A Espanha invertebrada

Pedi emprestado a José Ortega y Gasset, um dos principais expoentes da filosofia espa­nhola ou castelhana do início do século passado, o título do presente texto. E fi-lo, delibe­rada e conscientemente, não só por entender que o mesmo se adequa cabal­mente à reflexão que aqui pretendo deixar como, também e sobretudo, como uma simples e singela forma de homenagem a um dos textos mais clarividentes, quiçá mesmo prescientes, de Gasset. Naquele seu texto, recordemo-lo, o filósofo de Salamanca refletia, já em 1922, praticamente há um século, sobre o fenómeno da desestruturação e desintegração de Espanha, com base e a partir de uma das suas principais fragilidades – o seu plurinacionalismo. Decerto – o enquadramento de que Gasset parte é substancialmente diferente da situação dos nossos dias. A essência do diagnóstico, porém, perma­nece incólume e intocável.

Quando Gasset escreveu a sua obra, a Espanha das primeiras décadas do século XX defrontava-se com as ameaças que incidiam principalmente sobre as suas principais possessões ultramarinas. E o filósofo identificava tais ameaças com a plurinacionalidade dessas mesmas diferentes colónias que, gradualmente, pressionavam o centro da governação, num movimento que era oriundo das periferias para esse mesmo centro do poder. E, refletindo sobre a realidade peninsu­lar dessa Espanha do seu tempo, atreveu-se a prever que idêntico movimento acabaria por se replicar na própria Península, fruto dos regionalismos que, tendo na sua base diferentes nacionalismos, acabariam por conduzir, fatalmente, a fenómenos secessionistas. A desintegração ultramarina seria, assim, a antecipação ou prelúdio, o prenúncio da desintegra­ção peninsular espanhola.

Ora, nunca como hoje a profecia ou leitura feita por Ortega y Gasset esteve tão perto de se concretizar e de se tornar realidade. A situação que está a ocorrer na Catalu­nha ilustra-o na perfeição. E é sobre isso que devemos meditar.

O poder central de Madrid até pode vir a conseguir estancar todas as pressões nacionalistas e independentistas que se fazem sentir na Catalunha. Poderá, no limite, conseguir impor a força da legalidade constitucional e fazê-la prevalecer sobre o espírito nacionalista e as ânsias independentistas que, admitamo-lo, até podem ser atualmente minoritárias. Tudo isso é possível; tudo isso é provável. Nada disso garantirá, porém, a resolução de fundo para o problema que a Espanha tem. E esse problema é, justamente, a multiplicidade das suas nacionalidades. Como já tivemos oportunidade de escrever e de anotar, por diversas vezes, a Constituição espanhola parte e assenta num equívoco. Esse equívoco chama-se “nação espanhola”. Pelo simples e elementar facto de que é uma realidade virtual, que não existe no terreno. Que foi ficcionada pelos pais da Constituição de 1978; mas que nunca saiu do domínio da ficção. A Espanha não é uma nação; é um Estado multinacional ou plurinacional, onde convivem e confluem várias nações. Nações essas que, em regimes democráticos, mais tarde ou mais cedo aspirarão a organizar-se politicamente sob a forma de Estados. Essa é uma inevitabilidade história e uma aspiração a que, por regra, nenhuma nação renuncia ou foge. Por isso, quando este fenómeno é contrariado, nascem e emergem os nacionalismos perigosos, fonte de muitos dos problemas que a Europa tem conhecido. Mas o nacionalismo apenas se torna perigoso quando é reprimido ou combatido.

Este princípio, de resto, do chamado Estado nacional e de dar a cada nação a possibilidade de se organizar politicamente sob a forma de Estado, não é uma descoberta recente. Já no início do século XX o Presidente dos EUA Wilson o enunciava como uma das condições necessárias para evitar novos cataclismos como o da primeira guerra mundial. Não é por ser antigo que perdeu validade.

Voltando ao caso espanhol – aquilo a que assistimos na Catalunha pelos dias de hoje é à emergência do nacionalismo catalão em busca da sua organização política autónoma. O gene da nação está-lhe imanente e, por isso, esta é uma batalha condenada a não terminar. Pode ser derrotada, pode ser amordaçada, pode ser apoucada. Dificilmente será vencida.

