by João Pedro Simões Dias | Ago 30, 2017 | Jornal Económico
Os tempos mais recentes têm sido pródigos em notícias esparsas, aparentemente não relacionadas entre si, que nos dão conta da realização de “pequenos” crimes cometidos um pouco por toda a Europa, tendo por alvo quer agentes de forças de segurança, quer militares, quer simples cidadãos individuais e indefesos. Por regra, são incidentes com viaturas automóveis, atropelamentos, crimes cometidos com armas brancas proibidas, um ou outro com armas de fogo. Crimes que, nas sociedades ocidentais de há poucos anos se incluiriam na lista da pequena criminalidade que deveria ser tratada no âmbito da segurança pública.
Acontece que, a ligar todas estas ações criminosas, tem surgido quase sempre a sua reivindicação por parte do Daesh – que tanto reclama a autoria e paternidade dos grandes atentados como o de há duas semanas em Barcelona como, simultaneamente, reivindica os “pequenos” crimes praticados em Bruxelas, em Cambrils, em Estocolmo ou em Turku, por exemplo.
Significa isto que, hoje em dia, face à radicalização jiadista em curso em muitas comunidades muçulmanas, nenhum lugar, verdadeiramente nenhum lugar, do Ocidente se pode considerar um lugar seguro e um lugar onde estejamos a salvo dos que invocam Deus para cometerem toda a espécie de barbárie e de carnificina. E que, cúmulo dos cúmulos, justificam essa mesma barbárie com a invocação desse mesmo Deus. Paradoxos e contradições.
Mas isto significa, também, que não basta nem chega proclamar que não devemos deixar que os terroristas condicionem e determinem o nosso modo de vida e influam sobre as nossas decisões. É falso. É mentira. Por muito que nos custe termos de o admitir, os terroristas já condicionam e já determinam e já influem sobre o nosso modo de vida. E, no mínimo, ingénuo será todo aquele que programar qualquer alteração à sua rotina diária sem levar em consideração essa nova normalidade que se instalou nas nossas vidas e na vida de muitos dos nossos concidadãos europeus (sim, porque não nos esqueçamos que todos nós, europeus dos Estados da União, além de sermos cidadãos de cada um dos seus Estados, estamos unidos por uma cidadania comum que é a europeia; uma cidadania que tem a particularidade de, pela primeira vez, nos aparecer dissociada do conceito de nacionalidade).
É, pois, com uma nova normalidade que temos de nos confrontar.
Nessa perspetiva, o desafio que temos pela frente não pode nem deve ser a negação dessa mesma realidade que a todos se nos impõe e que a todos nos condiciona. Fazê-lo equivaleria a usar a tática da avestruz, enfiando a cabeça na areia para não vermos nem conhecermos dessa mesma realidade.
Pelo contrário – o desafio que temos por diante passa pela adoção de todas as medidas que se afigurem necessárias para reverter essa nova normalidade, não nos conformando com ela, mas partindo do princípio – inteligente – de que ela está aí e veio para ficar se nada fizermos para a alterar.
E no domínio das medidas a tomar, um princípio existe que se afigura inquestionável. Nenhum Estado, hoje em dia, tem a possibilidade de, por si só, isoladamente, combater este fenómeno do terrorismo hodierno. Nenhum Estado. Impõe-se, inelutavelmente, reforçar e aprofundar a cooperação internacional no combate ao terrorismo. E não deixar que este reforço e este aprofundamento se limite a nobres proclamações, de muito escasso efeito prático.
Se levarmos em consideração que, só no quadro dos Estados-membros da União Europeia existem mais de 50 serviços e autoridades com competências (nacionais ou regionais) para atuarem nos domínios da prevenção e combate ao terrorismo, percebemos com facilidade que a ineficácia terá de ser a regra e a norma. Talvez, por isso, começar por criar um serviço europeu, supranacional, de informações e inteligência possa ser o ponto de partida para um eficaz combate multidisciplinar a este fenómeno novo que já condiciona as nossas vidas e a nossa nova realidade. Dir-se-á: tal constituiria mais uma diminuição do que resta da soberania dos Estados. É verdade. Mas perante desafios transnacionais, a resposta não pode ser nacional. Será, provavelmente, o menor dos preços que teremos a pagar para garantia da nossa segurança.
by João Pedro Simões Dias | Jun 14, 2017 | Diário de Aveiro
Há precisamente um ano, na sequência duma decisão bizarra e incompreensível do então Primeiro-Ministro britânico, David Cameron – que, de resto, acabaria por lhe custar o cargo e a carreira política – o Reino Unido enfrentava uma campanha eleitoral para o referendo que iria decidir da continuidade, ou não, do Reino na União Europeia. O resultado é conhecido: a maioria dos britânicos optaram pelo brexit, escolhendo sair da União.
