by João Pedro Simões Dias | Mai 24, 2017 | Jornal Económico
Manchester. Mais um nome a acrescentar à longa série de cidades europeias vitimadas pela horda terrorista. Foi Paris, foi Londres, foi Madrid, foi Nice, foi Bruxelas, foi Berlim…. E foi, agora, Manchester. E com tudo isto, falta-nos em palavras o que nos sobra em indignação. A indignação contra mais um acto terrorista. A indignação contra mais um flagrante desrespeito pelos mais elementares valores humanos, a começar pela própria vida humana. A indignação por mais um vil ataque contra a nossa civilização ocidental.
Desta feita, todavia, a perversidade do acto ultrapassou tudo quanto já havíamos visto num detalhe não irrelevante. Desta vez, os destinatários desta nova barbaridade não foram cidadãos anónimos e indiferenciados. Foram adolescentes; foram jovens: foram pouco mais do que crianças que se haviam deslocado, pacatamente, para assistir a um concerto musical de uma das suas artistas da moda. Quem preparou o acto, quem executou a carnificina, o próprio daesh que já o reivindicou, sabia perfeitamente que do outro lado, do lado das vítimas, iriam estar jovens adolescentes, pouco mais velhas do que simples crianças, que era imperioso aterrorizar, que era imperativo traumatizar, que era fundamental marcar indelevelmente e para o resto das suas vidas. Para ter a certeza que a nova geração irá formar-se e estruturar-se sabendo que o terror existe, que já o vivenciou. As gerações mais velhas estão cientes desse perigo e dessa ameaça permanente. Impunha-se, na lógica dos terroristas, estender esse conhecimento às novas gerações, aos jovens que estão a formar a sua personalidade. Foi isso que este ato ignóbil também quis significar. Um detalhe e um pormenor que mais não fez do que aumentar a perfídia.
Esta nova manifestação da barbárie só pode ter como resposta aumentar a nossa indignação e reforçar a nossa determinação no combate ao terror assassino dos que, em nossa casa, pretendem destruir a nossa forma de viver e o nosso modo de vida. E fazê-lo de uma forma redobrada. Atacaram os nossos jovens, atacaram-nos a nós e atacaram as gerações futuras. Dentro do respeito pela lei, que preservamos e queremos cumprir – e nisso também nos diferenciamos dos cobardes terroristas demonstrando a superioridade moral do nosso sistema – há que dar combate sem tréguas aos criminosos, àquilo que eles representam e ao modelo que nos querem impor. Se preciso for, endureça-se a lei, cominem-se sanções acessórias para os culpados, reforce-se toda a cooperação judicial internacional, aprofunde-se o sistema de trocas de informações entre serviços especializados de informações e contra-informações. Mas sob hipótese alguma poderemos dar aos criminosos terroristas o mais precioso dos bens por que eles buscam e lutam desenfreadamente: a nossa liberdade e o controle das nossas vidas.
É por isso que impõe-se saber reagir a frio e com racionalidade a esta horda sanguinária. Reagir a quente e deixarmo-nos levar pelo calor das emoções, advogando medidas aparentemente – mas só aparentemente – eficazes, tais como o fecho de fronteiras, as limitações à liberdade de circulação de pessoas e outras que tais, constitui um erro crasso que se impõe evitar. Entrar por aí será, sempre, fazer o jogo do nossos inimigos, irmos jogar para o campo deles e com as regras deles. O desafio tem de ser travado no nosso campo e com as nossas regras. E a nossa vitória sobre esta cadeia de crime organizado que está disseminada por grande parte do continente europeu dependerá, tão-só, da unidade de que dermos provas, da solidariedade que formos capazes de evidenciar. Estará aí o segredo da nossa vitória sobre esta forma moderna de mal que, a maior parte das vezes, actua, cobardemente, em nome de um qualquer deus menor, à sombra de uma qualquer putativa religião. Deus algum, verdadeiro Deus no sentido literal da palavra, pode justificar que se mate, que se chacine, que se torture, que se aterrorize em seu nome.
