O G20.

O passado fim de semana, na Alemanha e na Europa, foi dominado pela realização, em Hamburgo, da cimeira anual do G20 – o grupo das 20 maiores economias do mundo – e pelo regresso da violência urbana que lhe andou associada e que já há algum tempo não se via na Europa. Em nome do protesto contra o capitalismo e a globalização, mais de 800 grupos, grupinhos e grupelhos manifestaram-se nos arredores da cimeira e levaram o caos e a violência às ruas de Hamburgo.

O G20 é, hoje, eventualmente, a instância de cooperação político-económica multilateral que mais e melhor representa a sociedade internacional dos nossos dias. É sabido que, em cada momento histórico, a sociedade internacional tem uma instância que tende a representá-la e a refletir o equilíbrio de poderes que nela existem. No imediato pós segunda guerra mundial pretendeu-se que essa instância fosse a ONU, a única organização onde todos falam com todos, nas sempre bem lembradas palavras do Professor Adriano Moreira; durou pouco, porém, essa crença na organização de Nova Iorque, e o eclodir do período da guerra-fria e do mundo dual fez com que fossem as cimeiras entre as duas superpotências liderantes dos dois blocos político-militares (EUA e URSS) quem decidia dos destinos do mundo e onde quase todo o mundo se sentia representado, ou por uns, ou por outros; a queda do Muro e a implosão da URSS ditaram nova alteração desta realidade – passaram a ser as 7 maiores economias do mundo (Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido), o G7 constituído anos antes pelos meados da década de setenta, quem assumiu a liderança e a representação dos maiores do mundo. G7 que, por cortesia, passaria a G8 quando a Rússia se reergueu dos escombros da defunta URSS e foi admitida à mesa das conversações. Mas foi por pouco tempo. O acelerar do processo de globalização e o reforço das economias emergentes encarregaram-se de demonstrar serem muitos os que continuavam de fora. E o G8 evoluiu, naturalmente, para o atual G20, a tal instância de cooperação político-económica multilateral que mais e melhor representa a sociedade internacional dos nossos dias. A instância que gere e regula, informalmente, a globalização e o dito capitalismo – e contra a qual se realizaram, em Hamburgo, no final da passada semana, mais de 800 (!) manifestações que originaram os tumultos conhecidos.

Pergunta-se: verdadeiramente, contra o que se manifestaram estes manifestantes? Contra a globalização e o capitalismo, dir-se-á. Desejosos, portanto, de um mundo menos globalizado, do regresso ao mundo das fronteiras fechadas, como se o progresso e o avanço, desde logo, da ciência e da técnica, permitissem que isso fosse possível! Mas parece que era este o anseio dos manifestantes de Hamburgo. Bem como, evidentemente, a luta contra o capitalismo. Em nome de quê? Provavelmente de um qualquer sistema político-económico que garantisse, para todos, amanhãs que cantam, ignorando o sofrimento que esses sistemas já causaram em milhões e milhões de europeus, que pela força do seu poder o derrubaram e o remeteram para o caixote do lixo da história.

Acontece, todavia, e ainda, que se é verdade que cada época histórica tem a sua instância de referência, aquela que tendencialmente a representa e na qual a sociedade internacional de cada tempo se revê, então teremos de aceitar que nunca, como hoje, essa representação foi tão democrática, tão abrangente, nunca envolveu tantos países e tantos Estados (África do Sul, Argentina, Brasil, Canadá, EUA, México, China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, Turquia, Alemanha, França, Itália, Rússia, Reino Unido, Austrália e União Europeia), representando mais de 90% do PIB mundial, mais de 80% do comércio mundial e mais de dois terços da população mundial. À exceção da descredibilizada ONU, nenhuma outra instância internacional (nem o Conselho de Segurança da ONU) pode reclamar tão ampla representação. Mas foi também contra esta forma de “governo” político-económico mundial que os representantes das ruas de Hamburgo se sublevaram. Com saudades, provavelmente, do tempo e da era que que tudo se tratava bilateralmente, “a dois”, entre as duas superpotências emergentes da segunda guerra mundial, cujas decisões eram, posteriormente, adotadas por todos os restantes Estados da sociedade internacional. Porque, em bom rigor, outro motivo não se vislumbra para os protestos contra a cimeira da instância mais ampla, democrática e abrangente que em mais de um século assumiu as principais tarefas de regulação de um mundo já de si tão desregulado e desgovernado. Valham-nos, apesar de tudo, estas cimeiras como instâncias de regulação mínima de uma sociedade internacional que, sem elas, correria o risco de andar definitivamente à deriva e, ainda mais, em busca do seu norte. É certo que não constitui o modelo ideal de governação do mundo. Mas à falta de outro e de melhor, louvemo-nos na sua existência e nos documentos que vai aprovando.

Claro, como se viu em Hamburgo, há sempre quem tenha saudades de um mundo já passado, de uma ordem já acabada, de uma história já vivida. Gente definitivamente ultrapassada que ainda nem sequer compreendeu os tempos em que vive.