Nesse quadro, melhor fariam os dirigentes de Madrid em buscar uma solução de longo prazo do que uma vitória de curto prazo. Para tal, porém, também se requereriam políticos com sentido de Estado, mais do que governantes com sentido eleitoral. E isso é coisa que também pela Espanha dos nossos dias não abunda.

Uma Catalunha independente?

No passado domingo a Catalunha foi a votos para, num arremedo de referendo, se expressar sobre a sua independência. O fundamento para a realização dessa espécie de referendo foi, assim nos foi dito, o exercício democrático do direito dos catalães a expressarem a sua opinião sobre o seu futuro político. Tratou-se, portanto, assim foi contado ao mundo, de uma manifestação do princípio democrático. Acontece, porém, que se levarmos a análise a um maior grau de profundidade e não nos ficarmos pela superficialidade da espuma dos sias, talvez esse dito princípio democrático tenha muito pouco de democrático.

Os organizadores do dito referendo limitaram-se a constatar que, a simples possibilidade de os catalães depositarem um papel numa urna, significaria que se estava perante um exercício de democracia. Nada mais falso, nada mais errado, nada mais desconforme com as regras e os princípios. É verdade que, sem votos, não existe democracia. Nenhuma democracia pode prescindir do exercício inalienável do direito de escolhe e esse direito exerce-se através do voto. Acontece, porém, que o voto, por si só, não é suficiente para demonstrar a existência de uma democracia. Também se vota na Venezuela. Também se vota na Coreia do Norte. Também se votava no Portugal de antes do 25 de Abril. E a ninguém de bom-senso passará pela cabeça sustentar ou defender que, na Venezuela, na Coreia do Norte ou no Portugal salazarista vigoravam regimes ou sistemas democráticos. Assentemos, portanto: sem votos não há democracia; mas o voto por si só não chega para afirmar a existência da democracia. Esta, para existir, na sua plenitude, supõe e exige que, a montante, antes do momento de se exercer o voto, estejam reunidos um conjunto de requisitos e pressupostos, também eles definidores do princípio democrático: no momento de apresentação de candidaturas, no momento de fixação de garantias sobre a forma como as votações decorrem, no momento de contagem e apuramento de resultados, no momento de fixação do colégio eleitoral, no momento de composição de assembleias de voto, etc, etc. Em todos esses momentos, a montante e prévios ao exercício do direito de voto, as regras democráticas da transparência e da legalidade hão-de estar presentes se quisermos ou pretendermos estar ante uma verdadeira manifestação do princípio democrático. Ora, nada disto ocorreu, no passado domingo, na Catalunha.

O pretenso referendo foi convocado à revelia da lei e por quem não tinha competência legal para o fazer; os cadernos eleitorais não existiam, possibilitando que um cidadão votasse mais de uma vez; as urnas não funcionaram em assembleias eleitorais devidamente constituídas mas chegaram a estar postas na rua; o secretismo do voto pura e simplesmente não existiu; as garantias de regularidade e transparência do processo eleitoral eram palavra vã; o apuramento dos resultados chegou a dar percentagens totais que em alguns casos ultrapassavam os 100%….

Tudo isto, e muitas outras irregularidades que se poderiam apontar, é suficiente para demonstrar o contrário do que se pretendeu afirmar com a realização do dito referendo: em nada o mesmo contribuiu para ilustrar o exercício da democracia por parte dos catalães.

E, como era de esperar, foi-nos dito que uma ampla maioria de votantes, na ordem dos 92% haviam votado a favor da independência da Catalunha. Com um tal enquadramento o espanto só pode, mesmo, residir na percentagem de votos que é indicada: “só” 92%? Obviamente que a própria comunidade internacional não esteve desatenta e não há notícia de quem quer seja, até agora, ter reconhecido tal referendo. Eventualmente, apenas Nicolas Maduro….