Mas esse vai ser o nosso combate. O combate que vamos ter pela frente nos próximos (longos) anos. Que terá de ser travado de uma forma implacável e sem contemplações. Porque é da nossa civilização, do nosso modo de vida, da nossa forma de existência que se trata. E se não formos nós a zelar por nós próprios, ninguém mais o fará. É bom que nos consciencializemos e que nos habituemos à ideia do que nos espera. Sobretudo porque o horizonte é escuro e as dificuldades que se anteveem nesse combate não serão poucas nem fáceis.
by João Pedro Simões Dias | Mai 17, 2017 | Diário de Aveiro
Justamente no primeiro dia útil da nova presidência francesa, na passada segunda-feira, enquanto Emmanuel Macron se deslocava a Berlim para a sua primeira cimeira com a chanceler Angela Merkel visando retomar os laços do eixo franco-alemão na UE, o governo espanhol apresentou em Bruxelas um ousado plano visando a reforma da governação da zona euro. Dizem as notícias mais fidedignas que o referido plano terá sido acordado ou consensualizado por ocasião da cimeira dos países do sul da União, que reuniu em Lisboa, no passado mês de janeiro, António Costa, Mariano Rajoy (Espanha), François Hollande (França), Alexis Tsipras (Grécia), Nikos Anastasiades (Chipre), Paolo Gentiloni (Itália) e Joseph Muscat (Malta). Como já na altura se assinalou, o tema dominante desta cimeira foi a reforma da política monetária da UE, o acabamento da união económica e monetária e a introdução de mudanças e de reformas profundas na Zona Euro.
A coincidência da divulgação pública destas medidas por parte do governo espanhol com a deslocação de Macron a Berlim, não foi produto do acaso. Resulta do facto de, entre o texto consensualizado entre Madrid e Lisboa e as posições do novo Presidente francês em matéria de reforma da governação da zona euro existir uma ampla área de sintonia e consenso. Mas também zonas de dissenso e de divergência. Madrid apresentou as suas propostas em Bruxelas; Macron foi levá-las pessoalmente e em mão a Angela Merkel. No fundo, as mensagens, não tendo sido as mesmas, centraram-se ambas em torno da reforma da zona euro.
Entrando, no detalhe das medidas subscritas por Espanha e Portugal e as que são sustentadas pelo novo Presidente francês, como já se referiu, notam-se algumas divergências pontuais. Espanha e Portugal, por exemplo, defendem a criação de um orçamento anti-crise para a zona euro, um seguro de desemprego comunitário, a mutualização da dívida dos países da zona euro através da emissão de eurobonds, a conclusão da união bancária, a reforma do Pacto de Estabilidade retirando-lhe a componente “pro-cíclica” e o reforço da legitimidade democrática do Eurogrupo. Deste conjunto alargado de medidas, Macron já deu sinais de discordar, pelo menos para já, da mutualização das dívidas dos Estados da eurozona através da criação do mecanismo dos eurobonds. É uma discordância assinalável posto que, na proposta formulada por Madrid e que Portugal subscreveu, o mecanismo dos eurobonds constituía elemento fulcral e central.
Da parte do programa defendido pelo Presidente francês, por seu lado, há um elemento original – é defendida a criação de um Parlamento dos Estados da zona euro. E esta proposta parece merecer a discordância e oposição do governo português com base no argumento de que seria impossível de ser concretizada sem uma prévia conferência intergovernamental que procedesse a uma revisão dos tratados actualmente em vigor. Ora, parece defender – e bem! – o governo português que, no presente momento, não existem condições políticas que possibilitem encetar com sucesso um processo de revisão dos tratados comunitários.
Pese embora estas divergências, que se encontram quando analisamos o detalhe das medidas propostas, constatamos que, apesar das divergências mais ou menos pontuais registadas, existe uma ampla zona de convergência e de possível consenso entre as posições que estão a ser, actualmente, sustentadas pelo novo governo francês e, pelo menos, por Espanha e Portugal. Significa isto que começam a ser criadas condições mínimas para, finalmente, ser encarada de frente a questão do acabamento da estrutura institucional e de governação da zona euro – cuja falta tanto se fez sentir nos dias mais pesados da última grande crise que atingiu a zona euro.
Decerto – neste continente em busca desesperada pelo seu norte e que parece condenado a adiar as suas decisões sempre à espera da realização do próximo ato eleitoral, dificilmente serão tomadas medidas ou decisões concretas antes das próximas eleições legislativas alemãs marcadas para o próximo mês de setembro. Apesar dessa pausa forçada, e com a consciência de que antes de setembro pouco ou nada de relevante acontecerá na União Europeia, pelo menos de previsível, nada impede que determinados caminhos se comecem a trilhar e a caminhar. O da reforma da governação da zona euro e do seu acabamento será, sem dúvida, um desses caminhos.
