by João Pedro Simões Dias | Out 11, 2016 | Diário de Aveiro
Passadas as emoções iniciais provocadas pelo sucesso de António Guterres na sua corrida ao cargo de Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), é tempo de podermos extrair algumas lições desse sucesso que, tendo sido inegavelmente e em primeira linha um êxito do candidato, não deixou de ser, também, um triunfo nacional e um sucesso do país.
A primeira nota tem de se centrar, merecidamente, no êxito e no sucesso de António Guterres. Antes de mais e acima de tudo, foi dele o mérito da eleição e a ele se devem os créditos da mesma. Foi a sua personalidade, o seu currículo, a sua formação e a forma como exerceu durante dez anos a função de Alto Comissário para os Refugiados que constituíram o cartão de visita que culminou numa cena muito pouco vista no Conselho de Segurança: a aprovação da resolução propondo à Assembleia Geral a sua eleição aprovada por unanimidade e aclamação. Numa altura em que se cimentam as divisões no Conselho de Segurança, se multiplicam os vetos cruzados dos EUA, França e Reino Unido por um lado e Rússia por outro, a aprovação da referida resolução constituiu um intervalo de consenso e unanimidade como há muito não se via na sala de sessões do Conselho de Segurança.
A segunda ilação que podemos extrair de mais este êxito internacional do país é que, enquanto Estado actuando no quadro da sociedade internacional, Portugal tem tido uma projecção e um poder incomensuravelmente superiores ao que a sua real dimensão física poderia fazer supor. Ainda há poucos dias o influente jornal espanhol El País dava nota desse facto, assinalando que, num intervalo de dois anos, Portugal conseguia colocar dois nacionais seus à frente das duas principais organizações internacionais existentes (a UE e, agora, a ONU; a primeira com Durão Barroso entre 2004 e 2014 e agora a ONU com António Guterres entre 2017 e, no mínimo, 2021). Foram dois êxitos absolutamente notáveis da diplomacia portuguesa que merece todos os encómios e elogios que lhe possamos dirigir. E demonstra, inequivocamente, como, em torno de grandes causas mobilizadoras, este mesmo país se consegue reunir em torno dos seus melhores, envolvendo todos os órgãos de soberania, todos os partidos políticos, a generalidade das instituições da sociedade civil, sem distinção de cores ou credos. A última vez que tal sucedeu foi, curiosamente, também com a ONU e também com António Guterres – quando o então primeiro-ministro conseguiu mobilizar o país para o apoio à causa de Timor-Leste. Na senda da nossa tradição histórica, estamos destinados a dar ao mundo os melhores dos nossos melhores. É um facto notável que nos deve orgulhar.
A terceira lição a retirar desta candidatura vencedora é a de que, afinal, mesmo na sociedade internacional, nem tudo está perdido. Ainda permanece uma réstia de esperança em valores como a transparência, a decência, a ética ou o decoro. No momento em que decidiram dar maior transparência ao processo de escolha do Secretário-Geral das Nações Unidas, os membros do Conselho de Segurança não se deixaram aprisionar nem enredar em estratégias ínvias e obscuras que lançaram mão da candidatura da búlgara Kristalina Georgieva para criar entropias no processo. A votação obtida pela “búlgara oficial”, que acabou colocada atrás da “búlgara oficiosa”, não foi só a penalização de uma candidata; foi, também e principalmente, a censura de um método de atuação e de uma prática típica de uma diplomacia obscura e de confidencialidade protagonizada, sobretudo pelo eixo “Bruxelas-Berlim”.
O quarto ensinamento a retirar desta eleição de António Guterres prende-se com o absoluto desastre que foi a posição da União Europeia em todo este processo. Começando no facto de não ter sabido consensualizar a apresentação se um candidato comum aos seus Estados-membros e terminando no vergonhoso e incompreensível atraso do Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em cumprimentar e felicitar o candidato vencedor, passando pelo indiscreto apoio concedido à candidatura de última hora e à falta de imparcialidade que se exigia em todo este processo eleitoral.
