A democracia-cristã está viva!

Vivemos um tempo estranho, num mundo em constante convulsão, em que não raro parece que todos os valores que deram ordem e forma à nossa civilização foram postergados e cederam perante uma espécie de pensamento único, desprovido de valores e princípios, em que apenas falam as vozes dos mercados, essas entidades míticas e obscuras que ninguém conhece, que ninguém elegeu, que ninguém mandatou, mas que mandam e condicionam mais do que quem foi eleito e legitimado pelo voto e pelo sufrágio populares.
Uma das principais decorrências desta ordem que a todos nos envolve e a todos nos sufoca prende-se com a proclamação, tantas vezes ouvida, de que as ideologias acabaram. Percebe-se: numa sociedade de pensamento único, que sentido faz permanecerem as ideologias, as diferentes visões sobre a sociedade e o Homem? Absolutamente nenhuma!
Não pensemos, porém, que esta nova moda é um exclusivo dos outros. Mesmo entre nós, mesmo nesta pacífica sociedade à beira-mar plantada, há quem preconize as mesmas teses, que sufrague a mesma falta de diversidade e de valores. Ou que apenas conheçam os valores do mercado, da despersonalização das sociedades, da submissão do Homem aos ditames e aos credos da finança. E porque é urgente, porque se impõe, demonstrar o mal-fundado dessas teses peregrinas, todos os esforços e todos os contributos que sirvam para demonstrar a respetiva inverdade, devem ser salientadas, devem ser estimuladas e devem ser acarinhadas. É – convenhamos – um esforço quase inglório, quase hercúleo, nada dado a concitar a atenção e o interesse da nossa comunicação social, muito mais interessada em acontecimentos de outra natureza e, sobretudo, muito pouco ou quase nada interessada em enfrentar os poderes de que depende. Ainda assim, vale a pena a tentativa e, sobretudo, o inconformismo.
Vem isto a propósito de uma excelente iniciativa ocorrida no passado fim de semana, em Lisboa, em que três antigos Presidentes do CDS-PP se reuniram numa conferência aberta ao público, sob o Alto Patrocínio do Presidente da República, para refletirem sobre o futuro da democracia-cristã. Adriano Moreira, Manuel Monteiro e José Ribeiro E Castro, num ambiente livre e sem quaisquer constrangimentos, refletiram sobre o passado, o presente e o futuro de uma ideologia que remonta à célebre encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII (15 de maio de 1891) e que, a par das correntes socialistas democráticas, foram as grandes artífices da reconstrução da Europa do pós-segunda guerra mundial, da institucionalização dos fundamentos do Estado social, da introdução de uma concepção personalista e humanista na política europeia, em vista da superação do maniqueísmo liberalismo/socialismo científico (comunismo) que atormentava as sociedades daquele tempo mas que era incapaz de fornecer as respostas para a questão operária que afligia as sociedades europeias desde o final do século XIX e o início do século XX. A iniciativa, como era previsível, passou ao lado de praticamente toda a comunicação social – em época desprovida de valores, discutir valores e princípios não vende. Mas nem por isso a Conferência deixou de se realizar e deixou de ser um sucesso, unanimemente reconhecido pelas centenas de participantes que congregou no auditório do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Mostrando que, afinal de contas, ainda há quem se interesse por estas “velharias”, por estes temas mais densos, menos propensos à politiquice e à baixa política que todos os dias nos entra casa adentro sem pedir licença.
As conclusões que se retiraram do encontro demonstram inequivocamente o quão necessário se torna o retorno a uma política de valores, que recoloque o Homem no centro das preocupações da governação, que continue a privilegiar uma opção assumida pelos mais pobres e pelos mais carenciados, que substitua o credo cego nos mercados pelo regresso à crença nos valores; e que continue a apostar decisivamente no projeto concreto de edificação do projeto europeu, baseado em princípios que lhe deram forma, nomeadamente a solidariedade, a coesão e, sobretudo, o indeclinável empenho na construção e preservação desse bem supremo que é a paz no velho continente.
Ora, estes são valores que se impõem por si próprios e que hoje, infelizmente, não são exclusivo de nenhum partido porque nenhum os assume na sua totalidade e de forma exclusiva. São, antes, valores e princípios que continuam a merecer a adesão individual de muitos cidadãos, dispersos por várias formações partidárias. Donde, seja um imperativo de honestidade intelectual reconhecer que a democracia-cristã, entre nós, continua viva mas que a sua organização institucional está longe de ser a adequada. E por isso a mesma se encontra, frequentemente, misturada e amancebada com outras correntes de pensamento, nomeadamente liberais e conservadoras. O que, por via de regra, só contribui para confundir as propostas e aumentar as incongruências ideológicas.
Parece, pois, uma evidência que se impõe cada vez mais organizar e (re)estruturar organicamente a democracia-cristã em Portugal. Não será, seguramente, por falta de operários que a obra deixará de se fazer. Sobretudo porque se trata de uma obra necessária e urgente. E se não se puder fazer no quadro partidário existente, comece por se fazer no âmbito da sociedade civil. O tempo urge e a tarefa será árdua. Mas recompensará.