Lições de uma vitória
Passadas as emoções iniciais provocadas pelo sucesso de António Guterres na sua corrida ao cargo de Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), é tempo de podermos extrair algumas lições desse sucesso que, tendo sido inegavelmente e em primeira linha um êxito do candidato, não deixou de ser, também, um triunfo nacional e um sucesso do país.
A primeira nota tem de se centrar, merecidamente, no êxito e no sucesso de António Guterres. Antes de mais e acima de tudo, foi dele o mérito da eleição e a ele se devem os créditos da mesma. Foi a sua personalidade, o seu currículo, a sua formação e a forma como exerceu durante dez anos a função de Alto Comissário para os Refugiados que constituíram o cartão de visita que culminou numa cena muito pouco vista no Conselho de Segurança: a aprovação da resolução propondo à Assembleia Geral a sua eleição aprovada por unanimidade e aclamação. Numa altura em que se cimentam as divisões no Conselho de Segurança, se multiplicam os vetos cruzados dos EUA, França e Reino Unido por um lado e Rússia por outro, a aprovação da referida resolução constituiu um intervalo de consenso e unanimidade como há muito não se via na sala de sessões do Conselho de Segurança.
A segunda ilação que podemos extrair de mais este êxito internacional do país é que, enquanto Estado actuando no quadro da sociedade internacional, Portugal tem tido uma projecção e um poder incomensuravelmente superiores ao que a sua real dimensão física poderia fazer supor. Ainda há poucos dias o influente jornal espanhol El País dava nota desse facto, assinalando que, num intervalo de dois anos, Portugal conseguia colocar dois nacionais seus à frente das duas principais organizações internacionais existentes (a UE e, agora, a ONU; a primeira com Durão Barroso entre 2004 e 2014 e agora a ONU com António Guterres entre 2017 e, no mínimo, 2021). Foram dois êxitos absolutamente notáveis da diplomacia portuguesa que merece todos os encómios e elogios que lhe possamos dirigir. E demonstra, inequivocamente, como, em torno de grandes causas mobilizadoras, este mesmo país se consegue reunir em torno dos seus melhores, envolvendo todos os órgãos de soberania, todos os partidos políticos, a generalidade das instituições da sociedade civil, sem distinção de cores ou credos. A última vez que tal sucedeu foi, curiosamente, também com a ONU e também com António Guterres – quando o então primeiro-ministro conseguiu mobilizar o país para o apoio à causa de Timor-Leste. Na senda da nossa tradição histórica, estamos destinados a dar ao mundo os melhores dos nossos melhores. É um facto notável que nos deve orgulhar.
A terceira lição a retirar desta candidatura vencedora é a de que, afinal, mesmo na sociedade internacional, nem tudo está perdido. Ainda permanece uma réstia de esperança em valores como a transparência, a decência, a ética ou o decoro. No momento em que decidiram dar maior transparência ao processo de escolha do Secretário-Geral das Nações Unidas, os membros do Conselho de Segurança não se deixaram aprisionar nem enredar em estratégias ínvias e obscuras que lançaram mão da candidatura da búlgara Kristalina Georgieva para criar entropias no processo. A votação obtida pela “búlgara oficial”, que acabou colocada atrás da “búlgara oficiosa”, não foi só a penalização de uma candidata; foi, também e principalmente, a censura de um método de atuação e de uma prática típica de uma diplomacia obscura e de confidencialidade protagonizada, sobretudo pelo eixo “Bruxelas-Berlim”.
O quarto ensinamento a retirar desta eleição de António Guterres prende-se com o absoluto desastre que foi a posição da União Europeia em todo este processo. Começando no facto de não ter sabido consensualizar a apresentação se um candidato comum aos seus Estados-membros e terminando no vergonhoso e incompreensível atraso do Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em cumprimentar e felicitar o candidato vencedor, passando pelo indiscreto apoio concedido à candidatura de última hora e à falta de imparcialidade que se exigia em todo este processo eleitoral.
Em quinto lugar e estreitamente ligada à posição da União Europeia, surgiu-nos a postura do governo de Berlim, verdadeiro motor do lançamento da candidatura da senhora Georgieva. Habituada a mandar na Europa, Merkel não percebeu uma coisa elementar: que o mundo já não é eurocêntrico e que nesse mesmo mundo a Alemanha não beneficia da posição de liderança ou supremacia que desfruta na Europa. Como anotava alguém há poucos dias, esta foi a prova provada de que Berlim tem muito a aprender sobre o que significa uma liderança e como se exerce uma liderança. Se quisermos construir um autêntico manual do que não fazer numa situação destas, basta dar o exemplo de tudo o que Merkel fez. Fez tudo o que não devia ter feito; não fez nada do que devia ter feito. Instrumentalizou as instituições comunitárias, serviu-se do governo búlgaro, quis encostar Putin à parede, ignorou a posição dos EUA, traiu e violou compromissos de neutralidade que tinha assumido, faltou à palavra dada. Nada disto é particularmente novo em Merkel – basta ver a posição que assumiu para com o chanceler Helmut Kohl que abandonou e traiu de forma ignóbil. Não tendo estado presente na mesa do Conselho de Segurança foi, talvez, a grande derrotada da votação do Conselho de Segurança. Veremos se aprendeu a lição; ou ainda se terá hipótese de voltar a intervir em assuntos desta magnitude. Em 2017 a Alemanha irá a votos…