Se, nesse debate, conseguirmos encontrar Portugal no pelotão da frente da discussão que terá de ser travada – ainda que integrado no grupo dos países ditos do Sul que regularmente se têm vindo a reunir em cimeiras regulares, no quadro das quais, por exemplo, poderão vira a ser articuladas as posições de França, Espanha, Portugal, Itália e restantes Estados-membros – só poderemos ter razões para nos congratular e felicitar.
by João Pedro Simões Dias | Out 11, 2016 | Diário de Aveiro
Passadas as emoções iniciais provocadas pelo sucesso de António Guterres na sua corrida ao cargo de Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), é tempo de podermos extrair algumas lições desse sucesso que, tendo sido inegavelmente e em primeira linha um êxito do candidato, não deixou de ser, também, um triunfo nacional e um sucesso do país.
A primeira nota tem de se centrar, merecidamente, no êxito e no sucesso de António Guterres. Antes de mais e acima de tudo, foi dele o mérito da eleição e a ele se devem os créditos da mesma. Foi a sua personalidade, o seu currículo, a sua formação e a forma como exerceu durante dez anos a função de Alto Comissário para os Refugiados que constituíram o cartão de visita que culminou numa cena muito pouco vista no Conselho de Segurança: a aprovação da resolução propondo à Assembleia Geral a sua eleição aprovada por unanimidade e aclamação. Numa altura em que se cimentam as divisões no Conselho de Segurança, se multiplicam os vetos cruzados dos EUA, França e Reino Unido por um lado e Rússia por outro, a aprovação da referida resolução constituiu um intervalo de consenso e unanimidade como há muito não se via na sala de sessões do Conselho de Segurança.
A segunda ilação que podemos extrair de mais este êxito internacional do país é que, enquanto Estado actuando no quadro da sociedade internacional, Portugal tem tido uma projecção e um poder incomensuravelmente superiores ao que a sua real dimensão física poderia fazer supor. Ainda há poucos dias o influente jornal espanhol El País dava nota desse facto, assinalando que, num intervalo de dois anos, Portugal conseguia colocar dois nacionais seus à frente das duas principais organizações internacionais existentes (a UE e, agora, a ONU; a primeira com Durão Barroso entre 2004 e 2014 e agora a ONU com António Guterres entre 2017 e, no mínimo, 2021). Foram dois êxitos absolutamente notáveis da diplomacia portuguesa que merece todos os encómios e elogios que lhe possamos dirigir. E demonstra, inequivocamente, como, em torno de grandes causas mobilizadoras, este mesmo país se consegue reunir em torno dos seus melhores, envolvendo todos os órgãos de soberania, todos os partidos políticos, a generalidade das instituições da sociedade civil, sem distinção de cores ou credos. A última vez que tal sucedeu foi, curiosamente, também com a ONU e também com António Guterres – quando o então primeiro-ministro conseguiu mobilizar o país para o apoio à causa de Timor-Leste. Na senda da nossa tradição histórica, estamos destinados a dar ao mundo os melhores dos nossos melhores. É um facto notável que nos deve orgulhar.
A terceira lição a retirar desta candidatura vencedora é a de que, afinal, mesmo na sociedade internacional, nem tudo está perdido. Ainda permanece uma réstia de esperança em valores como a transparência, a decência, a ética ou o decoro. No momento em que decidiram dar maior transparência ao processo de escolha do Secretário-Geral das Nações Unidas, os membros do Conselho de Segurança não se deixaram aprisionar nem enredar em estratégias ínvias e obscuras que lançaram mão da candidatura da búlgara Kristalina Georgieva para criar entropias no processo. A votação obtida pela “búlgara oficial”, que acabou colocada atrás da “búlgara oficiosa”, não foi só a penalização de uma candidata; foi, também e principalmente, a censura de um método de atuação e de uma prática típica de uma diplomacia obscura e de confidencialidade protagonizada, sobretudo pelo eixo “Bruxelas-Berlim”.