O problema é que, segundo notícias recentes, será este simulacro de referendo que estará na base das exigências do sector mais nacionalista do governo autónomo da Catalunha para, dentro de horas, proclamar a independência unilateral da Catalunha. Ora, a ser verdade e a confirmar-se um tal passo rumo ao abismo, parece inevitável que ao governo de Madrid outra opção não restará do que utilizar a sua bomba atómica constitucional – célebre artigo 155º da Constituição que prevê as situações em que o poder central possa derrogar e reverter as autonomias. Como se percebe, seria uma solução para a rebelião mas não uma solução para o problema.

As autoridades centrais de Madrid desde sempre enfrentaram este desafio no plano jurídico, remetendo sempre para os Tribunais as decisões mais difíceis de tomar. Nunca assumiram a vertente política do caso e, por isso, nunca encetaram verdadeiras negociações políticas com as instâncias autonómicas de Barcelona. Foi um erro crasso que seguramente ainda lhes virá a custar caro. Mais caro do que já custou. É que se na Catalunha nem todos são independentistas ou soberanistas, quase todos ou a imensa maioria são, neste momento, anti-madridistas. E isso em nada contribui para a resolução do diferendo que existe, que é real e que está instalado.

Numa palavra, o desatino com que este processo tem sido conduzido de parte-a-parte só pode levar a uma “solução lose-lose”, em que ambas as partes saem perdedoras. Não se adivinha saída mais provável para esta crise. Em qualquer dos casos, parece certo que, por muitos e longos anos, a Espanha que conhecemos já acabou. Doravante será, sempre e necessariamente uma coisa diferente. Podemos não saber o quão diferente será. Mas será, certamente, diferente. Com ou sem a Catalunha.

Catalunha, 1 de outubro

Tem passado significativamente ao lado quer da nossa opinião pública quer da nossa opi­ nião publicada a verdadeira querela autonómica-constitucional que, por estes dias, se vai travando aqui ao lado, em Espanha, a propósito do referendo autonómico que a Generali­ tat da Catalunha convocou unilateralmente para o próximo dia 1 de outubro e que o governo central de Madrid tem contestado e ameaça impedir por todos os meios ao seu alcance. A pergunta que será colocada aos catalães é a seguinte: “Está de acordo com um Estado Independente sob a forma de República?” Se o “sim” vencer, a independência será declarada no parlamento catalão 48 horas depois do referendo. Se perder, serão convocadas novas eleições autonómicas. E se o Governo espanhol impedir a realização desse referendo, a secessão será proclamada de forma automática e imedi­ ata pelo mesmo parlamento.

Esta disputa em torno da marcação e eventual realização deste referendo autonómico e independentista tem dominado todo o debate político em Espanha e tem vindo em cres­ cendo de radicalização, com as duas partes envolvidas a recorrerem a todos os meios ao seu alcance para conseguir a realização do sufrágio ou para impedir a sua concretiza­ ção. A ponto de, em boa verdade, nenhuma delas ter, já, margem de recuo ou de negociação sob pena de perder irremediavelmente a face. E é esta radicalização já atingida no clima político da Catalunha que tornam o processo referendário em curso num momento potencialmente perigoso, tanto para o Estado espanhol como para a pró­ pria Catalunha.

No que à Catalunha diz respeito, a generalidade dos estudos sociológicos encarrega-se de demonstrar uma realidade iniludível: a Catalunha está partida em dois blocos pratica­ mente iguais. Significa isto que o referendo de 1 de outubro, a realizar-se e concretizar-se, ameaça assim tornar-se numa verdadeira batalha de catalães contra catalães. Com ou­ tra agravante: o próprio bloco nacionalista catalão está longe de possuir uma estru­ tura homogénea ou coerente, com uma agenda coesa e coerente. A coligação Juntos pelo Sim – formada pela Esquerda Republicana da Catalunha e o Partido Democrata Euro­ peu da Catalunha (PDeCAT, antiga Convergência) – e a CUP – Candidatura de Uni­ dade Popular – convergem no apoio parlamentar ao governo autonómico catalão, na de­ fesa da independência da Catalunha, mas não têm uma base doutrinária homogénea e comum.