A primeira consequência deste referendo, recorde-se, foi a demissão de David Cameron da liderança do governo britânico. Para dar cumprimento ao resultado eleitoral, impunha-se que o governo britânico encetasse o processo de separação de Bruxelas. Cameron, que tinha apostado todas as suas fichas no “remain”, não tinha condições, nem pessoais nem politicas, para continuar no nº 10 de Downing Street. Surpreendentemente, a bancada conservadora em Westminster acabou por escolher para liderar o governo a, até então, responsável pela administração interna nos governos de Cameron, Theresa May.
Theresa May que, no referendo acabado de realizar, havia militado na causa do seu Primeiro-Ministro e havia-se comprometido em favor da permanência do Reino na União Europeia. A perplexidade foi imediata – a condução de todo o processo de separação do Reino Unido da União Europeia iria ser confiado a alguém que, semanas antes, se havia empenhado em defender justamente o contrário, isto é, a permanência do Reino na União Europeia. Foi um começo pouco fiável e nada de molde a justificar grandes entusiasmos. Seguidamente, seria a própria nova Primeira-Ministra a, reiteradamente, afirmar que se sentia confortável com a maioria absoluta de que dispunha na Câmara dos Comuns, herdada de Cameron, e que, por isso, não tencionava convocar eleições legislativas antecipadas.
Em Abril passado, porém, prestes a iniciar as conversações com Bruxelas, numa altura em que os estudos eleitorais davam mais de vinte pontos percentuais de vantagem aos conservadores sobre os trabalhistas de um Jeremy Corbyn pouco menos do que desacreditado, May vislumbrou uma janela de oportunidade para reforçar a sua maioria, dizimar o seu adversário e fortalecer o seu poder. Violando a palavra dada, convocou eleições legislativas que decorreram na passada semana. E, contrariamente às expectativas de que partiu, em vez de reforçar a sua maioria absoluta, perdeu-a; em lugar de aniquilar o seu adversário, reforçou-o; querendo fortalecer o seu poder, acabou enfraquecida. Pela segunda vez em menos de um ano, o eleitorado trocou as voltas aos Primeiros-Ministros britânicos e puniu May como há um ano tinha punido Cameron – qual deles o menos hábil a interpretar e avaliar o sentido e o sentimento do eleitorado britânico. É certo que, desta feita, houve razões acrescidas para essa punição eleitoral que recaiu sobre May: a falta à palavra dada; a tergiversação em matéria de princípios e valores; a postura arrogante assumida durante a campanha eleitoral; propostas eleitoralmente mal apresentadas, nomeadamente de natureza fiscal; a colagem, em matéria de política externa, às errâncias de Donald Trump. E, obviamente, a questão do terrorismo; sobretudo tendo sido May, durante seis anos, a ministra responsável pela pasta da segurança interna.
Esta errada avaliação eleitoral, da exclusiva responsabilidade da Primeira-Ministra britânica, acabou por estar na origem daquilo que os britânicos designam por um “parlamento suspenso” (um “hung parliament”) – um parlamento sem maioria absoluta de nenhum partido, num país com um sistema eleitoral maioritário a uma volta, propenso à emergência de um sistema partidário de bipartidarismo tendencialmente perfeito. Os conservadores perderam a sua maioria absoluta mas, continuando a ser o partido mais votado, persistiram na indicação de Theresa May para a liderança de um governo minoritário que, tudo o indica, alcançará a maioria através de um entendimento parlamentar com os unionistas da Irlanda do Norte (DUP). É, num primeiro momento, uma aliança eivada de espinhos que podem vir a revelar-se fatais com o decurso do tempo. Uma vez mais, mais do que na questão das políticas internas, será na postura face ao brexit que se podem vir a revelar as maiores contradições deste acordo de conveniência, necessariamente a prazo. E nem parece improvável que as primeiras e mais graves contradições surjam de dentro do próprio Partido Conservador. De resto, já há notícias de movimentações internas as quais, se num primeiro momento até poderão permitir o surgimento de um novo gabinete de May, a médio prazo poderão torná-lo completamente inviável, sacrificando a sua própria liderança. Mais do que nunca, Theresa May deverá sentir-se uma Primeira-Ministra a prazo. E a prazo curto.
