma a que se chegue a um momento em que apenas falte a ratificação dos irlandeses, eventualmente em vista da repetição do referendo. Acresce, todavia, uma dificuldade eventual suplementar: não está dito nem escrito que outros Estados não possam querer aproveitar o sucedido na República da Irlanda para travar os seus próprios processos de ratificação interna e com isso questionar definitivamente o Tratado de Lisboa. À esquerda e à direita não faltaria quem rejubilasse com tal cenário. Está por demonstrar, todavia, que fosse essa a melhor solução para o projecto europeu.

Kosovo: independência ou novas dependências?

Confirmando-se o que já era dado como adquirido de há uns tempos a esta parte, o Parlamento regional da província sérvia do Kosovo declarou unilateralmente a sua independência da Sérvia no passado domingo, concretizando o movimento de secessão já anunciado. Por artes mágicas ainda não totalmente esclarecidas, parte significativa do Ocidente apresta-se a reconhecer de imediato o novo Estado, baseado unicamente na sua homogeneidade étnica, enfileirando atrás dos EUA que de há muito fizeram dessa uma sua bandeira. Trata-se, seguramente, de uma postura temerária e de resultados e consequências que no momento se afiguram absolutamente imprevisíveis.
Desde logo por se estar ante um Estado que, nas condições actuais, não tem qualquer possibilidade de se auto-sustentar ou de afirmar a sua viabilidade. Exemplo perfeito de um Estado exíguo, seguramente incapaz de cumprir as missões e tarefas básicas inerentes à soberania ora proclamada.
Por outro lado, abre-se um precedente grave que não se imagina onde poderá parar e que consequências poderá ter em vários outros locais do mundo e da própria Europa. Reparemos que, nas horas imediatamente subsequentes à referida declaração de independência, as autoridades do enclave arménio de Nagorno Karabakh, cuja soberania tem sido disputada entre a Arménia e o Azerbeijão desde 1988, reafirmaram a sua vontade de independência e reconhecimento internacional; e a Abkházia e a Ossétia do Sul, duas regiões separatistas da Geórgia, anunciaram de imediato que pedirão à Rússia e à ONU que reconheçam a respectiva independência.
Como se tudo isto não bastasse, o novo Estado, de independente, pouco ou nada terá. Pelo contrário, conhecerá apenas novas dependências – em vez de depender única e exclusivamente da Sérvia, será defendido militarmente pela NATO e sustentado economicamente pela União Europeia. União Europeia que, assumindo a «tutela» informal do Estado nascente, criará dentro de si clivagens indesejáveis – entre as grandes potências que se aprestarão a seguir o exemplo norte-americano e reconhecerão o novo Estado, e os Estados-Membros da União que, por conhecerem situações de minorias étnicas dentro dos seus territórios, dificilmente reconhecerão o Estado emergente. A Espanha, a Bulgária, a Eslováquia, a Roménia, mas sobretudo a Grécia e Chipre, dificilmente poderão reconhecer o novo Kosovo independente sem, com isso, abrirem portas a reivindicações secessionistas dentro das suas próprias fronteiras.
Para além de tudo isto, os últimos acontecimentos contribuirão seguramente para acentuar o distanciamento entre o Ocidente e a Rússia, «empurrando» a Sérvia para os braços da Rússia quando só haveria a ganhar em cativá-la para o campo ocidental. A Rússia, de resto, desempenha nesta nova situação geopolítica dos Balcãs um papel paradoxal e, não raro, contraditório: a sua solidariedade com a Sérvia leva-a a recusar a proclamação unilateral das autoridades de Pristina – certamente lembrando-se que, dentro do seu próprio território, podem surgir idênticas aspirações independentistas fundadas unicamente na homogeneidade étnica; mas, por outro lado, a defesa dos seus interesses estratégicos e o seu desejo de recuperar influência política perdida aconselham-na a estimular movimentos secessionistas em Estados da ex-URSS onde se constata a existência de minorias russas. A Geórgia encontra-se na primeira linha da atenção de Moscovo, facto a que não deverá ser estranho o desejo de Tbilissi de aderir a curto prazo à NATO.
Mas toda esta convulsão potencial poderá também ter outros efeitos indesejáveis a partir do momento em que potenciar novas ambições territoriais da Albânia que não deixará de sonhar com o restabelecimento da velha e grande Albânia. E esse objectivo, a existir, terá o novo Kosovo independente como primeira etapa e base de lançamento de eventuais aventuras expansionistas que colocarão o islamismo no centro da Europa.
Em síntese – se é verdade que o surgimento de um novo Estado europeu poderia ser, em tese geral, momento de júbilo para o velho continente, a forma precipitada como ocorreu a independência proclamada em Pristina poderá contribuir para levar a instabilidade aos Balcãs, o que roça a imprudência e o completo desconhecimento dos ensinamentos da História.
E tudo – em nome de quê? Ainda ninguém no-lo explicou cabalmente.
Para terminar, crê-se estarmos ante um tema e uma matéria a merecerem, inquestionavelmente, um esclarecimento público por parte do governo português, em sede parlamentar, fundamentando e justificando a atitude que vier a ser tomada relativamente ao reconhecimento do novo Estado. Não basta dizer que Portugal conforma a sua posição com aquela que for a posição [maioritária] da União Europeia. É pouco.

