O fim da ordem internacional ocidental

Foi no final da passada semana que, na habitual Conferência sobre Segurança que costuma reunir anualmente em Munique os principais líderes mundiais com a comunidade académica e científica transatlântica, o ministro dos negócios estrangeiros russo, Sergei Lavrov, pediu o fim da ordem mundial dominada pelo Ocidente e afirmou que Moscovo pretende estabelecer uma relação “pragmática” com os EUA. O governante russo adiantou que o tempo em que o Ocidente disparava acabou e, considerando a NATO como uma relíquia da Guerra Fria, afirmou: “Espero que o mundo venha a escolher uma ordem mundial democrática – uma ordem pós-Ocidente – em que cada país é definido pela sua própria soberania”. Esta intervenção teve a particularidade de se seguir à do Vice-Presidente norte-americano, Mike Pence que, falando em nome do Presidente Donald Truman, reiterou a fidelidade e o empenho dos EUA na Aliança Atlântica desde que, não se esqueceu de o reafirmar, os restantes Estados-membros suportem a respectiva quota-parte nas despesas da organização.
Historicamente este desejo de Moscovo ver surgir uma ordem internacional pós-ocidental – que talvez melhor se apelidasse de uma ordem internacional pós-NATO – não constitui em si mesmo nenhuma novidade. É um tema recorrente no discurso internacional de Moscovo que conheceu particular acuidade nos tempos que se seguiram à queda da União Soviética e ao desmantelamento de todas as organizações internacionais que esta patrocinava, nomeadamente o Pacto de Varsóvia. Já na altura – finais dos anos oitenta, princípios dos anos noventa do século passado – nomeadamente quando Kohl e Gorbachov discutiam o processo de reunificação da Alemanha, uma das pretensões ou exigências de Moscovo passou pelo desmantelamento da Aliança Atlântica e, depois, pela solene afirmação de que nunca permitiria que uma Alemanha reunificada integrasse a Aliança Atlântica. Sabe-se o que aconteceu: a NATO permaneceu e a Alemanha reunificada manteve a sua presença no quadro da organização. Posteriormente, poucos anos volvidos, ouviram-se semelhantes exigências aquando do processo de adesão dos Estados bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) à Aliança. Moscovo voltou a sustentar que a NATO deveria ser dissolvida e que os Estados bálticos, antigas repúblicas socialistas soviéticas integrantes da extinta URSS, nunca adeririam à organização. Sabe-se, também, o que aconteceu: não só a NATO subsistiu como, entre 1999 e 2004, acabariam por integrar a Aliança uma série de Estados que uma década antes constituíam satélites soviéticos na Europa: a Hungria, a Polónia, a República Checa, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Roménia, a Eslováquia e a Eslovénia. Ou seja, uma vez mais a cruzada soviético-russa contra a Aliança Atlântica havia fracassado. E percebem-se bem as razões desta obstinação soviético-russa contra a Aliança ocidental.
Tendo perdido, objetivamente, sem apelo nem agravo, a guerra-fria; tendo visto o seu império esboroar-se como um castelo de cartas com os Estados dominados e os Estados-satélites a escolherem, um após outro, o campo ocidental e livre; com o comunismo, a ideologia mater do império a ser reduzida à sua mais absoluta irrelevância, passando num ápice de ideologia temida que assustava muitos a ideologia errónea que deixou de assustar quem quer que fosse – toda esta sucessão de factos e de acontecimentos foi alcançada pelo mundo livre e ocidental sob o manto protetor da NATO, a aliança transatlântica que associava os Estados Unidos aos Estados europeus ocidentais que haviam formado a meia-Europa livre do pós-segunda guerra mundial. Nessa medida, se alguém pode, legitimamente, reivindicar o título de vencedor da guerra-fria, esse alguém foi, objetivamente, a Aliança Atlântica, fruto da visão, da estratégia, da firmeza e da determinação dos seus líderes que nunca tergiversaram nem nunca cederam ante as mais diversas manobras, infiltrações e manipulações da opinião pública ocidental (lembram-se do “antes vermelhos que mortos”?) ensaiadas por Moscovo. A eles e à geração desses líderes de referência, de ambos os lados do Atlântico, devemos hoje o facto de vivermos em liberdade e de a NATO haver ganho a guerra-fria.
