A III Cimeira do Sul

Foi há dois dias que, em Madrid, reuniram pela terceira vez em cimeira, os Estados do sul mediterrânico – a Espanha, França, Itália, Portugal, Grécia, Chipre e Malta. Disseram algumas coisas óbvias, outras quantas banalidades mas deram sinais de, de uma forma informal e não estruturada (ao contrário, por exemplo, do que acontece com os Estados do Grupo de Visegrado), estarem na disposição de buscarem os consenso possíveis para enfrentarem os desafios que se vão colocar à Europa durante a fase de negociação do Brexit e, sobretudo, após a concretização da saída do Reino Unido. Foi a primeira vez que este grupo se reuniu, como foi assinalado, depois da declaração de Roma que assinalou os 60 anos do Tratado de Roma e depois de o Reino Unido ter accionado formalmente o artigo 50º do Tratado de Lisboa. Foi, ao mesmo tempo, o momento adequado para ser consensualizada uma posição comum face à próxima cimeira de finais de abril, em Bruxelas, do Conselho Europeu.
Ainda sobre as conclusões desta III Cimeira do Sul europeu, um aspeto se destaca, a meu ver, de todos os restantes – pela sua importância prática, pela sua relevância humanitária e pelo seu impacto na atual (des)ordem internacional. Refiro-me à política de vistos, que foi decidido pelos sete de Madrid que deverá continuar a ser uma política e uma competência comunitária. A pressão das migrações e dos refugiados conferem, a esta decisão, uma importância enorme. Mas faz recair também, sobre as estruturas decisórias e a máquina administrativa da União um repto e um desafio sem igual – o de conseguir montar e manter em funcionamento eficaz um serviço adequado a dar uma resposta em tempo útil aos pedidos e à pressão de que vier a ser alvo. Mas isso será todo o contrário do que, até agora, tem acontecido e sucedido.
E a importância desta cimeira pode, ainda, ser aferida por dois outros dados de relevo: em primeiro lugar o facto de, estes sete Estados que reuniram em Madrid, quando articulados, poderem formar, a qualquer momento, uma minoria de bloqueio que impede qualquer tomada de deliberação ordinária em sede de Conselho da União; em segundo lugar, a sua heterogeneidade. Ao lado de três das maiores economias da União (França, Itália e Espanha), tomam assento na mesma três dos Estados resgatados na sequência da crise das dívidas soberana (Grécia, Portugal e Chipre). Ou seja, seria difícil encontrar composição mais heterogénea para um grupo de Estados que voluntariamente se deseja articular e consensualizar posições no quadro europeu. Isto porque, seguramente, independentemente das diferenças económicas que intercedem entre eles, o facto de serem Estados do “mal-amado” sul europeu, são Estados que comungam de muitas especificidades comuns, que partilham muitos problemas e desafios em comum e que encontram nessas dificuldades que se lhes deparam uma boa base de partida para entendimentos futuros. Sobretudo num tempo em que, todos os indícios apontam para tal, a discussão do Livro Branco sobre o futuro da União, da responsabilidade da Comissão Europeia liderada por Jean-Claude Juncker, acabará para apontar para um cenário de desenvolvimento futuro da União em torno de vários círculos ou a várias velocidades. No fundo, um cenário em que os 27 sobrantes não participarão, todos, nas mesmas e das mesmas políticas comuns, podendo escolher, de entre as existentes, quais aquelas em que pretendem participar e quais aquelas matérias onde pretendem reservar para a sua competência nacional o poder e a decisão final. Um pouco, afinal, à imagem e semelhança do que já acontece hoje em dia com, por exemplo, a União Económica e Monetária e o espaço Schengen.
Numa altura em que nada parece impedir que as velocidades diferentes para que aponta o futuro da integração do projeto europeu tenha na sua génese um critério geográfico – e em que outros parece já o terem compreendido e parecem apostados nisso mesmo, e teremos de voltar sempre ao caso do Grupo de Visegrado – articular e consensualizar posições e interesses entre estes sete Estados reunidos em Madrid pode não constituir o método ideal de contribuir para a o futuro da integração europeia. Mas como, frequentemente, o ótimo é inimigo do bom, pode ser a melhor forma possível destes Estados darem o seu contributo para esse mesmo futuro.