Balanço de uma presidência

1. No momento em que termina oficialmente aquela que, tudo o indica, terá sido a última presidência rotativa ou de turno da União Europeia desempenhada por Portugal, já se poderá fazer um balanço global dos seis meses em que competiu ao nosso país liderar a Europa da União, presidindo ao respectivo Conselho de Ministros e ao próprio Conselho Europeu.
Ora, num clima de balanço global – e pese embora a visibilidade mediática de franjas mais ou menos radicais da nossa opinião publicada, de tendência isolacionista ou neo-soberanista, que ora são a favor da Europa dos fundos como se manifestam contra a Europa política conforme se lhes afigura mais vantajoso para o debate político interno – será indispensável reconhecer que a referida presidência se pautou por um inquestionável sucesso e por um assinalável êxito. Tanto para Portugal como para a própria União Europeia. O país prestigiou-se no contexto europeu e a União Europeia fortaleceu-se internamente e projectou-se no contexto internacional. São evidências que são reconhecidas um pouco por todo o lado e nos mais diversos quadrantes e que nem a congénita tendência para uma certa auto-flagelação nacional ou ecos mediáticos das referidas franjas devem impedir que sejam observadas e registadas. Em termos muito objectivos, foram seis meses de inequívocos sucessos no âmbito das questões internas da União; de um reforço da componente da política externa europeia; e de alguma sorte – sempre necessária na política como em tudo na vida – com dossiers que, ao não serem despoletados, impediram que o sucesso da presidência portuguesa fosse ofuscado.
Reconhecer este sucesso e este êxito, porém, leva necessariamente a nele envolver e englobar o próprio Presidente da Comissão Europeia. Por variadíssimas vezes e nas mais diversas circunstâncias, qualquer observador atento terá tido oportunidade de se aperceber da sintonia patenteada entre Durão Barroso e José Sócrates – na complementaridade das respectivas declarações, na conjugação das respectivas agendas, na sintonia de diferentes iniciativas, mas também no estrito respeito pelas respectivas esferas de competências. Mas sempre falando a uma só voz e na língua de Camões.
2. As questões internas da União Europeia deverão, por motivos óbvios, assumir um lugar de destaque quando se procura fazer um balanço sério da última presidência portuguesa da União. E, dentro dessas questões internas, a resolução da crise institucional em que a União se achava mergulhada há mais de uma década merece o maior relevo – mas não deve ser a única a ser referenciada.
De facto, a assinatura do Tratado de Lisboa não significa apenas mais uma reforma aos textos constitucionais e fundacionais da União Europeia. Vai muito para além disso na justa medida em que – espera-se! – veio colocar um ponto final numa situação de impasse político e quase paralisação institucional que eram evidentes e patentes desde o momento em que, reencontrando-se a Europa consigo mesma após a queda do Muro de Berlim, as antigas democracias populares do centro e leste da Europa começaram a bater à porta da União demandando a sua adesão ao projecto comunitário. Decerto – uma parte significativa do mérito e dos créditos pelo entendimento a que se chegou em Lisboa nos finais de Outubro de 2007 não podem deixar de ser imputados à Senhora Merkel e à anterior presidência alemã que, ao delimitarem com extrema precisão e rigor o âmbito do mandato conferido à presidência portuguesa, facilitaram de sobremaneira a vida a José Sócrates e à sua equipa negocial. Esta teve, porém, o condão de não estragar o trabalho feito por Berlim, a que somou a necessária arte e o indispensável engenho de lograr os últimos e por isso sempre mais difíceis consensos sobre as matérias finais que poderiam fazer perigar o acordo previamente desenhado. Doravante, e sendo o Tratado de Lisboa ratificado por todos os Estados-membros da União, esta fica dotada de um aparelho institucional e de mecanismos decisórios que a habilitarão por muitos anos a agir e actuar num mundo cada vez mais globalizado e cada vez mais tributário da actuação dos grandes espaços regionais institucionalizados.
Outrotanto se diga, aliás, da concretização da ampliação do espaço Schengen a mais nove Estados-membros da União – todos os da primeira fase do quinto alargamento, com excepção de Chipre – levando e alargando o princípio da supressão das barreiras à livre circulação de pessoas a 24 dos 27 Estados da Europa comunitária, naquela que é uma das políticas europeias com maior visibilidade e, por isso mesmo, mais sentida por parte dos mais de 400 milhões de cidadãos europeus que dela podem usufruir. Com a característica adicional de, fruto da sua atractividade, estarmos no domínio de uma política europeia que, não reunindo todos os Estados-membros da União é, todavia, já compartilhada por outros Estados europeus não membros dessa mesma União. O que, cremos, diz bem e diz muito da sua bondade intrínseca e das vantagens que propicia aos cidadãos europeus que dela podem beneficiar.