O quarto ensinamento a retirar desta eleição de António Guterres prende-se com o absoluto desastre que foi a posição da União Europeia em todo este processo. Começando no facto de não ter sabido consensualizar a apresentação se um candidato comum aos seus Estados-membros e terminando no vergonhoso e incompreensível atraso do Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em cumprimentar e felicitar o candidato vencedor, passando pelo indiscreto apoio concedido à candidatura de última hora e à falta de imparcialidade que se exigia em todo este processo eleitoral.
Em quinto lugar e estreitamente ligada à posição da União Europeia, surgiu-nos a postura do governo de Berlim, verdadeiro motor do lançamento da candidatura da senhora Georgieva. Habituada a mandar na Europa, Merkel não percebeu uma coisa elementar: que o mundo já não é eurocêntrico e que nesse mesmo mundo a Alemanha não beneficia da posição de liderança ou supremacia que desfruta na Europa. Como anotava alguém há poucos dias, esta foi a prova provada de que Berlim tem muito a aprender sobre o que significa uma liderança e como se exerce uma liderança. Se quisermos construir um autêntico manual do que não fazer numa situação destas, basta dar o exemplo de tudo o que Merkel fez. Fez tudo o que não devia ter feito; não fez nada do que devia ter feito. Instrumentalizou as instituições comunitárias, serviu-se do governo búlgaro, quis encostar Putin à parede, ignorou a posição dos EUA, traiu e violou compromissos de neutralidade que tinha assumido, faltou à palavra dada. Nada disto é particularmente novo em Merkel – basta ver a posição que assumiu para com o chanceler Helmut Kohl que abandonou e traiu de forma ignóbil. Não tendo estado presente na mesa do Conselho de Segurança foi, talvez, a grande derrotada da votação do Conselho de Segurança. Veremos se aprendeu a lição; ou ainda se terá hipótese de voltar a intervir em assuntos desta magnitude. Em 2017 a Alemanha irá a votos…
by João Pedro Simões Dias | Jun 12, 2015 | Diário de Aveiro
1. A adesão de Portugal às Comunidades Europeias
Completam-se hoje, 12 de junho, trinta anos sobre a data em que Portugal assinou, no Mosteiro dos Jerónimos, o seu Tratado de Adesão às, então, Comunidades Europeias. Poucas horas depois, em Madrid, repetir-se-ia o ato com a assinatura do Tratado de Adesão espanhol. Culminando oito anos de intensas e difíceis negociações, iniciadas em 1977 sob os auspícios do primeiro-ministro Mário Soares e do ministro dos negócios estrangeiros Medeiros Ferreira, naquele 12 de Junho de 1985 as Comunidades Europeias davam o primeiro passo para deixarem de ter 10 membros e passarem a constituir, a partir de 1 de janeiro seguinte, a “Europa dos doze”. Assim se manteria até 1995 quando os “doze” deram lugar aos “quinze”, com as adesões da Finlândia, Áustria e Suécia. Trinta anos depois impõe-se recordar o ambiente daquela Europa a que aderimos; e, em texto próximo, ensaiarmos uma avaliação ou balanço dessa aventura europeia nacional.
A primeira questão que importa recordar prende-se com o mito que escutámos durante muitos anos segundo o qual, com a adesão às Comunidades Europeias, Portugal havia “aderido à Europa”. Sempre questionámos essa afirmação, por simplista e incorreta. E, em trabalho académico publicado (“A cooperação europeia e Portugal, 1945-1986”, SPB Editora, Lisboa 1997), tivemos oportunidade de detalhar o erro da afirmação relembrando e recordando, de forma aprofundada, que desde o fim da segunda guerra mundial, pese embora o regime político vigente no país, Portugal esteve, quase sempre, presente e envolvido em todas as organizações europeias que se constituíram, nos mais diferentes domínios de atividade. As exceções foram, justamente, as Comunidades Europeias e o Conselho da Europa. Excluindo estas duas organizações, Portugal esteve nas restantes que se criaram na Europa ou a partir da Europa do pós segunda guerra mundial.