Moscovo sabe disso perfeitamente e nunca lidou bem com essa evidência. Como continua a não lidar. E por isso, no momento em que os Estados Unidos, o principal membro da Aliança Atlântica e a superpotência sobrante do mundo da guerra-fria, vive um estado de transtorno geral fruto das errâncias da sua nova administração, Moscovo volta, uma vez mais, ao seu tema de estimação: é preciso que a NATO desapareça; a NATO é um resquício do mundo da guerra-fria; é preciso uma nova ordem internacional pós-ocidental, que o mesmo é dizer, pós-NATO. Ou seja, em termos muito simples, uma nova ordem internacional onde o papel liderante se transfira dos Estados Unidos para a Rússia. No fundo, foi isto que Sergei Lavrov foi defender a Munique no final da semana passada. É criticável? De forma alguma – é a Rússia a defender os seus interesses. Da mesma forma que defende os seus interesses quando interfere nas eleições norte-americanas ou quando subsidia a Frente Nacional de Le Pen com milhões de dólares. Fazendo-nos ver que estes interesses diferem em muito pouco dos que foram os interesses territorialmente expansionistas da defunta União Soviética e que coincidem ainda mais com os métodos de atuação que esta desenvolvia nos tempos da guerra-fria, comprando a fidelidade de parte das opiniões públicas ocidentais. Cabe-nos a nós, cabe ao Ocidente, cabe aos Estados ocidentais, hoje como inúmeras vezes no passado, manterem-se coesos na defesa da sua aliança transatlântica e evidenciarem que não estão interessados em viver nessa tal ordem pós-ocidental que Moscovo propugna e defende.
Não será uma tarefa fácil, tanto mais que, atualmente, as nossas lideranças ocidentais não se comparam às que outrora fizeram frente às ambições do Kremlin. A começar, obviamente, na liderança norte-americana. Mas no dia em que for admitida, ainda que no puro plano teórico, a possibilidade de se evoluir para o tal mundo pós-ocidental defendido por Moscovo, estejamos bem cientes que nada será como dantes.
E que pouco sobrará do Ocidente para contar a sua história. Putin não costuma brincar em serviço.

Lições de uma vitória

Passadas as emoções iniciais provocadas pelo sucesso de António Guterres na sua corrida ao cargo de Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), é tempo de podermos extrair algumas lições desse sucesso que, tendo sido inegavelmente e em primeira linha um êxito do candidato, não deixou de ser, também, um triunfo nacional e um sucesso do país.
A primeira nota tem de se centrar, merecidamente, no êxito e no sucesso de António Guterres. Antes de mais e acima de tudo, foi dele o mérito da eleição e a ele se devem os créditos da mesma. Foi a sua personalidade, o seu currículo, a sua formação e a forma como exerceu durante dez anos a função de Alto Comissário para os Refugiados que constituíram o cartão de visita que culminou numa cena muito pouco vista no Conselho de Segurança: a aprovação da resolução propondo à Assembleia Geral a sua eleição aprovada por unanimidade e aclamação. Numa altura em que se cimentam as divisões no Conselho de Segurança, se multiplicam os vetos cruzados dos EUA, França e Reino Unido por um lado e Rússia por outro, a aprovação da referida resolução constituiu um intervalo de consenso e unanimidade como há muito não se via na sala de sessões do Conselho de Segurança.