E o calendário promete não a ajudar. Se a apresentação do seu programa de governo (o célebre “Queens Speech”, discurso da Rainha que apresenta o programa e as diretivas do governo para o ano legislativo subsequente) já foi adiado “sine die”, para o início da próxima semana estão agendadas as primeiras conversações entre o Reino Unido e a União Europeia para concretização do brexit. Será o grande desafio que o próximo governo vai ter pela frente. E será um governo enfraquecido eleitoralmente, diminuído politicamente e minoritário partidariamente que terá de enfrentar o maior desafio político do Reino Unido desde o final da segunda guerra mundial.
Num quadro de tanta indecisão, de tanta indefinição e de tanta turbulência, não será risco demasiado voltarmos a uma convicção que já anteriormente tivemos oportunidade de expressar – há brexits que estão condenados a concretizarem-se como …… remains.
by João Pedro Simões Dias | Jun 7, 2017 | Jornal Económico
Amanhã o Reino Unido vai a votos.
Na sequência do resultado do referendo sobre a permanência na União Europeia, que ditou o Brexit, e do consequente abandono do poder por parte de David Cameron, a primeira-ministra Theresa May optou por dissolver a Câmara dos Comuns para relegitimar o seu governo, reforçar a sua maioria e refrescar a sua liderança. Tudo para, em seu dizer, se encontrar em posição mais vantajosa para negociar com Bruxelas as condições de saída do Reino da União. Quando dissolveu a Câmara, as sondagens eram-lhe simpáticas: mais de vinte pontos percentuais de vantagem sobre um Partido Trabalhista anémico, radicalizado à esquerda em torno da liderança de um pouco ou nada carismático Jeremy Corbyn. May avaliou as suas possibilidades e arriscou. No entretanto, políticas internas mal percebidas ou mal explicadas, uma dose inesperada de arrogância que a levou a recusar debates eleitorais em que se fez substituir, uma colagem em muitos pontos da política externa às posições de Donald Trump e, sobretudo, a onda de ataques terroristas que teve obrigou a suspender a campanha eleitoral por duas vezes, na sequência dos ataques de Manchester e da London Bridge do passado sábado – tudo contribuiu para baralhar as opiniões e as sondagens, a ponto de, no momento em que este texto é escrito, a menos de 24 horas da abertura das urnas, os últimos números disponíveis apontem para a perda da maioria absoluta dos tories em Westminster e, necessariamente, para o surgimento de um governo mais débil, de uma maioria provavelmente só alcançada através de acordos parlamentares, ou seja, todo o contrário daquilo que Theresa May pretendia ao convocar estas eleições legislativas antecipadas.
Não seria, de resto, a primeira vez que tal sucederia. No referendo do ano passado, convocado por Cameron – e que, indiretamente, foi responsável por tudo o que se passou daí para cá em termos de estabilidade governativa britânica – a história foi a mesma: uma má avaliação do sentir e do sentimento de um povo, uma má perceção da tendência do eleitorado, que acabou por lhe custar a carreira política e mergulhar o Reino Unido no pântano de indefinição em que hoje se encontra. Theresa May que, recorde-se, no referendo do ano passado se destacou como defensora da permanência do Reino na União Europeia para, depois da queda de Cameron, acabar por aceitar liderar um governo que tinha como eixo central da sua existência fazer exatamente o oposto daquilo que ela própria defendeu e negociar com Bruxelas a saída do Reino da União, estará a ser vítima da sua própria errância política e da sua própria incoerência política. Tentou sanar ambas com o beneplácito do eleitorado e do sufrágio popular. Poderá estar a horas de ter de reconhecer ou admitir que a sua estratégia terá falhado.
Daí que, para respondermos à questão com que titulámos este texto – vai o Reino Unido mudar? – a nossa resposta só possa ser a de um receio de que, a haver mudança, a mesma seja em sentido negativo e na direção errada.