Mas também do lado do bloco nacionalista espanhol – dominado pelo Partido Popular, pelo Partido Socialista e pelos Cidadãos – as divergências são profundas e assinaláveis. Une-os a recusa do referendo independentista, a negação da possibilidade de autodetermina­ ção de qualquer autonomia espanhola e pouco mais. Entre estas forma­ ções partidárias, porém, não se divisa uma coesão ou uma homogeneidade de visões so­ bre o futuro territorial daquilo que é a Espanha dos nossos dias. Nesse plano, aliás, es­ tará do lado do Partido Socialista espanhol – sobretudo muito por efeito da renovada lide­ rança de Pedro Sanchez – a abordagem doutrinária e dogmática mais consistente dessa mesma realidade da Espanha dos nossos dias, definindo-a como uma “Nação de Na­ ções”. É uma perspetiva e uma abordagem, cremos, muito mais consentânea com a reali­ dade do que aquela, por exemplo, que é sustentada pelo Partido Popular e por Mari­ ano Rajoy – que embarcam no mito e no sofisma que a Constituição espanhola consa­ gra, ao criar e referir-se a uma “nação espanhola”, realidade absolutamente mí­ tica, inexistente quer no plano dos princípios quer no domínio dos factos.

É assim, uma Catalunha profundamente dividida no quadro duma Espanha minada pelas suas contradições territoriais, que se apresta a ter uma palavra decisiva sobre o seu futuro no próximo dia 1 de outubro. Se o referendo se realizar, o dia 2 de outubro será uma incógnita tremenda. Com ondas de choque que não se limitarão a Espanha e que poderão fazer-se sentir em vários territórios da União Europeia que anseiam pelos momentos de, igualmente, se poderem expressar sobre as suas autodeterminações. Se a vontade – e a força – de Madrid se impuserem e ganharem o braço-de-ferro com Barcelona, as consequências também não se adivinham fáceis de antecipar, atendendo, sobretudo, à divisão reinante na Catalunha.
O dia 1 de outubro marcará, assim, o confronto do Estado (dotado do acervo de competências que lhe restaram) com a sua Autonomia (que busca disputar uma parcela significativa daquele acervo). Saber quem levará a melhor neste braço-de-ferro pode ser determinante para o futuro não só da Catalunha, não só de Espanha, mas também de muitos outros territórios europeus. Por isso, toda a atenção que lhe dediquemos, não será demais.