A segunda ilação que podemos extrair de mais este êxito internacional do país é que, enquanto Estado actuando no quadro da sociedade internacional, Portugal tem tido uma projecção e um poder incomensuravelmente superiores ao que a sua real dimensão física poderia fazer supor. Ainda há poucos dias o influente jornal espanhol El País dava nota desse facto, assinalando que, num intervalo de dois anos, Portugal conseguia colocar dois nacionais seus à frente das duas principais organizações internacionais existentes (a UE e, agora, a ONU; a primeira com Durão Barroso entre 2004 e 2014 e agora a ONU com António Guterres entre 2017 e, no mínimo, 2021). Foram dois êxitos absolutamente notáveis da diplomacia portuguesa que merece todos os encómios e elogios que lhe possamos dirigir. E demonstra, inequivocamente, como, em torno de grandes causas mobilizadoras, este mesmo país se consegue reunir em torno dos seus melhores, envolvendo todos os órgãos de soberania, todos os partidos políticos, a generalidade das instituições da sociedade civil, sem distinção de cores ou credos. A última vez que tal sucedeu foi, curiosamente, também com a ONU e também com António Guterres – quando o então primeiro-ministro conseguiu mobilizar o país para o apoio à causa de Timor-Leste. Na senda da nossa tradição histórica, estamos destinados a dar ao mundo os melhores dos nossos melhores. É um facto notável que nos deve orgulhar.
A terceira lição a retirar desta candidatura vencedora é a de que, afinal, mesmo na sociedade internacional, nem tudo está perdido. Ainda permanece uma réstia de esperança em valores como a transparência, a decência, a ética ou o decoro. No momento em que decidiram dar maior transparência ao processo de escolha do Secretário-Geral das Nações Unidas, os membros do Conselho de Segurança não se deixaram aprisionar nem enredar em estratégias ínvias e obscuras que lançaram mão da candidatura da búlgara Kristalina Georgieva para criar entropias no processo. A votação obtida pela “búlgara oficial”, que acabou colocada atrás da “búlgara oficiosa”, não foi só a penalização de uma candidata; foi, também e principalmente, a censura de um método de atuação e de uma prática típica de uma diplomacia obscura e de confidencialidade protagonizada, sobretudo pelo eixo “Bruxelas-Berlim”.
O quarto ensinamento a retirar desta eleição de António Guterres prende-se com o absoluto desastre que foi a posição da União Europeia em todo este processo. Começando no facto de não ter sabido consensualizar a apresentação se um candidato comum aos seus Estados-membros e terminando no vergonhoso e incompreensível atraso do Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, em cumprimentar e felicitar o candidato vencedor, passando pelo indiscreto apoio concedido à candidatura de última hora e à falta de imparcialidade que se exigia em todo este processo eleitoral.
Em quinto lugar e estreitamente ligada à posição da União Europeia, surgiu-nos a postura do governo de Berlim, verdadeiro motor do lançamento da candidatura da senhora Georgieva. Habituada a mandar na Europa, Merkel não percebeu uma coisa elementar: que o mundo já não é eurocêntrico e que nesse mesmo mundo a Alemanha não beneficia da posição de liderança ou supremacia que desfruta na Europa. Como anotava alguém há poucos dias, esta foi a prova provada de que Berlim tem muito a aprender sobre o que significa uma liderança e como se exerce uma liderança. Se quisermos construir um autêntico manual do que não fazer numa situação destas, basta dar o exemplo de tudo o que Merkel fez. Fez tudo o que não devia ter feito; não fez nada do que devia ter feito. Instrumentalizou as instituições comunitárias, serviu-se do governo búlgaro, quis encostar Putin à parede, ignorou a posição dos EUA, traiu e violou compromissos de neutralidade que tinha assumido, faltou à palavra dada. Nada disto é particularmente novo em Merkel – basta ver a posição que assumiu para com o chanceler Helmut Kohl que abandonou e traiu de forma ignóbil. Não tendo estado presente na mesa do Conselho de Segurança foi, talvez, a grande derrotada da votação do Conselho de Segurança. Veremos se aprendeu a lição; ou ainda se terá hipótese de voltar a intervir em assuntos desta magnitude. Em 2017 a Alemanha irá a votos…