Dir-se-á – em que é que tudo isto nos toca ou nos interessa? Num mundo cada vez mais globalizado, toca-nos e interessa-nos de sobremaneira. Nós não votamos no Reino Unido nem escolhemos deputados para Westminster. Mas não nos podemos dar ao luxo de pensar que o que por lá acontece nos é estranho, alheio ou indiferente. Estamos perante uma eleição que vai influenciar significativamente o futuro da Europa na medida em que, qualquer que venha a ser o governo saído da mesma, a sua tarefa principal continuará a ser negociar as condições do brexit; nessa medida, nunca deixaremos de ser afetados pela decisão que os britânicos vierem a tomar. Estarmos atentos ao que por lá se vai passando é o mínimo que se nos pode exigir, em nome dos nossos próprios interesses e da nossa própria condição cidadã.
by João Pedro Simões Dias | Jun 7, 2017 | Diário de Aveiro
Amanhã, quinta-feira, a atenção política europeia vai centrar-se no Reino Unido: os britânicos voltam a ir às urnas, ainda que desta vez num contexto especial. O acto eleitoral foi convocado pela primeira-ministra Theresa May para reforçar e relegitimar o seu governo que tem pela frente a espinhosa tarefa de negociar e concretizar um Brexit escolhido, há precisamente um ano, na sequência de uma consulta popular convocada pelo então primeiro-ministro David Cameron.
Não chegasse, todavia, este particular contexto envolvente do acto eleitoral de amanhã, dá-se ainda o caso de o mesmo nos aparecer, inevitavelmente, condicionado pelos atentados terroristas que o Reino Unido tem sofrido – em Londres, em Manchester e, no passado fim-de-semana, de novo na capital britânica.
Ambos os factos – a postura de Theresa May ante o Brexit, ela que fez campanha pelo “Remain” no referendo do ano passado e, de repente, viu-se a braços com a liderança de um governo que tinha por principal tarefa, justamente, concretizar o Brexit; e a escalada do terrorismo islâmico radical e extremista no Reino Unido, contra o qual todo o empenho e perseverança da polícia britânica se tem revelado insuficiente – são suficientes para deixar em aberto todas as previsões sobre qual poderá vir a ser o veredicto das urnas, pese embora, à data de convocação deste acto eleitoral, os conservadores beneficiassem de mais de vinte pontos percentuais de vantagem sobre os trabalhistas.
Porém, a sucessão recente de erros do governo de May e a sua postura arrogante, por exemplo recusando participar em quaisquer debates eleitorais, poderão custar-lhe uma maioria em Westminster tão confortável como aquela de que presentemente beneficia. E assim, paradoxalmente, umas eleições que foram convocadas para darem suporte a um governo fortalecido e relegitimado eleitoralmente poderão acabar por conduzir a um governo comparativamente mais débil, menos forte e em condição mais desvantajosa para negociar com Bruxelas a saída do Reino da União. No fundo seria, a outra escala, a repetição do acontecido há um ano com a convocação do referendo sobre o Brexit por David Cameron: as previsões saíram furadas, o tiro saiu pela culatra. O eleitorado afirmou, de forma inequívoca, que nem sempre os governantes de turno sabem interpretar o seu sentir. O que sucedeu no referendo do ano passado, poderá vir a repetir-se nas eleições de amanhã. Não seria surpreendente.
Mas logo a seguir às eleições britânicas, teremos no próximo domingo, outro acto eleitoral de extraordinário relevo para a Europa – a primeira volta das eleições legislativas francesas.
