by João Pedro Simões Dias | Set 27, 2017 | Jornal Económico
Durante os chamados “anos de chumbo” da crise europeia que teve o seu início em 2008 – proveniente do outro lado do Atlântico, onde rebentou um ano antes – parte significativa da Europa entreteve-se a criticar e a censurar a atuação da chanceler alemã, Angela Merkel, responsabilizando-a por quase tudo o que de negativo afetava a Europa, mormente as duras medidas de austeridade que foram impostas a muitos Estados europeus, nomeadamente os Estados do sul da Europa, que eram os que mais se debatiam com a célebre questão das dívidas públicas quase insustentáveis. Merkel era, por esses dias, a personificação e o rosto da austeridade, a cara das duras medidas que se abatiam sobre parte muito significativa dos europeus e que se traduziram nos resgates financeiros que não pouparam a Grécia, a República da Irlanda, Portugal, Chipre e a Espanha (ainda que esta de forma encapotada, sob a forma de apoio exclusivo à banca).
Escassos anos volvidos, deixada para trás – assim se acredita! – a crise europeia, as eleições legislativas do passado fim de semana na Alemanha vieram pôr em destaque que Angela Merkel emergiu como um dos principais rostos não só da Alemanha como, também, do que sobra desta União Europeia que, por vezes se nos afigura caminhar em passo acelerado para o seu processo de desintegração.
Fruto de uma política profundamente humanista e personalista – que a levou a abrir as portas da Alemanha a mais de um milhão de refugiados da guerra síria que demandaram o continente europeu em busca apenas e só de serem felizes e realizarem os mais básicos dos direitos humanos, e que lhe custou alguns milhões de votos – sem igual nem paralelo na história europeia, sobretudo na história recente da Europa, e face ao descalabro eleitoral social-democrata e socialista, que obteve os seus piores resultados desde o fim da segunda guerra mundial, Merkel volveu-se na imagem e no rosto visível que concitou as atenções tanto de alemães quanto de europeus na esperança de conter e de travar o movimento ascensional de uma extrema-direita constituída em torno da Aliança para a Alemanha (AfD), mas desprovida de coerência doutrinária ou homogeneidade ideológica.
O objetivo apenas parcialmente foi alcançado. Merkel logrou obter o seu quarto sucesso eleitoral, ainda que sem alcançar a procurada maioria absoluta. E apesar da sua política humanista – ou por causa dela – das esperanças que nela depositou uma parte significativa da Europa, a AfD guindou-se ao terceiro lugar no sufrágio, obtendo 13% dos votos e fazendo entrar no Bundestag, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, deputados de uma extrema-direita antieuropeia, anti-imigração, xenófoba e profundamente racista. Na noite do passado domingo, parte significativa da Europa deu consigo a recordar alguns dos seus piores demónios internos, que julgava já enterrados definitivamente no baú das recordações e dos seus próprios horrores. A chanceler, se não foi capaz de travar esta ascensão ficou, todavia e paradoxalmente, ainda mais responsabilizada na construção de uma alternativa política de governação para o gigante económico europeu. Alternativa que, sabe-se já, não deverá contar com o apoio e a participação social-democrata: Martin Schulz foi claro na noite eleitoral – o destino do seu partido seria ir para a oposição no próximo quadriénio, reorganizando-se para o combate de daqui a quatro anos. À chanceler, por simples exclusão de partes, não restam mais de duas possibilidades para continuar a governar a Alemanha: ou partir para a legislatura com um governo minoritário, o que está longe da tradição política do Bundestag, ou tentar formar a inédita (a nível federal) e improvável “Coligação Jamaica”, associando os democratas-cristãos da CDU/CSU aos Verdes e aos liberais do FDP que regressaram ao Parlamento depois de quatro anos de ausência. A formação desta improvável coligação não deixará de constituir importante teste para a capacidade negociadora de Merkel – que tentará moderar e conciliar as exigências da sua esquerda (Verdes) e da sua direita (Liberais). Talvez o maior teste em termos de negociação política desde que ocupa a chancelaria.
Paradoxalmente, porém, não serão só os alemães que estarão expectantes e atentos. Também aos europeus, a todos nós cidadãos desta União Europeia sobrante, o que se vier a passar não nos será, de todo, indiferente. Pelo papel liderante que desempenha na União, a posição do governo de Berlim será determinante para muitos dos dossiers que estarão em cima da mesa de Bruxelas. Do Brexit à reforma institucional e ao aprofundamento da zona euro – a palavra final passará sempre pelo governo de Berlim. Também nessa medida o paradoxo se verifica – quem ontem era detestada pelas suas opções políticas, é vista hoje como a única capaz de sustentar as reformas que a União necessita e carece urgentemente. Reformas como aquelas que, por exemplo, Merkel já havia dado mostras de ter articulado com Macron. E que, agora, estão objetivamente postas em causa, sobretudo pela agenda europeia dos renovados liberais alemães. Outro paradoxo do passado domingo: mesmo sem ter ido a votos, Emmanuel Macron foi um dos grandes derrotados do sufrágio alemão. Os resultados saídos das urnas alemãs podem ter hipotecado o apoio alemão a parte importante da sua agenda política europeia.