Em quinto lugar e estreitamente ligada à posição da União Europeia, surgiu-nos a postura do governo de Berlim, verdadeiro motor do lançamento da candidatura da senhora Georgieva. Habituada a mandar na Europa, Merkel não percebeu uma coisa elementar: que o mundo já não é eurocêntrico e que nesse mesmo mundo a Alemanha não beneficia da posição de liderança ou supremacia que desfruta na Europa. Como anotava alguém há poucos dias, esta foi a prova provada de que Berlim tem muito a aprender sobre o que significa uma liderança e como se exerce uma liderança. Se quisermos construir um autêntico manual do que não fazer numa situação destas, basta dar o exemplo de tudo o que Merkel fez. Fez tudo o que não devia ter feito; não fez nada do que devia ter feito. Instrumentalizou as instituições comunitárias, serviu-se do governo búlgaro, quis encostar Putin à parede, ignorou a posição dos EUA, traiu e violou compromissos de neutralidade que tinha assumido, faltou à palavra dada. Nada disto é particularmente novo em Merkel – basta ver a posição que assumiu para com o chanceler Helmut Kohl que abandonou e traiu de forma ignóbil. Não tendo estado presente na mesa do Conselho de Segurança foi, talvez, a grande derrotada da votação do Conselho de Segurança. Veremos se aprendeu a lição; ou ainda se terá hipótese de voltar a intervir em assuntos desta magnitude. Em 2017 a Alemanha irá a votos…
by João Pedro Simões Dias | Set 7, 2016 | Diário Económico
As eleições estaduais alemãs do passado fim de semana, no Estado federado de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental constituíram um pequeno exemplo do ambiente político a que esta União Europeia sobrante tem estado a ser reconduzida, um pouco em todos os seus Estados. Os sociais-democratas tornaram-se no partido mais votado num Estado tradicionalmente democrata-cristão; a nova força do Altrenativa para a Alemanha (AfD) logrou alcançar o segundo lugar; e a CDU da chanceler Angela Merkel viu-se relegada para um inglório terceiro lugar na escolha dos eleitores, quando por regra este era um dos seus bastiões em toda a Alemanha.
A sensivelmente um ano das próximas eleições legislativas, estes resultados têm sido olhados com redobrada atenção e escalpelizados ao detalhe pelo estado-maior dos principais partidos germânicos, não faltando quem esteja a neles ver um ensaio importante para as próximas eleições gerais.
Dois dados resultam com particular evidência deste sufrágio – e devem merecer uma meditação mais aprofundada.
O primeiro tem a ver com a forte penalização da tradicional democracia-cristã da CDU, que de primeiro passa a terceiro partido no Estado. A generalidade dos comentadores que se debruçaram sobre estes resultados eleitorais foi unânime. Angela Merkel e a sua União Democrata-Cristã foram fortemente penalizados pela sua política europeia, com particular ênfase para a sua postura relativa aos refugiados e migrantes que têm demandado a Alemanha e se têm deparado, apesar de tudo, com uma política de acolhimento flexível e disposta a integrar um número significativo desta nova vaga de refugiados, política iniciada em setembro do ano passado, quando a chanceler decidiu não bloquear o caminho para os refugiados detidos na Hungria. Não faltaram, de então para cá, dentro e fora da Alemanha, vozes reclamando um endurecimento da política alemã face a estes migrantes e um endurecimento das leis federais que permitiam que os mesmos passassem e ficassem em território alemão. Da mesma forma que não faltaram os que associaram a esta vaga de migrantes o aumento da criminalidade e, sobretudo, o recrudescimento da onda terrorista que há muito a Alemanha já não conhecia. De todas as formas, sempre as questões atinentes à política europeia a justificarem esta queda eleitoral do partido da chanceler Merkel. Diga-se, já agora e à laia de parêntesis, terem sido muito poucos os que repararam nas fracas qualidades do candidato democrata-cristão à chefia do governo estadual; detalhes, apenas detalhes….