No domínio das políticas sectoriais, aliás, outras duas há que não podem deixar de merecer uma referência especial. Em primeiro lugar, que mais não seja pela específica responsabilidade nacional em ter contribuído para o começo da sua estruturação e edificação, a política marítima europeia. Sendo, de entre os Estados da União, um dos que dispõe de maior zona económica marítima e um dos que projecta a sua soberania sobre maior área marítima, percebe-se que tenha constado da agenda das prioridades da presidência portuguesa e que tenha começado a ser estruturada sob a égide dessa mesma presidência. Em segundo lugar, pela sua importância estratégica para a afirmação externa da própria União Europeia, o acordo alcançado sobre o financiamento do sistema europeu de navegação por satélite – o projecto Galileu – permitirá, finalmente, arrancar com a sua efectiva construção depois de longos e morosos atrasos que vinham impedindo sistematicamente a concretização da iniciativa.
Por fim, o acordo orçamental para o exercício financeiro de 2008 da União, alcançado de forma célere e pacífica, longe das tempestades conturbadas de outras eras e de outras presidências, deverá igualmente ser lavado a crédito da presidência portuguesa.
3. Porém, para além do acordo sobre o Tratado de Lisboa, terá sido eventualmente no plano da política externa da União que o esforço e visibilidade da presidência maior repercussão alcançou. Traduzido, essencialmente, na realização de uma série de cimeiras bilaterais com os principais parceiros económicos, actuais e emergentes, da Europa da União, assistiu-se a um programa intenso de diplomacia que contribuiu indiscutivelmente para a projecção e reforço da imagem da União no Mundo. Decerto – a maior parte dessas Cimeiras (casos da Rússia, Ucrânia, China, Índia, por exemplo) decorreram por força do próprio calendário e ter-se-iam realizado qualquer que fosse o Estado que presidisse à União no segundo semestre de 2007. O mesmo não se diga, porém, dos casos das Cimeiras com o Brasil e com a União Africana – as quais constituíram opções políticas assumidas pela presidência, num exercício que consistiu em levar para o palco comunitário zonas e áreas do globo que, de há muitos anos a esta parte, vêm constituindo opções estratégicas da própria política externa portuguesa (o Brasil e a África). Os respectivos resultados, de umas e de outras, apenas poderão ser aferidos a médio prazo. O simples facto de se terem realizado, porém, não pode deixar de ser creditado à actuação portuguesa – confirmando plenamente uma das principais regras não escritas da prática comunitária: a da especial vocação de Estados de pequena e média dimensão para exercerem com sucesso e êxito as tarefas atinentes às presidências rotativas e de turno da União Europeia. Foi assim por diversas vezes no passado, voltou a ser assim no último semestre de 2007.
4. Mas como a política – e sobretudo a política europeia e comunitária – não obedece a regras deterministas e pré-definidas, existe sempre uma certa margem de acaso que, por isso mesmo, não pode ser ignorada. Neste caso da presidência portuguesa da União Europeia, quis o acaso e o destino que dois dos mais complexos e problemáticos dossiers que pairam sobre as instituições comunitárias não conhecessem desenvolvimentos susceptíveis de atrapalhar e ofuscar o trabalho da presidência. Referimo-nos, objectivamente, à situação do Kosovo e da Turquia.
Ao terem protelado por algum tempo a declaração unilateral de independência da Sérvia, os separatistas kosovares adiaram para futura presidência europeia um dos mais complexos temas com que a Europa da União se terá de defrontar nos tempos mais próximos. Não só pela já anunciada divisão que provocará no seio dos 27 – entre os Estados que se apressarão a seguir Washington reconhecendo o novo Estado kosovar e aqueles que demonstrarão a sua solidariedade à Sérvia não procedendo a tal reconhecimento – como pelo próprio clima de instabilidade que poderá promover em toda a região dos Balcãs, com contornos que ainda mal se podem imaginar e com repercussões inevitáveis noutras latitudes e noutros conflitos intra-estaduais latentes em alguns Estados-Membros da União. Por alguma razão, aliás, a futura presidência eslovena já anunciou ser essa a questão fulcral e central que irá ocupar a sua própria agenda para a União.
Por fim, a sempre candente e controversa questão turca. Apesar de se terem iniciado conversações sobre dois novos capítulos do processo negocial, este foi, objectivamente, um dossier esquecido pela presidência portuguesa e, nessa medida e nessa matéria, um semestre pautado pela acalmia e pela ausência de polémicas. Apenas a eleição de Sarkozy em França, confesso adversário de um eventual alargamento da União à Turquia, poderia ter trazido elementos de controvérsia e de discussão. Porém, as prioridades francesas em matéria de política externa no último semestre de 2007 apontaram para outras latitudes e para outras direcções. José Sócrates, agradecido, terá registado e, seguramente, apreciado.
Agora, terminada a função europeia, é tempo do mesmo Sócrates voltar às tarefas quotidianas da governação. E tentar exorcizar a regra não escrita de que uma boa presidência europeia nunca dá bons resultados eleitorais. Que o digam Cavaco Silva e António Guterres, que tiveram êxitos em presidências europeias e perderam as eleições legislativas seguintes. Um pouco à semelhança de Winston Churchill – que ganhou a guerra e perdeu as eleições….