Será o primeiro teste verdadeiro à recém-estreada presidência de Emmanuel Macron e, sobretudo, à capacidade que este teve, ou não, para dar um mínimo de forma institucional ao amplo movimento político e de cidadania que há poucas semanas o conduziu ao Eliseu. Macron tornou-se Presidente da República de França mercê de uma improvável conjugação de votos que cortou transversalmente a sociedade francesa, do centro-esquerda ao centro-direita. Beneficiou de muitos votos negativos, sobretudo daqueles que descreram no sistema político-partidário francês – desde os que quiseram recusar Le Pen aos que pretenderam censurar Fillon e penalizar Hollande e os respectivos partidos. O desafio que o novo Presidente tem, agora, pela frente, traduz-se em conseguir que o seu “La République En Marche” fidelize e sustenha uma parte significativa dos votos que ele reuniu. Se o conseguir fazer, nomeadamente se lograr uma maioria absoluta na Assembleia Nacional, a sua tarefa de governação será significativamente simplificada; se não lograr alcançar este desiderato e tiver de encetar uma política de alianças num parlamento previsivelmente mais fragmentado, com elevada representação da Frente Nacional, com os partidos tradicionais do sistema – republicanos gaullistas e socialistas – debilitados e enfraquecidos e uma extrema-esquerda previsivelmente bem representada, a tarefa da governação começará a complicar-se. Desde logo porque será necessário negociar uma maioria parlamentar que suporte o próprio governo.
A primeira volta destas eleições legislativas, a realizar no próximo domingo, já nos dará um cenário minimamente consistente que permita antecipar o resultado final e a composição definitiva da Assembleia Nacional francesa. A política europeia dos próximos anos vai depender, também, muito daquilo que vier a ser essa composição e das condições de governabilidade de que o Presidente francês venha a dispor.
E para completar a “trilogia” eleitoral teremos de esperar pelo próximo mês de Setembro – quando os alemães forem às urnas para eleger o seu Parlamento donde sairá o seu próximo governo. Decerto – ainda falta muito tempo para esse acto eleitoral. Mas é inquestionável que estas três eleições legislativas nos três (ainda) principais Estados da União Europeia, a par das passadas eleições presidenciais francesas, irão determinar parte significativa da Europa dos tempos próximos. E determinando o futuro da Europa, é o nosso próprio futuro que estará em jogo e em causa. Desengane-se, pois, quem pensar que se tratam de actos eleitorais relativamente aos quais nos poderemos dar ao luxo de sermos alheios ou indiferentes.
Em nenhum deles poderemos votar. Mas é inegável e inquestionável que, todos eles, no seu conjunto, nos afectam, nos dizem respeito e condicionarão e determinarão o nosso futuro.
by João Pedro Simões Dias | Mai 31, 2017 | Diário de Aveiro
O Presidente dos Estados Unidos concluiu na passada semana a sua primeira viagem oficial ao exterior desde que tomou posse do seu cargo. Foi uma viagem com um itinerário estranho, que tentou responder a uma agenda quase indecifrável, tantos e tão variados os temas que pretendeu tocar e os lugares por onde andou. Foi ao oriente médio, foi ao Vaticano e ainda divagou por duas cimeiras na Europa.
No Médio Oriente começou a digressão com uma visita à Arábia Saudita. Terá sido o momento onde mais palpável se tornou a digressão. Assinou um acordo de venda de armamento militar que ultrapassou os cem mil milhões de dólares. O complexo militar-industrial norte-americano, a que há mais de cinquenta anos se referiu o Presidente Dwight Eisenhower, terá esfregado as mãos de júbilo. Para além deste acordo, Trump teve a possibilidade de discursar numa cimeira de Estados árabes onde os estimulou a combaterem o fundamentalismo islâmico. Em boa verdade, quereria referir-se ao fundamentalismo xiita – escolhendo uma plateia de sunitas para deixar a sua mensagem. Não é líquido, porém, que a diferença tenha sido apreendida, sobretudo considerando os laços que intercedem entre muitos dos Estados que se fizeram representar na dita conferência e muitos dos movimentos xiitas que vão trilhando o caminho da radicalização. Os comentadores mais atentos fizeram notar a subtileza da distinção precisamente para evidenciarem a duvidosa eficácia da mensagem que Trump quis deixar em Riade – justamente em Riade, onde impera um dos mais autocráticos e despóticos regimes do oriente médio.
No roteiro do Air Force One seguiu-se uma paragem em Israel, para reafirmar a velha solidariedade norte-americana com o Estado judeu e o empenho num processo de paz que tarda em chegar, e nova paragem desta feita no Vaticano. Aqui, Francisco não se preocupou em esconder o seu sentimento mais profundo, plasmado em fotos que ficam para a posteridade e que não deixam dúvidas sobre o incómodo de Sua Santidade na recepção a tão ilustre visitante. De forma mediata e indirecta, Francisco e Trump já tiveram oportunidade de registar diferentes pontos de vista a propósito de diversos temas, nomeadamente da agenda internacional. Nada nos parece permitir concluir que as divergências hajam sido aplainadas, muito menos superadas ou dissipadas. O protocolo limitou-se a ser cumprido. E não há notícia de que algo mais tenha acontecido.