Por outro lado, a par com esta descida da CDU, os eleitores de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental optaram por beneficiar a extrema-direita populista da Alternativa para a Alemanha, guindando-a a um inesperado terceiro lugar no ranking eleitoral. Partido que se define como fora do sistema, populista e contrário à presença da Alemanha na União Europeia com tudo o que isso supõe (nomeadamente a pertença à zona euro, a aceitação da liberdade de circulação de pessoas, a política de assimilação de migrantes), o seu crescimento fez-se, também na Alemanha, à custa de um dos tradicionais partidos que moldaram o atual sistema político germânico (a CDU). Repetiu-se, com as devidas proporções, um fenómeno que já tínhamos visto acontecer em Espanha, na Grécia, no Reino Unido, em França, na Hungria, na Polónia. E que não está dito nem escrito em lado algum que se possa dar por terminado e encerrado.
A política europeia, em escalas e tonalidades diferentes, está, pois, a penalizar os clássicos e tradicionais partidos políticos que geriram os Estados europeus no pós-segunda guerra mundial, apadrinhando e criando condições propícias para a emergência de novas e desestruturadas propostas políticas, de matiz radical e sinais políticos contraditórios, que acabam por acolher e beneficiar de todo o descontentamento que as políticas europeias despertam e suscitam. A União Europeia, por sua vez, “põe-se a jeito”: em vez de construir um projeto político europeu, oferece políticas avulsas, dirigistas, regulamentadoras e não raro contraditórias entre si; em lugar de mostrar ao mundo lideranças inspiradoras e geradoras de confiança, contenta-se em escolher e substituir regularmente simples governantes de turno, que frequentemente nem são respeitados nem se dão ao respeito; à existência de uma opinião pública forte, consentânea com uma cidadania comum que pretende potenciar, convive com a existência de vinte e oito opiniões públicas nacionais onde o sentido de pertença a uma identidade comum que complete e complemente as identidades nacionais, está completamente ausente e não é estimulado nem alimentado.
Eis-nos, pois, perante um caldo de condições verdadeiramente potenciador de um atrofiamento capaz de constranger o aprofundamento e o desenvolvimento de um espírito europeu indispensável ao projeto que se pretendeu edificar sob a égide da União Europeia. Está nas mãos dos europeus impedir que este perigo potencial se transforme numa realidade triste e deplorável.
Se a Europa e os Estados europeus pretendem ter uma voz neste mundo cada vez mais globalizado e cada vez mais estruturado em torno de grandes espaços, urge que se organize e se institucionalizem para poderem ser ouvidos e escutados. Nenhum Estado europeu, por muito grande que seja, conseguirá sobreviver por si só neste mundo globalizado e de grandes espaços. Nem sobreviver, nem fazer-se ouvir. Nem os grandes, muito menos os pequenos e médios Estados. A União Europeia tem sido, até ao presente, essa estrutura mínima que almeja representar a Europa. Se não puder ser ela, que seja outra qualquer que venha a suceder-lhe. Mas o mundo, lá fora, não prescinde da Europa para se estruturar e se organizar. Mas se esta velha Europa não se apressar, esse mesmo mundo não ficará parado à espera dela.
by João Pedro Simões Dias | Jun 12, 2015 | Diário de Aveiro
1. A adesão de Portugal às Comunidades Europeias
Completam-se hoje, 12 de junho, trinta anos sobre a data em que Portugal assinou, no Mosteiro dos Jerónimos, o seu Tratado de Adesão às, então, Comunidades Europeias. Poucas horas depois, em Madrid, repetir-se-ia o ato com a assinatura do Tratado de Adesão espanhol. Culminando oito anos de intensas e difíceis negociações, iniciadas em 1977 sob os auspícios do primeiro-ministro Mário Soares e do ministro dos negócios estrangeiros Medeiros Ferreira, naquele 12 de Junho de 1985 as Comunidades Europeias davam o primeiro passo para deixarem de ter 10 membros e passarem a constituir, a partir de 1 de janeiro seguinte, a “Europa dos doze”. Assim se manteria até 1995 quando os “doze” deram lugar aos “quinze”, com as adesões da Finlândia, Áustria e Suécia. Trinta anos depois impõe-se recordar o ambiente daquela Europa a que aderimos; e, em texto próximo, ensaiarmos uma avaliação ou balanço dessa aventura europeia nacional.