Os casos de Gibraltar, Escócia e Catalunha

Ainda não passou o tempo suficiente para se digerirem os primeiros impactos da oficialização britânica do desejo de sair da União Europeia, através do acionamento do mecanismo previsto no artigo 50º do Tratado de Lisboa, e já começaram a surgir os primeiros imbróglios que terão de ser dirimidos entre Londres e Bruxelas – ou, no mínimo, entre Londres e algumas das capitais europeias.
A primeira questão surgida escassos dias sobre a invocação do referido artigo 50º do Tratado de Lisboa derivou do estatuto político de Gibraltar – de cuja administração Londres não dá sinal de querer prescindir, mas de cuja soberania Madrid também não pretende abrir mão.
De facto, Gibraltar – território britânico desde 1713 que ainda em 2002 rejeitou através de referendo popular ficar sob soberania partilhada de Londres e Madrid – irá tornar-se no primeiro exemplo de uma situação que, tendo sido gerida até agora no quadro da União Europeia, passará, com a saída do Reino Unido da União, para o plano do relacionamento bilateral entre o Reino Unido e Espanha. E, nesse plano bilateral, não poderá deixar de ser dissociado de outras questões que oporão ambos estes Estados. A questão escocesa será outra de entre essas mais relevantes.
Depois de o Reino Unido ter decidido avançar com o Brexit, o governo nacionalista de Glasgow tomou a decisão de encetar um novo procedimento referendário pretendendo desligar-se do Reino Unido e, subsequentemente, ingressar na União Europeia. Até agora, Londres tinha em Madrid um aliado de peso que estaria na disposição de vetar a referida adesão escocesa à União. Sobretudo por receio de abrir um precedente que, a prazo, se pudesse virar contra si própria, pensando sobretudo na situação da Catalunha – onde as forças nacionalistas e independentistas fazem campanha pela autodeterminação da Catalunha e pela defesa do seu ingresso na União Europeia.
Surpreendentemente, nos últimos dias, no momento em que se elevou a escalada verbal entre o Reino Unido e Espanha a propósito do estatuto político do rochedo, registou-se uma alteração significativa na posição espanhola relativamente à Escócia. O ministro espanhol dos negócios estrangeiros, Alfonso Dastis veio, pela primeira vez, anunciar que Madrid não aporia o seu veto a uma eventual candidatura de uma futura Escócia independente à União Europeia deixando, assim, as portas abertas para que, num futuro próximo, uma eventual Escócia independente se possa tornar membro de pleno direito da União Europeia.
Com esta mudança ou evolução radical na posição oficial de Espanha, Madrid dá por adquirido que, a prazo, a sua estratégia para lidar com a questão da Catalunha terá de assentar em novos pressupostos – o, neste caso, aliado britânico está em vias de abandonar o clube europeu e ao Reino de Espanha pouco mais restará do que contar consigo própria numa eventual batalha em torno da questão catalã.
Qualquer um destes três casos – o caso de Gibraltar, o caso da Escócia e o caso da Catalunha – enquadra-se num contexto mais vasto de renascimento das punções nacionalistas um pouco por toda a Europa. Até agora, estas questões eram tratadas no quadro da União Europeia e com uma intervenção de mediação frequentemente exercida por parte das instituições comuns, nomeadamente a Comissão Europeia. A concretização do Brexit fará com que, doravante, os mesmos se remetam para o plano do relacionamento bilateral entre os Estados envolvidos. Trata-se de uma alteração não desprovida de consequências, e de consequências que não facilitam a resolução destes diferendos.
A trilogia “Gibraltar – Escócia – Catalunha” volve-se, assim, num dos primeiros, talvez o primeiro, teste que, em matéria de política externa e relações internacionais, se vai colocar à União Europeia a 27 e aos seus Estados membros no novo relacionamento que vai ser necessário encetar com Reino Unido que, além de novos desafios externos, se irá ver confrontado com novos desafios internos, sendo que o da sua sobrevivência ou subsistência como Reino “unido” não será, seguramente, o menor de todos eles. Mas pode vir a ser também, paralelamente, a possibilidade de começar a ser edificado um outro modelo de ordem internacional que pode vir a conferir a esse mesmo Reino Unido, se como tal se conseguir conservar e preservar, um papel muito mais ativo na articulação da Europa, a que continuará a pertencer, com os aliados transatlânticos, nomeadamente os Estados Unidos e o Canadá.
Serão, pois, tempos de mutações relevantes aqueles que poderemos ter por diante. Não, necessariamente, positivos; mas, seguramente, relevantes e importantes.

