by João Pedro Simões Dias | Jun 21, 2017 | Diário de Aveiro
No final da passada semana faleceu Helmut Kohl, o chanceler que, ao longo de 16 anos, liderou primeiro a República Federal da Alemanha e, posteriormente, a Alema nha reunificada no pós segunda guerra mundial – e que terá sido o último crente e eu ropeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governaram a Europa, se gundo opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, têm de pres tar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro peus e do projeto de cons trução da unidade europeia.
Ideologicamente, foi um democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio como um neto político de Adenauer. Em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reativar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan çamento do projeto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projeto e de dar continuidade à atuação dos pais fundado res de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários. Com Mitterrand comungou a convicção de que “o nacionalismo significa guerra”. Contra esse mesmo nacionalismo, lutaram em conjunto e de forma solidária.
No plano da política interna alemã, Kohl chegou à chancelaria de Bona em 1982, atra vés de uma moção de censura construtiva que derrubou o governo de Helmut Sch midt, quando convenceu os liberais do FDP a abandonarem a sua coligação com os sociais-democratas do SPD, passando a aliar-se aos democratas-cristãos da CDU, que Kohl liderava. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi cação se tornou efetiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efetuar sobre a ação governativa do «chanceler da reunifica ção». No mais completo isolamento, elaborou pessoalmente um documento de “Dez pontos para a reunificação alemã” que muito irritou os seus aliados, sobretudo Mitterrand e Thatcher, tementes do renascimento de uma grande Alemanha no centro da Europa. Apenas George Bush, do outro lado do Atlântico, o apoiou sem reservas, tranquilizando e garantindo a Gorbachov que a reunificação iria andar a par da integração política da Europa. E assim se faria. O início da conferência intergovernamental para a união política que conduziria ao Tratado de Maastricht e da conferência intergoverna mental para a união económica e monetária arrancariam a par do processo de reunificação da Alemanha. Com a realização desta, cumpriase o desígnio de uma vida política: ver a sua pátria reunificada e integrada numa Europa unida. Como não se cansava de repetir, a unificação alemã tinha de ser feita no quadro da unificação europeia. Kohl anunciava uma “Alemanha europeia e não uma Europa alemã”.
No plano europeu, os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes e últimos sucessos regista dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Eu ropeia: a concre tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a con cretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis tência de uma moeda única europeia. O seu empenho nesta causa europeia foi determinante para que, em Dezembro de 1998, o Conselho Europeu reunido em Viena lhe viesse a atribuir o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos, então, quinze Estados membros da União Europeia, assinalaram e condecoraram uma vida “que pe los valores tra dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man teve de forma inabalável e autêntica. Sobre tudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato”.
Os últimos anos da sua vida foram marcados e vividos com uma indisfarçável tristeza, sobretudo perante o rumo que via a “sua” Europa tomar. E também por muitas das opções que a chanceler Angela Merkel ia tomando. A ponto de ter chegado a afirmar que Merkel estava “a dar cabo da sua Europa”. Foi um profundo juízo crítico sobre a obra e a atuação da sua sucessora – certamente não desligado do comportamento in fame e ignóbil que Merkel assumiu perante Kohl no momento em que este conheceu o período mais negro da sua vida política quando, para honrar a sua palavra, se recusou a divulgar as fontes de financiamento do seu Partido. Nesse momento de provação e de violentos ataques, Merkel deixou cair quem a promoveu, quem lhe havia dado a mão, quem a havia guindado ao poder. Kohl nunca esqueceu e nunca escondeu a amargura. Morreu na passada sexta-feira, amargurado, mas com o seu lugar na Histó ria garantido.
by João Pedro Simões Dias | Jun 16, 2017 | Diário
Morreu Helmut Kohl. A notícia acaba de ser divulgada há escassos minutos e, de imediato, apeteceu-me regressar ao que sobre ele tive oportunidade de escrever em texto já publicado. São essas linhas que aqui ficam:
«Não considerarão muitos o chanceler federal alemão [Helmut Kohl] o último crente e europeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governam hoje a Europa?» – a questão, perturbadora mas lúcida, colocada pelo Encarregado de Negócios da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, no decurso de um Colóquio sobre «A Construção da Europa: problemas, pensadores e políticos», que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Cervantes, nos dias 9 e 10 de Maio de 1996 sintetiza o que, pelos finais do século XX, era opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, tinham de prestar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos europeus, do projecto de construção da unidade europeia e que, invariavelmente, concluíam pela enorme debilidade das diferentes lideranças europeias ou pela secundarização que as mesmas conferiam ao desígnio europeu e ao projecto europeu.