Foi assim, no domínio económico, com a OECE (que se viria a transformar em OCDE), criada para gerir os fundos transferidos dos EUA para a Europa ao abrigo do Plano Marshall, para fazer face à reconstrução europeia (e isto apesar de não termos tido envolvimento direto no conflito militar mundial) – num processo negocial, de resto, recheado de peripécias e movimentações diplomáticas curiosíssimas que permitiu que Portugal tivesse o estatuto de Estado fundador; foi assim, no domínio político-militar, com o Tratado de Washington ou do Atlântico Norte que instituiu a Aliança Atlântica (NATO), unindo os Estados da Europa ocidental aos EUA e ao Canadá, com o pretexto de defender o ocidente do perigo russo, e da qual Portugal foi também membro fundador; foi assim, no plano político-económico, com a EFTA – tentativa de resposta britânica à criação das Comunidades Europeias, de que o nosso país também foi fundador; e foi assim quando, em meados da década de cinquenta, Portugal foi admitido na ONU, a organização global feita à imagem dos vencedores da segunda guerra mundial. Fenece, assim, em absoluto, a ideia que durante muito tempo fez o seu caminho entre nós, segundo a qual, aderindo às Comunidades Europeias, tínhamos “aderido à Europa”. Não, não é verdade; além de já lá estarmos e integrarmos geograficamente essa Europa desde o nosso nascimento como Estado e Nação, já nela e nas suas principais organizações económicas, políticas e militares nos encontrávamos desde o fim da segunda guerra mundial e antes mesmo de aderirmos às Comunidades Europeias.
A segunda questão que importa realçar e recordar é que, tendo “apenas” passado trinta anos sobre o evento que evocamos, no plano histórico parece ter sido uma eternidade tantos e tais foram os acontecimentos que se sucederam, muitas vezes a uma velocidade vertiginosa; a ponto de, deles tendo sido testemunhas diretas, na maior parte dos casos não havermos assimilado totalmente a dimensão daquilo a que assistíamos.
Vivíamos, na altura, em pleno mundo caracterizado por uma ordem mundial estranha – que era o mundo saído da segunda guerra mundial ou, por simplificação de linguagem, o mundo da guerra-fria. Numa palavra, estava-se em pleno mundo bipolar. Eram dois os dois blocos estratégicos: o Ocidente e o Oriente; eram duas as superpotências existentes: os EUA e a URSS; eram duas as “Europas” politicamente relevantes: a “Europa Ocidental” e a “Europa Oriental”; eram duas as organizações de defesa preocupadas com o território europeu: a NATO e o Pacto de Varsóvia; eram duas as organizações económicas de feição europeia: a CEE e o COMECOM; eram duas as Alemanhas existentes: a República Federal da Alemanha e a República Democrática da Alemanha; e, finalmente e para cúmulo, eram duas as cidades de Berlim: Berlim ocidental e Berlim leste.
Quatro anos depois da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, “esta” Europa a que acabávamos de aderir desapareceu. Dentro e fora das Comunidades. Estas, encetaram o caminho da UEM e da união política – e surgiriam as CIG’s que estariam na origem do Tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia e abriria caminho para a criação da moeda única europeia; fora das Comunidades, no plano geopolítico, tudo mudou – ruiu o Muro, reunificou-se a Alemanha, implodiu a URSS, dissolveram-se o COMECON e o Pacto de Varsóvia, multiplicaram-se os Estados e as nações no centro e no leste da Europa, renasceram os nacionalismos, abriu-se a porta ao alargamento, ad absurdum, da União Europeia. Estava, pois, criado o caldo de cultura suficiente e necessário para a Europa e o espírito europeu entrarem em crise, serem postos em causa na raiz da sua essência, anunciando períodos de crise que, sabemos hoje, não deixariam de fazer a sua aparição.
by João Pedro Simões Dias | Jul 8, 2014 | Diário de Aveiro
Quando, no passado dia 1, a Itália assumiu a presidência rotativa e turno do Conselho da União Europeia, era grande a expectativa que se erigia em torno do seu novo Primeiro-Ministro, o democrata (socialista) Matteo Renzi, o mais novo Primeiro-Ministro Italiano de sempre que, cansado de governar apenas a sua cidade de Florença, se abalançou a conquistar a liderança do Partido Democrático e, consequentemente, apear o também democrata Enrico Letta da chefia do governo de Roma.