A primeira questão que importa recordar prende-se com o mito que escutámos durante muitos anos segundo o qual, com a adesão às Comunidades Europeias, Portugal havia “aderido à Europa”. Sempre questionámos essa afirmação, por simplista e incorreta. E, em trabalho académico publicado (“A cooperação europeia e Portugal, 1945-1986”, SPB Editora, Lisboa 1997), tivemos oportunidade de detalhar o erro da afirmação relembrando e recordando, de forma aprofundada, que desde o fim da segunda guerra mundial, pese embora o regime político vigente no país, Portugal esteve, quase sempre, presente e envolvido em todas as organizações europeias que se constituíram, nos mais diferentes domínios de atividade. As exceções foram, justamente, as Comunidades Europeias e o Conselho da Europa. Excluindo estas duas organizações, Portugal esteve nas restantes que se criaram na Europa ou a partir da Europa do pós segunda guerra mundial.
Foi assim, no domínio económico, com a OECE (que se viria a transformar em OCDE), criada para gerir os fundos transferidos dos EUA para a Europa ao abrigo do Plano Marshall, para fazer face à reconstrução europeia (e isto apesar de não termos tido envolvimento direto no conflito militar mundial) – num processo negocial, de resto, recheado de peripécias e movimentações diplomáticas curiosíssimas que permitiu que Portugal tivesse o estatuto de Estado fundador; foi assim, no domínio político-militar, com o Tratado de Washington ou do Atlântico Norte que instituiu a Aliança Atlântica (NATO), unindo os Estados da Europa ocidental aos EUA e ao Canadá, com o pretexto de defender o ocidente do perigo russo, e da qual Portugal foi também membro fundador; foi assim, no plano político-económico, com a EFTA – tentativa de resposta britânica à criação das Comunidades Europeias, de que o nosso país também foi fundador; e foi assim quando, em meados da década de cinquenta, Portugal foi admitido na ONU, a organização global feita à imagem dos vencedores da segunda guerra mundial. Fenece, assim, em absoluto, a ideia que durante muito tempo fez o seu caminho entre nós, segundo a qual, aderindo às Comunidades Europeias, tínhamos “aderido à Europa”. Não, não é verdade; além de já lá estarmos e integrarmos geograficamente essa Europa desde o nosso nascimento como Estado e Nação, já nela e nas suas principais organizações económicas, políticas e militares nos encontrávamos desde o fim da segunda guerra mundial e antes mesmo de aderirmos às Comunidades Europeias.
A segunda questão que importa realçar e recordar é que, tendo “apenas” passado trinta anos sobre o evento que evocamos, no plano histórico parece ter sido uma eternidade tantos e tais foram os acontecimentos que se sucederam, muitas vezes a uma velocidade vertiginosa; a ponto de, deles tendo sido testemunhas diretas, na maior parte dos casos não havermos assimilado totalmente a dimensão daquilo a que assistíamos.