Os casos de Gibraltar, Escócia e Catalunha

Ainda não passou o tempo suficiente para se digerirem os primeiros impactos da oficialização britânica do desejo de sair da União Europeia, através do acionamento do mecanismo previsto no artigo 50º do Tratado de Lisboa, e já começaram a surgir os primeiros imbróglios que terão de ser dirimidos entre Londres e Bruxelas – ou, no mínimo, entre Londres e algumas das capitais europeias.
A primeira questão surgida escassos dias sobre a invocação do referido artigo 50º do Tratado de Lisboa derivou do estatuto político de Gibraltar – de cuja administração Londres não dá sinal de querer prescindir, mas de cuja soberania Madrid também não pretende abrir mão.
De facto, Gibraltar – território britânico desde 1713 que ainda em 2002 rejeitou através de referendo popular ficar sob soberania partilhada de Londres e Madrid – irá tornar-se no primeiro exemplo de uma situação que, tendo sido gerida até agora no quadro da União Europeia, passará, com a saída do Reino Unido da União, para o plano do relacionamento bilateral entre o Reino Unido e Espanha. E, nesse plano bilateral, não poderá deixar de ser dissociado de outras questões que oporão ambos estes Estados. A questão escocesa será outra de entre essas mais relevantes.
Depois de o Reino Unido ter decidido avançar com o Brexit, o governo nacionalista de Glasgow tomou a decisão de encetar um novo procedimento referendário pretendendo desligar-se do Reino Unido e, subsequentemente, ingressar na União Europeia. Até agora, Londres tinha em Madrid um aliado de peso que estaria na disposição de vetar a referida adesão escocesa à União. Sobretudo por receio de abrir um precedente que, a prazo, se pudesse virar contra si própria, pensando sobretudo na situação da Catalunha – onde as forças nacionalistas e independentistas fazem campanha pela autodeterminação da Catalunha e pela defesa do seu ingresso na União Europeia.
Surpreendentemente, nos últimos dias, no momento em que se elevou a escalada verbal entre o Reino Unido e Espanha a propósito do estatuto político do rochedo, registou-se uma alteração significativa na posição espanhola relativamente à Escócia. O ministro espanhol dos negócios estrangeiros, Alfonso Dastis veio, pela primeira vez, anunciar que Madrid não aporia o seu veto a uma eventual candidatura de uma futura Escócia independente à União Europeia deixando, assim, as portas abertas para que, num futuro próximo, uma eventual Escócia independente se possa tornar membro de pleno direito da União Europeia.
Com esta mudança ou evolução radical na posição oficial de Espanha, Madrid dá por adquirido que, a prazo, a sua estratégia para lidar com a questão da Catalunha terá de assentar em novos pressupostos – o, neste caso, aliado britânico está em vias de abandonar o clube europeu e ao Reino de Espanha pouco mais restará do que contar consigo própria numa eventual batalha em torno da questão catalã.
Qualquer um destes três casos – o caso de Gibraltar, o caso da Escócia e o caso da Catalunha – enquadra-se num contexto mais vasto de renascimento das punções nacionalistas um pouco por toda a Europa. Até agora, estas questões eram tratadas no quadro da União Europeia e com uma intervenção de mediação frequentemente exercida por parte das instituições comuns, nomeadamente a Comissão Europeia. A concretização do Brexit fará com que, doravante, os mesmos se remetam para o plano do relacionamento bilateral entre os Estados envolvidos. Trata-se de uma alteração não desprovida de consequências, e de consequências que não facilitam a resolução destes diferendos.
A trilogia “Gibraltar – Escócia – Catalunha” volve-se, assim, num dos primeiros, talvez o primeiro, teste que, em matéria de política externa e relações internacionais, se vai colocar à União Europeia a 27 e aos seus Estados membros no novo relacionamento que vai ser necessário encetar com Reino Unido que, além de novos desafios externos, se irá ver confrontado com novos desafios internos, sendo que o da sua sobrevivência ou subsistência como Reino “unido” não será, seguramente, o menor de todos eles. Mas pode vir a ser também, paralelamente, a possibilidade de começar a ser edificado um outro modelo de ordem internacional que pode vir a conferir a esse mesmo Reino Unido, se como tal se conseguir conservar e preservar, um papel muito mais ativo na articulação da Europa, a que continuará a pertencer, com os aliados transatlânticos, nomeadamente os Estados Unidos e o Canadá.
Serão, pois, tempos de mutações relevantes aqueles que poderemos ter por diante. Não, necessariamente, positivos; mas, seguramente, relevantes e importantes.