Afastado do poder François Mitterand – cumpridos que foram os seus dois septanatos constitucionalmente admitidos e substituído por um Jacques Chirac mais virado para as contingências da política interna francesa do que sensibilizado para os desafios da integração europeia – a Europa, particularmente a da União, é atravessada por um sentimento geral de que, dos herdeiros dos pais fundadores da primeira geração, apenas restava no exercício do poder o chanceler alemão federal: aquele que, desde a criação da República Federal da Alemanha, por mais tempo levava no exercício do cargo e que, a seu crédito, apresentava o enorme feito de haver presidido à reunificação do seu país.
Democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio neto político de Adenauer – em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reactivar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Europeia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relançamento do projecto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projecto e de dar continuidade à actuação dos pais fundadores de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários.
Os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes sucessos registados pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Europeia: a concretização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a concretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a existência de uma moeda única europeia.
Mas seguramente não será só como um pai fundador de segunda geração que a história registará a passagem de Helmut Kohl pela liderança da potência germânica. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunificação se tornou efectiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efectuar sobre a acção governativa do «chanceler da reunificação».
Estes dois aspectos, todavia, não deverão ser encarados como desligados um do outro: em variados momentos o chanceler sempre proclamou que a sua visão da Europa unida andava a par da sua preocupação com a reunificação da sua pátria dividida. E nunca a Europa lograria encontrar a sua verdadeira unidade enquanto, no seu coração, permanecesse dividida a nação alemã. Não para restaurar qualquer «Europa alemã», mas sim em nome de uma verdadeira «Alemanha europeia».
Terá sido, seguramente, considerando estes aspectos, que o Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998, concedeu a Helmut Kohl o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos quinze estados membros da União Europeia tiveram oportunidade de testemunhar a vivência europeísta de Helmut Kohl, escrevendo de forma inequívoca e que dispensa quaisquer ulteriores considerações:
«No limiar do século XXI, ainda não passadas duas gerações sobre o fim de uma guerra devastadora, podem os povos do nosso continente contemplar retrospectivamente um caminho de sucesso sem igual na via da unificação europeia. Este momento histórico em que nos encontramos, com a introdução da moeda única europeia, mostra-nos bem como o devir da história pode ser em muitas ocasiões decisivamente moldado pela acção empenhada de algumas pessoas. É esta uma afirmação que se pode fazer em especial acerca do Dr. Helmut Kohl e da sua acção como Chanceler da República Federal da Alemanha nos últimos 16 anos. Profundamente marcado pelos valores tradicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre manteve de forma inabalável e autêntica. Sobretudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união económica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato. A mesma dedicação pôs nos esforços para superar a funesta divisão do nosso continente. No seu labor incansável para alcançar esses objectivos políticos, nunca se deixou desencorajar pelos reveses, dúvidas e resistências. As suas qualidades de fiabilidade, probidade, constância, cordialidade e sensibilidade fizeram do Dr. Helmut Kohl para nós, seus colegas, um exemplo pessoal de um político que foi coroado de êxitos mas sempre se manteve humano. É também nestes traços de carácter que reside o segredo da sua grande obra em prol da Europa e da integração europeia. A realização da unidade alemã e a consolidação da unificação europeia, que culminou na união económica e monetária, são a obra da vida de Helmut Kohl. Por este labor de toda uma vida, nós, os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e o Presidente da Comissão Europeia, lhe exprimimos o nosso sincero agradecimento e a nossa profunda admiração. Por todas estas razões, o Conselho Europeu de Viena decidiu conferir ao Dr.Helmut Kohl, antigo Chanceler Federal, Membro do Bundestag Alemão, o título de “Cidadão Honorário da Europa”».
by João Pedro Simões Dias | Mar 29, 2017 | Diário de Aveiro
Vivemos um tempo estranho, num mundo em constante convulsão, em que não raro parece que todos os valores que deram ordem e forma à nossa civilização foram postergados e cederam perante uma espécie de pensamento único, desprovido de valores e princípios, em que apenas falam as vozes dos mercados, essas entidades míticas e obscuras que ninguém conhece, que ninguém elegeu, que ninguém mandatou, mas que mandam e condicionam mais do que quem foi eleito e legitimado pelo voto e pelo sufrágio populares.