Vivíamos, na altura, em pleno mundo caracterizado por uma ordem mundial estranha – que era o mundo saído da segunda guerra mundial ou, por simplificação de linguagem, o mundo da guerra-fria. Numa palavra, estava-se em pleno mundo bipolar. Eram dois os dois blocos estratégicos: o Ocidente e o Oriente; eram duas as superpotências existentes: os EUA e a URSS; eram duas as “Europas” politicamente relevantes: a “Europa Ocidental” e a “Europa Oriental”; eram duas as organizações de defesa preocupadas com o território europeu: a NATO e o Pacto de Varsóvia; eram duas as organizações económicas de feição europeia: a CEE e o COMECOM; eram duas as Alemanhas existentes: a República Federal da Alemanha e a República Democrática da Alemanha; e, finalmente e para cúmulo, eram duas as cidades de Berlim: Berlim ocidental e Berlim leste.
Quatro anos depois da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, “esta” Europa a que acabávamos de aderir desapareceu. Dentro e fora das Comunidades. Estas, encetaram o caminho da UEM e da união política – e surgiriam as CIG’s que estariam na origem do Tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia e abriria caminho para a criação da moeda única europeia; fora das Comunidades, no plano geopolítico, tudo mudou – ruiu o Muro, reunificou-se a Alemanha, implodiu a URSS, dissolveram-se o COMECON e o Pacto de Varsóvia, multiplicaram-se os Estados e as nações no centro e no leste da Europa, renasceram os nacionalismos, abriu-se a porta ao alargamento, ad absurdum, da União Europeia. Estava, pois, criado o caldo de cultura suficiente e necessário para a Europa e o espírito europeu entrarem em crise, serem postos em causa na raiz da sua essência, anunciando períodos de crise que, sabemos hoje, não deixariam de fazer a sua aparição.
by João Pedro Simões Dias | Jul 8, 2014 | Diário de Aveiro
Quando, no passado dia 1, a Itália assumiu a presidência rotativa e turno do Conselho da União Europeia, era grande a expectativa que se erigia em torno do seu novo Primeiro-Ministro, o democrata (socialista) Matteo Renzi, o mais novo Primeiro-Ministro Italiano de sempre que, cansado de governar apenas a sua cidade de Florença, se abalançou a conquistar a liderança do Partido Democrático e, consequentemente, apear o também democrata Enrico Letta da chefia do governo de Roma.
Face à inexperiência em matéria de política europeia do chefe do governo romano, os receios eram muitos, as dúvidas não eram menores e, portanto, a expectativa dir-se-ia imensa. Expectativa que, apenas uns quantos – poucos – acreditavam que se poderia volver em oportunidade. Ademais, Renzi, talvez um tanto ou quanto injustamente, acabava por sofrer da “síndrome Hollande”: talvez o socialista europeu que mais esperanças concitou nos últimos anos mas cuja errância e descalabro na condução da política (interna e externa) francesa o arrastou para as ruas da amargura, a ele e ao seu partido, como os eleitores fizeram questão de afirmar, sem dó nem piedade, nas últimas eleições autárquicas e, sobretudo, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu. Face a Renzi, as expectativas não ousaram subir tão alto como subiram com Hollande. A prudência, quase sempre, é boa conselheira, e um erro cometido duas vezes não poderia continuar a ser qualificado como um simples erro. E por isso, a começar nos próprios socialistas europeus, Renzi foi olhado com reserva, com uma certa esperança secreta mas quase nunca verbalizada.
O certo é que bastaram dois discursos para tudo mudar, para a força da palavra se impor e o novo Primeiro-Ministro italiano ir buscar créditos onde menos se esperava e conseguir gerar um sentimento generalizado de, no mínimo, elevadas e positivas expectativas.
Os dois discursos em causa aconteceram, primeiro, em Roma, ante o Parlamento italiano quando Renzi apresentou as grandes linhas gerais a que pensava submeter o seu mandato semestral à frente do Conselho da União Europeia; e, depois, em Estrasburgo, ante o plenário do Parlamento Europeu, quando os novos eurodeputados recentemente eleitos iniciaram a nova legislatura europeia discutindo as prioridades da nova presidência do Conselho. Ambos os discursos foram complementares e constituíram uma lufada de ar fresco no cinzentismo eurocrático que têm vindo a pairar sobre o céu europeu.