A Europa da defesa

A última cimeira informal de chefes de Estado e de Governo da União Europeia, ocorrida em Brastilava – com a particularidade de reunir apenas 27 dos 28 líderes europeus posto que, realizando-se para, supostamente, abordar o pós-Brexit, não contou com a presença da primeira-ministra May – surpreendeu a generalidade dos observadores quando, por forte influência de Hollande, resolveu erigir a questão da defesa comum europeia num dos temas centrais que ocupou os chefes de Estado e de Governo dos 27.
Não porque a questão da defesa europeia seja assunto menor ou tema irrelevante. Bem pelo contrário! Acontece, porém, que para a União Europeia se lançar numa tarefa de tal forma grandiosa e de tal magnitude como a de lançar as bases para a edificação de um projecto comum de defesa europeia, tal supõe a existência prévia de um consenso político que está muito longe de coincidir com aquele que a Europa da União actualmente conhece. Ocorre, aliás, recordar, que não é esta a primeira vez que a Europa tenta lançar e construir um projecto comum de defesa.
Durante a fase de negociações do que viria a ser o Tratado fundador da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, Jean Monnet aproveitou para di­rigir um pequeno memorando a René Pleven — en­tretanto nomeado Pre­sidente do Con­selho francês — onde se sugeria a federação da Europa em torno de um Plano Schu­man desen­volvido que agisse de forma con­certada com os Es­tados Unidos e com o império britânico para fazer face à ameaça mili­tar que provinha do leste da Europa. Conjuntamente com uma equipa restrita de colaboradores diretos — no­meadamente Bernard Clappier, Paul Reuter, Etienne Hirsch, Pierre Uri e Hervé Alphand — Mon­net deitou mão à tarefa de redigir um projeto de Tratado que contemplasse a criação de um exército europeu in­tegrado sob comando único e que fa­ria parte do dispositivo atlân­tico de de­fesa e segurança, dotado de um or­çamento comum e colocado sob autoridade de um Mi­nistro Europeu da Defesa que seria respon­sável ante um Con­selho de Mi­nistros e uma As­sembleia Parlamentar europeia. Este projeto ambicioso viria a ser con­denado ao fracasso às mãos e aos votos da própria Assembleia Nacional francesa quando, uma estranha aliança entre deputados gaullistas e comunistas, acabaria por rejeitar a aprovação do respetivo tratado institutivo, depois de o mesmo já ter sido aprovado por todos os parlamentos dos restantes Estados comunitários. Foi este, aliás, o primeiro de uma série de revezes que o projeto comunitário conheceria desde o seu início até aos dias de hoje, insucesso que o próprio Jean Monnet sentiu como um fra­cas­so pes­soal e de­terminou a sua de­missão do cargo que de­sem­pe­nhava na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço — infor­mando os seus colegas da Alta Autoridade, a 9 de Novembro de 1954, que não pretendia ser reconduzido no cargo.
Ora, no momento presente, em que a Europa da União demonstra a sua completa incapacidade em fazer frente aos principais desafios que tem pela frente – Brexit, migrantes, segurança, desemprego – introduzir na agenda política europeia o exigente e não consensual tema da defesa comum europeia, constitui óbvia manobra furtiva que demonstra que esta União Europeia tem aprendido muito pouco com a sua história e com os seus erros. Na impossibilidade de encontrar um consenso efetivo sobre temas concretos que atingem e preocupam os europeus, o Conselho Europeu (informal) optou pela “fuga em frente”: uma vez mais não perece ter sido o caminho mais prudente e mais avisado para enfrentar os reais problemas com a que o que resta da Europa da União de defronta e se debate.