Já o mesmo não se poderá dizer da etapa final da viagem inicial do Presidente Trump. Tanto na Cimeira da NATO em Bruxelas quanto na Cimeira do G7 na Sicília não faltaram motivos de reflexão e, alguns, de apreensão. Em Bruxelas, na Cimeira NATO, assistiu-se a um Trump mais moderado relativamente à própria Aliança Atlântica, tendo por comparação o que dela chegou a dizer em plena campanha eleitoral. Decerto – insistiu na tecla de que todos os Estados têm de assumir as suas responsabilidades financeiras para com a organização, levando as respectivas contribuições aos 2% de cada PIB. No fundo, recordava o compromisso, assumido na cimeira do País de Gales, em 2014, de, no espaço de uma década, todos os países aliados destinarem 2% do PIB a despesas militares. Ora, de acordo com os dados da própria Aliança Atlântica, no ano passado apenas cinco aliados atingiram ou ultrapassaram o objectivo acordado: Estados Unidos (3,61%), Grécia (2,36%), Estónia (2,18%), Reino Unido (2,17%) e Polónia (2,01%). Recorde-se, todavia, que este objectivo deverá estar atingido em 2024; não em 2017. Mas as críticas iniciadas em Bruxelas acabariam por se tornar mais evidentes na Sicília, na Cimeira do G7, onde alguns consensos anteriormente alcançados entre as sete maiores economias do mundo foram questionados ou, mesmo, renegados pela nova administração norte-americana.
As divergências surgidas foram de tal monta que, há dois dias, a chanceler Angela Merkel veio colocar em causa uma constante da ordem internacional dos últimos setenta anos – a regra segundo a qual os EUA eram verdadeiramente indispensáveis para a defesa e a segurança da Europa. Primeiro da Europa ocidental; depois da queda do Muro e do fim da guerra-fria, da Europa da União.
Creio podermos afirmar que, nunca nos últimos 70 anos que são os que decorreram desde o fim da segunda guerra mundial, líder europeu algum se atreveu a ir tão longe face aos EUA como o foi, há dias, a chanceler alemã. Nem mesmo De Gaulle, nos seus tempos áureos de “antiamericanismo”, ousou ir tão longe.
Dito isto, impõe-se reconhecer que a afirmação de Merkel – mesmo descontando o facto de se encontrar em plena campanha eleitoral para as eleições gerais de setembro – não deixa de revelar duas coisas. Ambas preocupantes. A primeira, que foi quebrada a fronteira de confiança entre o maior Estado europeu e o principal aliado dos europeus. E rôta a fronteira da confiança, ultrapassada a linha vermelha que a mesma supõe, dificilmente o relacionamento transatlântico, nos tempos mais próximos, poderá voltar a ser normalizado. A segunda ilação a retirar desta afirmação da chanceler alemã conduz-nos, fatalmente, à conclusão de que a Alemanha merkeliana está disposta a, também no plano militar e da defesa e segurança colectiva da Europa, desempenhar um papel liderante, condizente com o seu poderio económico e a sua proeminência política. Isto é, pela ideia de Merkel, não andará distante a concepção de uma Europa militarmente organizada sob liderança alemã. O que, no momento presente, conduziria os europeus a terem de efectuar uma escolha muito pouco desejável: continuarem a abrigar-se sob a protecção militar norte-americana como o têm feito nos últimos setenta anos, ou colocarem-se debaixo do guarda-chuva alemão, no quadro duma defesa exclusivamente europeia. E mesmo que, como talvez viesse a ser mais provável, optassem pela manutenção do stato quo, não deixa de ser recomendável registar que bem no centro desta União Europeia em acelerado caminho de desintegração, existe um Estado, responsável pelos principais fantasmas com que a Europa se defrontou no seu passado recente, disposto a, de novo, projetar o seu poder e liderar militarmente a defesa europeia. Talvez seja chegado o momento de revisitar, para recordar, alguns dos referidos fantasmas.