 

A doutrina Trump

Passaram menos de três meses sobre a tomada de posse de posse da nova administração norte-americana mas já foi o tempo suficiente para se constatar que a realidade já se come­çou a impor ao discurso populista e demagógico de Donald Trump que teve, na­quele ainda recente 20 de janeiro, uma das suas mais relevantes manifestações. O dis­curso em que Trump elogiou o isolacionismo norte-americano, celebrizado da célebre expres­são “América first”, fez uma profissão de fé nas vantagens do proteccionismo, disse-se Presidente dos Estados Unidos e não do resto do mundo e criticou o tempo e os recursos gastos na tarefa de levar a democracia a outros países. Tudo isto foi dito há me­nos de três meses!
E, no entanto, quem atentar nas decisões tomadas ao longo da última semana pelo Presi­dente dos Estados Unidos, dificilmente as conseguirá compaginar com as proclama­ções proferidas no momento do discurso de investidura.
Desde logo a posição adoptada face ao regime sanguinário de Assad. Na sequência do bombardea­mento do seu próprio povo com armas químicas interditas pela generalidade das convenções internacionais e pelo próprio direito da guerra, Trump não hesitou em rea­gir, por palavras e por actos. Na Flórida, ao lado do Presidente chinês, proclamou a inaceitabili­dade daqueles ataques, enunciou que os mesmos ultrapassaram todas as li­nhas vermelhas toleradas pela comunidade internacional, e deu ordem para que dois porta-aviões norte-americanos estacionados no Mediterrâneo lançassem um imenso ata­que de mísseis Tomawack sobre a base área síria donde partiram os aviões responsá­veis por aquele ataque químico. 59 mísseis de novíssima geração e quase infalível preci­são, devastaram e tornaram inoperacional a mesma base aérea. Tratou-se de um ataque cirúr­gico, com alvo bem definido, mas duma intensidade incomum e que nunca nenhum Presi­dente norte-americano antes de Trump se havia atrevido a lançar. A reação da comuni­dade internacional foi, praticamente, unânime no apoio à iniciativa norte-ameri­cana – se excetuarmos, obviamente, o caso da Rússia que suporta e sustenta o regime sí­rio, do Irão, do Hezzbolah e de mais um ou outro regime do mesmo jaez. Dir-se-á que o ataque não foi precedido da sempre necessária autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas que, face ao direito internacional, o tornaria legítimo. Impõe-se, toda­via, não esquecer, que todas as tentativas para aprovação de uma resolução por parte do Conselho de Segurança esbarraram sempre no veto sistemático da Rússia. Cedo se tornou evidente que a via diplomática e jurídica estava esgotada e prejudicada. Res­tava, infelizmente, a resposta militar. E Trump – o tal que dava sucessivas indicações de não se querer envolver em demasia nas questões internacionais – reagiu de forma surpreen­dente: pela rapidez, pela intensidade, pela determinação de que deu mostras. Recor­dando que desde 2013 tanto os EUA como a Rússia se tinham tornado garantes de que Assad não recorreria a armamento químico no conflito sírio, constando a sua utiliza­ção e a violação daquele compromisso, o Presidente norte-americano determinou o lança­mento do ataque que nunca nenhum seu antecessor ousou levar a cabo. Mostrou, a Assad, à Rússia e ao mundo, que continuam a haver linhas vermelhas que os EUA não permi­tem que sejam ultrapassadas porque a referida ultrapassagem, entre outros, põe em causa interesses nacionais fundamentais dos próprios Estados Unidos. Para além de interes­ses comuns da comunidade internacional. Da mesma comunidade internacional que fez saber o seu apoio generalizado, ainda que de uma forma envergonhada e a meia-voz. Era Trump a tomar uma medida acertada, não nos esqueçamos do detalhe….
Menos de quarenta e oito horas passadas sobre a ordem para o ataque à base aérea sí­ria, nova medida de forte visibilidade mediática tomada pela administração Trump: a or­dem para que a frota liderada pelo porta-aviões USS Carl Vinson, os contratorpedeiros USS Wayne Meyer e USS Michael Murphy e o cruzador USS Lake Champlain, que se diri­gia para a Austrália, invertesse o seu rumo e se dirigisse para águas ao Pacífico Ocidental e tomar posição perto da Península Coreana. O pretexto para esta demonstração de força aparece intimamente ligado à sucessão de testes de mísseis por parte do regime de Pyongyang, que a Coreia do Norte tem reiteradamente promovido.
Para um Presidente que iniciou o seu mandato secundarizando as questões externas e internacio­nais, as duas ações referidas que decorreram na passa semana constituem, obvia­mente, um dado novo a que convém prestarmos alguma atenção. É certo – a vida in­terna da nova administração não tem sorrido ao novo Presidente; e sabe-se que, em altu­ras de crise interna, nada melhor do que identificar um ou dois objetivos externos para neles centrar a atenção da opinião pública e levá-la a esquecer os insucessos da polí­tica doméstica. É uma regra básica de qualquer grande ou média potência internacio­nal. Apesar disso, não será prudente ignorar estes novos sinais que a nova administra­ção norte-americana está a passar para o mundo. Talvez o isolacionismo procla­mado acabe por não ter a dimensão inicialmente temida. E não seria caso virgem um Presidente norte-americano fazer-se eleger prometendo centrar-se nas questões de polí­tica interna e acabar o seu mandato atolado em questões e problemas internacio­nais. O caso mais recente foi o George W.Bush, empenhado em reverter o intervencio­nismo de Clinton no momento da sua eleição mas que, apanhando com o 11 de setem­bro em cima, não teve alternativa que não lançar os EUA na maior intervenção armada desde a segunda guerra mundial. A realidade, por vezes, encarrega-se de toldar os mais no­bres e elevados princípios e desígnios presidenciais.
No caso de Trump, pouco existe que nos permita identificar com rigor e precisão o seu pensa­mento em matéria de política externa. A “doutrina Trump” ainda não existe – está a ser construída dia-a-dia ao ritmo da realidade. Resta-nos estar atentos para a tentar perce­ber e identificar em toda a sua extensão.