Face à inexperiência em matéria de política europeia do chefe do governo romano, os receios eram muitos, as dúvidas não eram menores e, portanto, a expectativa dir-se-ia imensa. Expectativa que, apenas uns quantos – poucos – acreditavam que se poderia volver em oportunidade. Ademais, Renzi, talvez um tanto ou quanto injustamente, acabava por sofrer da “síndrome Hollande”: talvez o socialista europeu que mais esperanças concitou nos últimos anos mas cuja errância e descalabro na condução da política (interna e externa) francesa o arrastou para as ruas da amargura, a ele e ao seu partido, como os eleitores fizeram questão de afirmar, sem dó nem piedade, nas últimas eleições autárquicas e, sobretudo, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu. Face a Renzi, as expectativas não ousaram subir tão alto como subiram com Hollande. A prudência, quase sempre, é boa conselheira, e um erro cometido duas vezes não poderia continuar a ser qualificado como um simples erro. E por isso, a começar nos próprios socialistas europeus, Renzi foi olhado com reserva, com uma certa esperança secreta mas quase nunca verbalizada.
O certo é que bastaram dois discursos para tudo mudar, para a força da palavra se impor e o novo Primeiro-Ministro italiano ir buscar créditos onde menos se esperava e conseguir gerar um sentimento generalizado de, no mínimo, elevadas e positivas expectativas.
Os dois discursos em causa aconteceram, primeiro, em Roma, ante o Parlamento italiano quando Renzi apresentou as grandes linhas gerais a que pensava submeter o seu mandato semestral à frente do Conselho da União Europeia; e, depois, em Estrasburgo, ante o plenário do Parlamento Europeu, quando os novos eurodeputados recentemente eleitos iniciaram a nova legislatura europeia discutindo as prioridades da nova presidência do Conselho. Ambos os discursos foram complementares e constituíram uma lufada de ar fresco no cinzentismo eurocrático que têm vindo a pairar sobre o céu europeu.
Desde logo e em primeiro lugar, Renzi ousou assumir o que nas mais recentes décadas muitos líderes europeus pareceram ter esquecido – “o grande desafio do semestre será não apenas agendar medidas e encontros, mas reencontrar a alma da Europa e o sentido de estarmos juntos. […] Há uma identidade a reencontrar.” De forma clara, explícita e assumida, há aqui um verdadeiro apelo a um regresso aos valores, aos princípios, a tudo o que determinou e esteve na origem fundacional do atual projecto europeu. A União Europeia não se pode reduzir a um redil despersonalizado de números, estatísticas e burocracias. Tem de ir mais longe e conquistar a alma dos europeus. Respeitando a sua diversidade mas identificando a sua identidade. É um discurso novo que se escuta, com a particularidade de coincidir com o momento em que, tudo indica, Jean-Claude Juncker – o democrata-cristão sobrante da era de Kohl e Mitterrand, que alguns consideram como o mais socialista dos democratas-cristãos europeus pela sua sensibilidade à dimensão social da ideia europeia – acederá à presidência da Comissão Europeia.
Mas Renzi foi mais longe e disse mais. Sem estender a mão, apontou o dedo a Berlim e a Haia – a Merkel mas também ao seu correligionário socialista Jeroen Dijsselbloem, Presidente do Eurogrupo, os arautos e os rostos mais visíveis das políticas austeritárias e ortodoxas europeias de reacção à crise – para assumir que “sem crescimento a Europa morre”. E que crescimento económico não tem de significar falta de rigor orçamental. Curiosamente – ou talvez não – foi da liderança parlamentar do PPE que se ouviram as principais críticas ao modelo de desenvolvimento apresentado por Renzi. O alemão Manfred Weber, novo líder da bancada do PPE (mas que, como qualquer eurodeputado alemão, antes de ser de qualquer partido é…. alemão), criticou fortemente Renzi, a propósito da “flexibilidade” orçamental. Foi a oportunidade para recordar que a Alemanha conseguiu transformar-se na potência económica que é hoje, precisamente à custa da violação das regras previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento, tendo sido objecto de processo de incumprimento por défice excessivo que a anterior Comissão Europeia resolveu arquivar. Ou seja, foi com base na violação das regras orçamentais da União, que a Alemanha se guindou à posição de supremacia económica de que hoje beneficia. E Renzi relembrou-o e recordou-o. O que não é frequente no Parlamento Europeu.
Em suma, os tempos próximos merecem que se dedique uma atenção cuidada à prestação do novo Primeiro-Ministro italiano. Matteo Renzi pode vir a ser aquela voz que faltava aos socialistas europeus (que o francês Hollande defraudou e o alemão Schulz nunca conseguiu ser) para credibilizar a sua visão europeia e o seu próprio projeto europeu. Se assim for, serão boas notícias para o futuro próximo da União Europeia.