Desde logo e em primeiro lugar, Renzi ousou assumir o que nas mais recentes décadas muitos líderes europeus pareceram ter esquecido – “o grande desafio do semestre será não apenas agendar medidas e encontros, mas reencontrar a alma da Europa e o sentido de estarmos juntos. […] Há uma identidade a reencontrar.” De forma clara, explícita e assumida, há aqui um verdadeiro apelo a um regresso aos valores, aos princípios, a tudo o que determinou e esteve na origem fundacional do atual projecto europeu. A União Europeia não se pode reduzir a um redil despersonalizado de números, estatísticas e burocracias. Tem de ir mais longe e conquistar a alma dos europeus. Respeitando a sua diversidade mas identificando a sua identidade. É um discurso novo que se escuta, com a particularidade de coincidir com o momento em que, tudo indica, Jean-Claude Juncker – o democrata-cristão sobrante da era de Kohl e Mitterrand, que alguns consideram como o mais socialista dos democratas-cristãos europeus pela sua sensibilidade à dimensão social da ideia europeia – acederá à presidência da Comissão Europeia.
Mas Renzi foi mais longe e disse mais. Sem estender a mão, apontou o dedo a Berlim e a Haia – a Merkel mas também ao seu correligionário socialista Jeroen Dijsselbloem, Presidente do Eurogrupo, os arautos e os rostos mais visíveis das políticas austeritárias e ortodoxas europeias de reacção à crise – para assumir que “sem crescimento a Europa morre”. E que crescimento económico não tem de significar falta de rigor orçamental. Curiosamente – ou talvez não – foi da liderança parlamentar do PPE que se ouviram as principais críticas ao modelo de desenvolvimento apresentado por Renzi. O alemão Manfred Weber, novo líder da bancada do PPE (mas que, como qualquer eurodeputado alemão, antes de ser de qualquer partido é…. alemão), criticou fortemente Renzi, a propósito da “flexibilidade” orçamental. Foi a oportunidade para recordar que a Alemanha conseguiu transformar-se na potência económica que é hoje, precisamente à custa da violação das regras previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento, tendo sido objecto de processo de incumprimento por défice excessivo que a anterior Comissão Europeia resolveu arquivar. Ou seja, foi com base na violação das regras orçamentais da União, que a Alemanha se guindou à posição de supremacia económica de que hoje beneficia. E Renzi relembrou-o e recordou-o. O que não é frequente no Parlamento Europeu.
Em suma, os tempos próximos merecem que se dedique uma atenção cuidada à prestação do novo Primeiro-Ministro italiano. Matteo Renzi pode vir a ser aquela voz que faltava aos socialistas europeus (que o francês Hollande defraudou e o alemão Schulz nunca conseguiu ser) para credibilizar a sua visão europeia e o seu próprio projeto europeu. Se assim for, serão boas notícias para o futuro próximo da União Europeia.
by João Pedro Simões Dias | Jul 1, 2014 | Diário de Aveiro
Finalmente o Conselho Europeu da passada sexta-feira, com a expressa oposição dos Primeiros-Ministros do Reino Unido e da Hungria – David Cameron e Viktor Orban – designou um candidato à presidência da Comissão Europeia. A escolha, óbvia a partir do momento em que Merkel deu sinais de recuar nas suas objecções, recaiu em Jean-Claude Juncker, o candidato que o Partido Popular Europeu apresentou às últimas eleições para o Parlamento Europeu. Agora resta ao incumbente congregar os necessários 376 votos necessários da Assembleia europeia. Uma Assembleia onde o Partido Popular Europeu dispõe de 221 deputados, o Partido Socialista Europeu de 191, os Conservadores e Reformistas Europeus de 70 e os Liberais de 67 deputados. Haverá, assim e por definição, de assistir a uma negociação que, tudo indica, acabará por assentar nos dois principais grupos políticos europeus – democratas-cristãos e socialistas europeus.