Assim se vai fazendo e construindo a política europeia dos nossos dias: navegando à vista, sem uma linha de rumo definida, com avanços e recuos. E com paradoxos; muitos paradoxos – que só servem para a tornar cada mais indecifrável e menos previsível.
by João Pedro Simões Dias | Jun 16, 2017 | Diário
Morreu Helmut Kohl. A notícia acaba de ser divulgada há escassos minutos e, de imediato, apeteceu-me regressar ao que sobre ele tive oportunidade de escrever em texto já publicado. São essas linhas que aqui ficam:
«Não considerarão muitos o chanceler federal alemão [Helmut Kohl] o último crente e europeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governam hoje a Europa?» – a questão, perturbadora mas lúcida, colocada pelo Encarregado de Negócios da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, no decurso de um Colóquio sobre «A Construção da Europa: problemas, pensadores e políticos», que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Cervantes, nos dias 9 e 10 de Maio de 1996 sintetiza o que, pelos finais do século XX, era opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, tinham de prestar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos europeus, do projecto de construção da unidade europeia e que, invariavelmente, concluíam pela enorme debilidade das diferentes lideranças europeias ou pela secundarização que as mesmas conferiam ao desígnio europeu e ao projecto europeu.
Afastado do poder François Mitterand – cumpridos que foram os seus dois septanatos constitucionalmente admitidos e substituído por um Jacques Chirac mais virado para as contingências da política interna francesa do que sensibilizado para os desafios da integração europeia – a Europa, particularmente a da União, é atravessada por um sentimento geral de que, dos herdeiros dos pais fundadores da primeira geração, apenas restava no exercício do poder o chanceler alemão federal: aquele que, desde a criação da República Federal da Alemanha, por mais tempo levava no exercício do cargo e que, a seu crédito, apresentava o enorme feito de haver presidido à reunificação do seu país.
Democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio neto político de Adenauer – em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reactivar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Europeia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relançamento do projecto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projecto e de dar continuidade à actuação dos pais fundadores de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários.
Os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes sucessos registados pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Europeia: a concretização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a concretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a existência de uma moeda única europeia.
Mas seguramente não será só como um pai fundador de segunda geração que a história registará a passagem de Helmut Kohl pela liderança da potência germânica. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunificação se tornou efectiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efectuar sobre a acção governativa do «chanceler da reunificação».
Estes dois aspectos, todavia, não deverão ser encarados como desligados um do outro: em variados momentos o chanceler sempre proclamou que a sua visão da Europa unida andava a par da sua preocupação com a reunificação da sua pátria dividida. E nunca a Europa lograria encontrar a sua verdadeira unidade enquanto, no seu coração, permanecesse dividida a nação alemã. Não para restaurar qualquer «Europa alemã», mas sim em nome de uma verdadeira «Alemanha europeia».
Terá sido, seguramente, considerando estes aspectos, que o Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998, concedeu a Helmut Kohl o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos quinze estados membros da União Europeia tiveram oportunidade de testemunhar a vivência europeísta de Helmut Kohl, escrevendo de forma inequívoca e que dispensa quaisquer ulteriores considerações:
«No limiar do século XXI, ainda não passadas duas gerações sobre o fim de uma guerra devastadora, podem os povos do nosso continente contemplar retrospectivamente um caminho de sucesso sem igual na via da unificação europeia. Este momento histórico em que nos encontramos, com a introdução da moeda única europeia, mostra-nos bem como o devir da história pode ser em muitas ocasiões decisivamente moldado pela acção empenhada de algumas pessoas. É esta uma afirmação que se pode fazer em especial acerca do Dr. Helmut Kohl e da sua acção como Chanceler da República Federal da Alemanha nos últimos 16 anos. Profundamente marcado pelos valores tradicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre manteve de forma inabalável e autêntica. Sobretudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união económica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato. A mesma dedicação pôs nos esforços para superar a funesta divisão do nosso continente. No seu labor incansável para alcançar esses objectivos políticos, nunca se deixou desencorajar pelos reveses, dúvidas e resistências. As suas qualidades de fiabilidade, probidade, constância, cordialidade e sensibilidade fizeram do Dr. Helmut Kohl para nós, seus colegas, um exemplo pessoal de um político que foi coroado de êxitos mas sempre se manteve humano. É também nestes traços de carácter que reside o segredo da sua grande obra em prol da Europa e da integração europeia. A realização da unidade alemã e a consolidação da unificação europeia, que culminou na união económica e monetária, são a obra da vida de Helmut Kohl. Por este labor de toda uma vida, nós, os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e o Presidente da Comissão Europeia, lhe exprimimos o nosso sincero agradecimento e a nossa profunda admiração. Por todas estas razões, o Conselho Europeu de Viena decidiu conferir ao Dr.Helmut Kohl, antigo Chanceler Federal, Membro do Bundestag Alemão, o título de “Cidadão Honorário da Europa”».