2013, Ano europeu em revista

Terminado o ano de 2013, aqui se deixa a respectiva revista europeia (de A a Z) para efeitos de memória futura e com tudo o que de subjetivo e aleatório pode envol­ver uma escolha e um exercício desta natureza:
Alemanha – O gigante económico da Europa da União fortaleceu, a cada dia que pas­sou, o seu poder político. Voluntária ou involuntariamente, é a um verdadeiro pro­cesso de germanização da Europa que assistimos, mais do que a um processo de euro­peização da Alemanha – enquanto os seus Estados parceiros oscilam en­tre o medo do fortalecimento desse poder e o receio de perderem o apoio que a Ale­manha lhes pode dispensar. Contradição que 2013 não contribuiu em nada para resolver. Bem pelo con­trário.
Barroso (José Manuel Durão) – Depois de um início de segundo mandato à frente da Comissão Europeia em que foi completamente ultrapassado pela lógica in­tergoverna­mental imposta pela Alemanha à União Europeia, recuperou algum pro­tagonismo directamente proporcional à aproximação do fim do seu mandato. Se o sonho comanda a vida, o sonho de um inédito terceiro mandato pareceu coman­dar a sua actuação. Pode ter despertado tarde da sua letargia.
Chipre – Chipre constituiu o exemplo mais traumático de resgates efectua­dos pela troika, neste caso devido a grave crise do sector financeiro e bancário da ilha. Não pelo valor do empréstimo concedido mas pelas condicionantes impostas pelos credores, que obrigaram depositantes nos bancos a suportarem parte dos custos da respectiva reca­pitalização. Pela primeira vez na história da UE ultrapassou-se uma linha vermelha e abriu-se um precedente perigoso – os depósitos bancários passaram a poder ser confiscados para contribuir para pagar erros de gestão bancária. O Parlamento de Nicósia ainda ensaiou opor-se à medida, mas a força da realidade acabou por se impor.
Dijsselbloem (Jeroen) – O socialista holandês que sucedeu a Junker na presidên­cia do Eurogrupo e que, não raro, se tem mostrado mais ortodoxo que os ortodo­xos alemães em decisões concretas que têm sido tomadas – de que, talvez, o meca­nismo de gestão de falências bancárias seja o exemplo mais acabado.
Eslovénia – A Eslovénia posiciona-se como um dos mais sérios candidatos a rece­ber novo auxílio financeiro das instituições europeias quando, na sequência dos resultados dos testes de ‘stress’ supervisionados pela UE, se constata que as ne­cessidades de re­capitalização da banca do país ascende a 4,8MM€, até junho de 2014.
Federalismo – Por oposição ao trilho intergovernamental constitucionalizado com o Tratado de Lisboa, é cada vez mais o caminho alternativo que parece poder tirar a União da letargia para onde foi encaminhada. Durante muito tempo constituiu a pala­vra maldita e o conceito tabu do projecto europeu. Tão só porque ousaram equipará-lo a outros modelos federais existentes. Também aqui a UE deverá inovar – e optando por uma via federal será seguramente uma via original e não duplicada de qualquer outra existente. Terá como componente o necessário reforço das instituições comuns, a respectiva relegitimação democrática, a recusa do modelo do diretório, a afirmação da via supranacional e o respeito pelo princípio da subsidiariedade. Em 2013 prefigu­rou-se, sem complexos, como um dos (poucos) caminhos possíveis a seguir para se ul­trapassar a crise que vivemos.
Grécia – Continuou a ser o país-problema da União Europeia. Com dois resgates e a caminho dum terceiro, cortes de dívida a credores particulares e enorme agita­ção so­cial cabe-lhe entrar em 2014 a presidir ao Conselho da União – com a res­ponsabilidade de demonstrar que um Estado pode estar em estado de emergên­cia financeira sem que isso signifique que abdica das suas funções políti­cas no quadro da União.
Hollande (François) – Iniciou o seu mandato como a grande esperança da esquerda eu­ropeia contra o austeritarismo ortodoxo germânico e em nome das políticas de cres­cimento económico, como caminho que a própria Europa devia seguir; encerra 2013 com a França sujeita à mais elevada carga de austeridade fiscal da V República e os ín­dices de popularidade mais baixos de qualquer chefe de Estado francês desde que há registos e medições dos mesmos. Pior saldo do ano – potencía o crescimento eleitoral da Frente Nacional de Marine Le Pen a patamares nunca antes vistos nem alcançados pela extrema-direita gaulesa.