Uma das principais decorrências desta ordem que a todos nos envolve e a todos nos sufoca prende-se com a proclamação, tantas vezes ouvida, de que as ideologias acabaram. Percebe-se: numa sociedade de pensamento único, que sentido faz permanecerem as ideologias, as diferentes visões sobre a sociedade e o Homem? Absolutamente nenhuma!
Não pensemos, porém, que esta nova moda é um exclusivo dos outros. Mesmo entre nós, mesmo nesta pacífica sociedade à beira-mar plantada, há quem preconize as mesmas teses, que sufrague a mesma falta de diversidade e de valores. Ou que apenas conheçam os valores do mercado, da despersonalização das sociedades, da submissão do Homem aos ditames e aos credos da finança. E porque é urgente, porque se impõe, demonstrar o mal-fundado dessas teses peregrinas, todos os esforços e todos os contributos que sirvam para demonstrar a respetiva inverdade, devem ser salientadas, devem ser estimuladas e devem ser acarinhadas. É – convenhamos – um esforço quase inglório, quase hercúleo, nada dado a concitar a atenção e o interesse da nossa comunicação social, muito mais interessada em acontecimentos de outra natureza e, sobretudo, muito pouco ou quase nada interessada em enfrentar os poderes de que depende. Ainda assim, vale a pena a tentativa e, sobretudo, o inconformismo.
Vem isto a propósito de uma excelente iniciativa ocorrida no passado fim de semana, em Lisboa, em que três antigos Presidentes do CDS-PP se reuniram numa conferência aberta ao público, sob o Alto Patrocínio do Presidente da República, para refletirem sobre o futuro da democracia-cristã. Adriano Moreira, Manuel Monteiro e José Ribeiro E Castro, num ambiente livre e sem quaisquer constrangimentos, refletiram sobre o passado, o presente e o futuro de uma ideologia que remonta à célebre encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII (15 de maio de 1891) e que, a par das correntes socialistas democráticas, foram as grandes artífices da reconstrução da Europa do pós-segunda guerra mundial, da institucionalização dos fundamentos do Estado social, da introdução de uma concepção personalista e humanista na política europeia, em vista da superação do maniqueísmo liberalismo/socialismo científico (comunismo) que atormentava as sociedades daquele tempo mas que era incapaz de fornecer as respostas para a questão operária que afligia as sociedades europeias desde o final do século XIX e o início do século XX. A iniciativa, como era previsível, passou ao lado de praticamente toda a comunicação social – em época desprovida de valores, discutir valores e princípios não vende. Mas nem por isso a Conferência deixou de se realizar e deixou de ser um sucesso, unanimemente reconhecido pelas centenas de participantes que congregou no auditório do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. Mostrando que, afinal de contas, ainda há quem se interesse por estas “velharias”, por estes temas mais densos, menos propensos à politiquice e à baixa política que todos os dias nos entra casa adentro sem pedir licença.
As conclusões que se retiraram do encontro demonstram inequivocamente o quão necessário se torna o retorno a uma política de valores, que recoloque o Homem no centro das preocupações da governação, que continue a privilegiar uma opção assumida pelos mais pobres e pelos mais carenciados, que substitua o credo cego nos mercados pelo regresso à crença nos valores; e que continue a apostar decisivamente no projeto concreto de edificação do projeto europeu, baseado em princípios que lhe deram forma, nomeadamente a solidariedade, a coesão e, sobretudo, o indeclinável empenho na construção e preservação desse bem supremo que é a paz no velho continente.
Ora, estes são valores que se impõem por si próprios e que hoje, infelizmente, não são exclusivo de nenhum partido porque nenhum os assume na sua totalidade e de forma exclusiva. São, antes, valores e princípios que continuam a merecer a adesão individual de muitos cidadãos, dispersos por várias formações partidárias. Donde, seja um imperativo de honestidade intelectual reconhecer que a democracia-cristã, entre nós, continua viva mas que a sua organização institucional está longe de ser a adequada. E por isso a mesma se encontra, frequentemente, misturada e amancebada com outras correntes de pensamento, nomeadamente liberais e conservadoras. O que, por via de regra, só contribui para confundir as propostas e aumentar as incongruências ideológicas.