Ministro das finanças do pequeno Grão-Ducado do Luxemburgo desde 1989, cargo que acumulou desde 1995 e até ao fim de 2013 com o de Primeiro-Ministro do principado; oito anos Presidente do Eurogrupo e várias vezes Presidente de turno do Conselho Europeu, dispõe de uma experiência e de um conhecimento tanto da máquina administrativa e burocrática da UE como das questões europeias como poucos; não por acaso é visto como o rosto sobrante dos últimos estadistas europeus, beneficiando da experiência e do convívio com a geração que o precede – a geração de Mitterrand, de Delors ou de Helmut Kohl. com a presidência do Eurogrupo (os ministros das finanças do euro). Não por acaso é igualmente tido como o mais socialista dos democratas-cristãos europeus, sobretudo pelas críticas tecidas à deriva liberalizante da economia europeia como, sobretudo, pela sua persistente atenção e sensibilidade para as causas sociais e a dimensão social do próprio projeto europeu.
Numa altura em que ainda é prematuro fazer um balanço dos dez anos de Durão Barroso à frente do executivo comunitário, uma certeza se poderá ter quase por adquirida – uma “Comissão Juncker” será, seguramente, muito distinta de qualquer uma das Comissões lideradas por Durão Barroso. Daí, de resto, os bem disfarçados receios de Angela Merkel e os muito mal disfarçados receios de David Cameron relativamente à indigitação de Jean-Claude Juncker. Olhando para o seu percurso e para a sua linha de atuação em matéria europeia, ninguém duvidará – ou poucos ousarão duvidar – que Jean-Claude Juncker irá apostar fortemente na revalorização do papel da Comissão Europeia, na sua recolocação no centro do processo europeu de decisão, na recuperação de uma parte significativa do protagonismo e da influência que a Comissão Europeia já teve e que, nos últimos anos, perdeu claramente em benefício do Conselho Europeu. Dir-se-á, dirão alguns e Cameron enfatizou o facto, que se trata de um programa de cariz federal. Será, seguramente, um programa não intergovernamental que poderá aprofundar a integração política da União – todo o contrário dum rumo e dum caminho percorridos ao longo dos últimos anos.
Erroneamente têm, alguns, dedicado parte significativa do seu tempo a realizarem uma espécie de contabilidade, de “deve” e “haver”, sobre o que pode Portugal ganhar ou perder com uma possível liderança de Jean-Claude Juncker à frente da Comissão Europeia. É matéria em que não entramos por demasiado despropositada. Nem é tarefa dum Presidente da Comissão Europeia beneficiar particularmente algum dos Estados-Membros da União – e temos aí o exemplo de Durão Barroso a atestar e comprovar o que afirmamos – como, mais importante do que isso, será sua missão e tarefa evitar que prossiga e continue uma marcha que parece irreversível no caminho do diretório das grandes potências, reequilibrando os poderes no quadro da União e restabelecendo a normalidade prevista e consagrada nos tratados mas que a prática recente tem pervertido quase em absoluto.
Oriundo dum pequeno Estado-membro da União, dum verdadeiro micro-Estado mas que foi um Estado fundador do projeto europeu, com a experiência que possui dos assuntos europeus, do funcionamento da eurocracia e o conhecimento adquirido dos principais dossiers em discussão, a presidência de Jean-Claude Juncker tem, à partida, todas as condições para alcançar o que dela se espera: recolocar a Comissão Europeia no centro do processo europeu de decisão, diminuir a deriva intergovernamental promovida pela Alemanha após a assinatura do Tratado de Lisboa, reduzir a caminho para o diretório, completar a união económica e monetária e contribuir para o aprofundamento político da União. Se conseguir cumprir esta agenda, sem esquecer a necessária dimensão social europeia, terá reunidas as condições para uma liderança de sucesso do próximo executivo comunitário. É o mínimo que se lhe pode exigir e o máximo que poderá fazer pelo renascimento do projeto europeu.