Irlanda – Termina 2013 anunciando que, finalizado o seu resgate, quer ver-se li­vre da troika e das instituições europeias com uma “saída limpa”, sem depender dos humores dos burocratas de Bruxelas, sem segundo resgate ou, sequer, sem essa incógnita cha­mada programa cautelar. Decerto – os juros a dez anos na or­dem dos 3%, uma almo­fada financeira de cerca de 25MM€ e as necessidades de finan­ciamento garantidas até meados de 2015 ajudaram a tomar uma atitude que objectivamente espantou quase tudo e quase todos.
Junker (Jean-Claude) – O democrata-cristão decano dos líderes europeus, talvez o mais europeísta de todos eles, resto sobrante da geração de Kohl e Mitterrand, dei­xou de ser Presidente do Eurogrupo e Primeiro Ministro do Luxemburgo (ape­sar de aqui ter ganho as eleições legislativas, ainda que só com maioria rela­tiva). Paradoxalmente, pode ser a oportunidade para um 2014 mais risonho, com a Presidência da Comissão Europeia ou a Presidência do Conselho Europeu.
Kenny (Enda) – O Taioseach (Primeiro-Ministro) irlandês viu-se catapultado para as lu­zes da ribalta europeia quando o plano de ajusta­mento que negociou e conseguiu im­por à troika terminou com uma “saída limpa”, sem necessidade de qualquer programa cautelar. Com discrição mas firmeza, sem subservi­ências nem seguidismos provincia­nos, liderou um país sob resgate com prudência e bom-senso. Os resultados viram-se. Declarou prescindir de novos apoios internacionais e granjeou reputação e credibili­dade suficiente para ser encarado como uma das mais fortes possibilidades para vir a suceder a Durão Barroso à frente da Comissão Euro­peia. Resta saber se o desejará.
Letta (Enrico) – O democrata-cristão, membro do Partido Democrático de centro-es­querda, salta para a primeira linha da política europeia ao conseguir formar governo em Itália, baseado numa coligação instável com o Povo da Liberdade de Silvio Berlus­coni. Teve o difícil encargo de suceder a Mario Monti, o eurocrata que liderou o go­verno de Roma entre Novembro de 2011 e Abril de 2013 restituindo-lhe a credibili­dade perdida sob a liderança de Berlusconi. Apostou inequivocamente na via europeia para rumo dos primeiros meses da sua governação.
Merkel (Angela) – A chanceler alemã, que traiu Helmut Kohl e desonrou o seu legado europeísta, foi uma das grandes vencedoras de 2013. A sua política ortodoxa e austeri­tária face ao sul da Europa em provação e de germanização da UE foi amplamente su­fragada pelos seus concidadãos em eleições internas. Cada vez mais governa mais a Europa sendo escolhida apenas pelos alemães. Nem a mudança de parceiro político lhe alterou os hábitos ou fez mudar o rumo. Nos sociais-democratas do SPD encontrou aliados para a sustentação de uma política europeia que ainda acredita que podem existir ilhas de prosperidade em mares de desesperança. Quando a desesperança der à costa da ilha germânica, o rumo será alterado. Até lá, vai mandando. Bruxelas e as demais capitais europeias vão obedecendo.
NATO – Ainda não foi em 2013 que a organização de defesa militar do ocidente logrou alcançar um nível de articulação satisfatório com a União Europeia em matérias de se­gurança e defesa. É um daqueles casos em que a responsabilidade não pode ser assa­cada à organização transatlântica. Se o pilar europeu da aliança não se mostra suficien­temente sensibilizado para o tema nem se consegue articular e coordenar satisfatori­amente entre si, dificilmente a União que formam se pode entender com a organiza­ção de defesa que, paradoxalmente, quase todos integram.
Orban (Viktor) – A Hungria, liderada pelo Primeiro-Ministro Viktor Órban, conseguiu saldar a dívida de 20MM€ que tinha para com o Fundo Monetário Internacional desde 2008, sete meses antes do prazo previsto. Com uma liderança frequentemente criti­cada pelas suas opções conservadoras, o Governo de Órban considerou que a Hungria vai conseguir financiar-se nos mercados financeiros internacionais depois do que cha­mou “uma luta pela liberdade de atuação do país”.
Portugal – Exemplo acabado e consumado das políticas erráticas concebidas e impos­tas pela troika, inicialmente acolhidas com entusiasmo por parte do go­verno, entusi­asmo que se foi perdendo à medida que o tempo foi passando. Quem se der ao traba­lho de comparar os números previstos para final de 2013 no memorando de entendi­mento original e aqueles que, de facto, se atingiram (em termos de défice, dívida pú­blica e desemprego, por exemplo) tem a noção clara da errância das referidas políticas austeritárias.
