Sinais que vêm de França
No passado fim de semana realizou-se a primeira volta das eleições municipais em França. Como quaisquer outras eleições locais, em qualquer parte do mundo, podem-se-lhes aplicar aquele velho aforismo a que os políticos tanto gostam de recorrer, sobretudo relativamente às sondagens, que pretende dizer tudo e, em boa verdade, não diz nada: “são eleições que valem o que valem”. Pois esta primeira volta das eleições autárquicas francesas também valem o que valem. Em bom rigor – valem aquilo que nós queiramos que elas valham, dizem aquilo que nós queiramos que elas digam. In casu, creio que este ato eleitoral nos disse três coisas importantes.
A primeira – que os franceses, em número nunca antes atingido ou atingido, numa taxa considerada histórica pelo também histórico Le Monde, virou as costas ao processo eleitoral e resolveu ficar em casa. Foram cerca de 40% dos franceses que, pura e simplesmente, se recusou a participar neste ato eleitoral. É grave e deve fazer meditar – porque se as eleições constituem a pedra angular da própria democracia, a ausência de participação inquina o processo eleitoral e, assim sendo, questiona e fragiliza o próprio regime democrático.
A segunda – profundamente insatisfeitos e defraudados com uma governação esperançosa em que depositaram muitas expectativas, resolveram penalizar fortemente a presidência e governo de François Hollande varrendo do mapa, em inúmeras cidades de média e grande dimensão, as candidaturas protagonizadas pelo Partido Socialista. É a confirmação da velha querela que aponta para a influência das questões políticas nacionais em eleições autárquicas. Lá como também cá.
A terceira questão importante dita por esta eleição prendeu-se com a notável subida eleitoral da Frente Nacional de Marine Le Pen. Votação tão mais expressiva, de resto, quanto as candidaturas frentistas cifraram-se em apenas 597 num universo de 36.000 municípios. Num sistema eleitoral maioritário a duas voltas, em que apenas foram eleitos os candidatos que obtiveram mais de 50% dos votos, havendo necessidade de uma segunda volta entre os dois mais votados, estas ilações afiguram-se como inquestionáveis. São dados de facto que devem ser tidos em consideração.
E deverão ser tidos em consideração tanto mais quanto, conforme temos vindo sucessivamente anotar neste espaço, cremos existirem fortes probabilidades de os mesmos se repetirem precisamente dentro de dois meses – quando, a 25 de maio próximo, os europeus forem chamados a eleger o novo Parlamento Europeu. Isto é – corre-se o fortíssimo risco de sermos confrontados com uma taxa de abstenção sem precedentes; persiste o perigo de uma lamentável confusão quanto ao objetivo do voto a emitir, fazendo-se dele um uso imprudente, mais direcionado a penalizar ou sancionar os governos de turno que exercem o poder (sejam eles de esquerda, centro ou direita) nos mais diferentes Estados da União Europeia do que a escolher e optar por diferentes modelos e projetos de construção europeia, desconsiderando-se em absoluto a finalidade do sufrágio que vai ocorrer; e, finalmente, não poderá ser dada por excluída a possibilidade de sermos confrontado com escolhas – democráticas, por certo! – que mais do que se caraterizarem pela apresentação de propostas concretas sobre o modelo de Europa que preconizam, beneficiarão dos princípios democráticos para atacarem e questionarem a União Europeia nos seus fundamentos, valores e princípios, em nome do retrocesso a um passado impossível e sem serem capazes de preconizarem um futuro com um rumo ou um caminho sério e sustentável.
São, pois, muitos sinais que não podem ser desconsiderados e que devem ser levados a sério, refletidos e meditados. E quando estes ventos e estes sinais nos chegam, justamente, de França, talvez as razões para nos preocuparmos com eles sejam acrescidas e a preocupação deva ser reforçada. Há perigos que, apesar de identificados, com frequência se corporizam e se tornam reais. E aí, quase sempre, é tarde para reagirmos.
Post-scriptum: este texto é publicado no dia em que Espanha se despede do seu primeiro Presidente do Governo democrático da monarquia restaurada após a morte do ditador Francisco Franco. Não é por acaso que o país se curvou unanimemente ante a figura e a memória de Adolfo Suárez. A Espanha democrática e europeia dos nossos dias deve-lhe o máximo que um país pode dever a um estadista. Pese embora os muitos erros cometidos, sobretudo de natureza partidária e depois de deixar a Presidência do governo, com o apoio e na fidelidade à Coroa, conduziu o país da ditadura à democracia, liderando a transição e superando os traumas de uma guerra civil (1936-1939) que foi uma das maiores carnificinas do século XX. Conseguiu fazê-lo de uma forma pacífica e duradoura. Talvez por isso continue a ser o Presidente do governo da democracia que os espanhóis mais continuam a admirar, considerar e respeitar. E foi, também, quem lançou as bases da aproximação de Espanha à Europa (pese embora já tenha cabido ao seu sucessor, Felipe Gonzalez, outorgar o respetivo tratado de adesão, no mesmo dia em que, no Mosteiro dos Jerónimos, Portugal assinou idêntico documento). Permanecerá, seguramente, na memória dos espanhóis; e perdurará no rol dos líderes notáveis que puderam deixar a sua marca na Europa. Coisa rara, nos tempos que passam.