Quadro financeiro 2014-2020 – O Conselho e o Parlamento Europeu puseram-se de acordo relativamente ao quadro financeiro plurianual da UE. Denotou ambição pouca e ousadia nenhuma. Com orçamentos que continuam a ser inferiores a 1% do PIB co­munitário não é possível ousar sonhar qualquer aprofundamento das políticas comuns. Enquanto a UE não se dotar de meios financeiros suficientemente capazes, as suas ca­pacidades de intervenção estão limitadas e definitivamente cerceadas.
Rompuy (Herman Van) – O Presidente permanente do Conselho Europeu pareceu ga­nhar algum protagonismo à medida que a crise por que passou a UE em 2013 foi abrandando e foram surgindo ligeiros sinais de retoma económica. Pese embora esse facto, continuou por se perceber a utilidade do cargo e da função. E se o hábito não faz o monge, neste caso o monge não fez nem justificou uma função que veio, inequivo­camente, introduzir um elemento de confusão na estabilidade institucional da União Europeia. Terminará o seu segundo mandato em 2014.
Secessionismos e Separatismos – Constituem o pior legado que 2013 deixa a 2014: a marcação de referendos independentistas e separatistas em 2014 para a Escócia e para a Catalunha podem obrigar a União Europeia a defrontar-se com um problema novo em mais de 60 anos de projecto europeu – o da integridade territorial dos seus Es­tados-membros, que é como quem diz, da sua própria integridade territorial. Mais grave que isso, os referendos prometidos, a realizarem-se, podem constituir prece­dente sério para outras aspirações independentistas que se encontram apenas ador­mecidas.
Troika – Os coordenadores dos principais grupos políticos na Comissão Econó­mica e de Assuntos Monetários do Parlamento Europeu e, posteriormente, a pró­pria eurocâ­mara, decidem lançar um processo de inquérito à actuação da troika nos planos de res­gate lançados nos últimos três anos. A investigação pretende apu­rar, ainda, a “legiti­mação democrática das decisões tomadas” pela troika nes­ses processos.
Ucrânia – Não pertencendo à União, foi o palco onde se travou a última disputa entre a UE e a Rússia sobre as respectivas esferas de influência. Contra a vontade de milha­res que se manifestaram nas ruas, o governo de Kiev deu sinais de tombar para o lado de Moscovo, recusando associar-se à parceria com Bruxelas. Território de fronteira e zona de influência ambicionada tanto pela Rússia como pela União Europeia, protago­nizou o reavivar dos tempos da guerra-fria, onde a influência em cada palmo de ter­reno geoestratégico era disputada ao milímetro. Estando fora da União, por paradoxal que pareça, a Ucrânia pode vir a determinar muito do sucesso ou insucesso da sempre anunciada e nunca concretizada política externa e de segurança comum.
Vilnius – Foi na capital da Lituânia que ocorreu um dos maiores desaires da UE em ma­té­ria de política exterior comum no ano de 2013. A Cimeira da Parceria Oriental da UE com a Ucrânia, a Geórgia, a Moldávia, a Bielorrússia, a Arménia e o Azerbaijão ficou marcada pelo desacordo entre a Ucrânia – pressionada por Moscovo para não assinar qualquer acordo com a União – e a UE. Ao não assinar o acordo que marcaria a apro­ximação ucraniana à UE os resultados da Cimeira restringiram-se à assinatura duma primeira versão de acordo com a Geórgia e a Moldávia e um acordo de facilitação de vistos com o Azerbaijão. Foi pouco.
Xavier (Bettel) – O Presidente da Câmara da Cidade do Luxemburgo tornou-se o improvável Primeiro-Ministro do Grã-Ducado, após a realização de eleições legislativas em que Jean-Claude Juncker, apesar de liderar o partido mais votado, não logra alcançar a maioria absoluta, deixando o poder nas mãos de uma coligação governamental formada pelo Partido Democrático, o Partido Operário Socialista e Os Verdes.
Yousafzai (Malala) – Jovem paquistanesa de 16 anos que, baleada na cabeça pelos tali­bãs quando regressava da escola, recebeu o “Prémio Sakharov do Parlamento Europeu para a Liberdade de Consciência” perante o plenário da eurocâmara de Estrasburgo, apelando de forma vigorosa ao direito das crianças à educação.
Wharton (James) – Deputado conservador britânico, autor de um projeto de lei apro­vado pela Câmara dos Comuns – numa sessão em que a oposição trabalhista apenas participou no debate e esteve ausente da votação – destinado à realização de um refe­rendo sobre a permanência do Reino Unido na UE em 2017.
Zagreb – Foi nas ruas de Zagreb que os croatas assinalaram, em clima de festa, a 1 de Julho de 2013, a adesão do seu país à União que, assim, se tornou o 28º Estado-Membro da UE, numa altura em que esta atravessa a sua mais profunda crise desde a origem do projeto europeu.