Parece, pois, uma evidência que se impõe cada vez mais organizar e (re)estruturar organicamente a democracia-cristã em Portugal. Não será, seguramente, por falta de operários que a obra deixará de se fazer. Sobretudo porque se trata de uma obra necessária e urgente. E se não se puder fazer no quadro partidário existente, comece por se fazer no âmbito da sociedade civil. O tempo urge e a tarefa será árdua. Mas recompensará.
by João Pedro Simões Dias | Set 7, 2016 | Diário Económico
As eleições estaduais alemãs do passado fim de semana, no Estado federado de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental constituíram um pequeno exemplo do ambiente político a que esta União Europeia sobrante tem estado a ser reconduzida, um pouco em todos os seus Estados. Os sociais-democratas tornaram-se no partido mais votado num Estado tradicionalmente democrata-cristão; a nova força do Altrenativa para a Alemanha (AfD) logrou alcançar o segundo lugar; e a CDU da chanceler Angela Merkel viu-se relegada para um inglório terceiro lugar na escolha dos eleitores, quando por regra este era um dos seus bastiões em toda a Alemanha.
A sensivelmente um ano das próximas eleições legislativas, estes resultados têm sido olhados com redobrada atenção e escalpelizados ao detalhe pelo estado-maior dos principais partidos germânicos, não faltando quem esteja a neles ver um ensaio importante para as próximas eleições gerais.
Dois dados resultam com particular evidência deste sufrágio – e devem merecer uma meditação mais aprofundada.
O primeiro tem a ver com a forte penalização da tradicional democracia-cristã da CDU, que de primeiro passa a terceiro partido no Estado. A generalidade dos comentadores que se debruçaram sobre estes resultados eleitorais foi unânime. Angela Merkel e a sua União Democrata-Cristã foram fortemente penalizados pela sua política europeia, com particular ênfase para a sua postura relativa aos refugiados e migrantes que têm demandado a Alemanha e se têm deparado, apesar de tudo, com uma política de acolhimento flexível e disposta a integrar um número significativo desta nova vaga de refugiados, política iniciada em setembro do ano passado, quando a chanceler decidiu não bloquear o caminho para os refugiados detidos na Hungria. Não faltaram, de então para cá, dentro e fora da Alemanha, vozes reclamando um endurecimento da política alemã face a estes migrantes e um endurecimento das leis federais que permitiam que os mesmos passassem e ficassem em território alemão. Da mesma forma que não faltaram os que associaram a esta vaga de migrantes o aumento da criminalidade e, sobretudo, o recrudescimento da onda terrorista que há muito a Alemanha já não conhecia. De todas as formas, sempre as questões atinentes à política europeia a justificarem esta queda eleitoral do partido da chanceler Merkel. Diga-se, já agora e à laia de parêntesis, terem sido muito poucos os que repararam nas fracas qualidades do candidato democrata-cristão à chefia do governo estadual; detalhes, apenas detalhes….
Por outro lado, a par com esta descida da CDU, os eleitores de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental optaram por beneficiar a extrema-direita populista da Alternativa para a Alemanha, guindando-a a um inesperado terceiro lugar no ranking eleitoral. Partido que se define como fora do sistema, populista e contrário à presença da Alemanha na União Europeia com tudo o que isso supõe (nomeadamente a pertença à zona euro, a aceitação da liberdade de circulação de pessoas, a política de assimilação de migrantes), o seu crescimento fez-se, também na Alemanha, à custa de um dos tradicionais partidos que moldaram o atual sistema político germânico (a CDU). Repetiu-se, com as devidas proporções, um fenómeno que já tínhamos visto acontecer em Espanha, na Grécia, no Reino Unido, em França, na Hungria, na Polónia. E que não está dito nem escrito em lado algum que se possa dar por terminado e encerrado.
A política europeia, em escalas e tonalidades diferentes, está, pois, a penalizar os clássicos e tradicionais partidos políticos que geriram os Estados europeus no pós-segunda guerra mundial, apadrinhando e criando condições propícias para a emergência de novas e desestruturadas propostas políticas, de matiz radical e sinais políticos contraditórios, que acabam por acolher e beneficiar de todo o descontentamento que as políticas europeias despertam e suscitam. A União Europeia, por sua vez, “põe-se a jeito”: em vez de construir um projeto político europeu, oferece políticas avulsas, dirigistas, regulamentadoras e não raro contraditórias entre si; em lugar de mostrar ao mundo lideranças inspiradoras e geradoras de confiança, contenta-se em escolher e substituir regularmente simples governantes de turno, que frequentemente nem são respeitados nem se dão ao respeito; à existência de uma opinião pública forte, consentânea com uma cidadania comum que pretende potenciar, convive com a existência de vinte e oito opiniões públicas nacionais onde o sentido de pertença a uma identidade comum que complete e complemente as identidades nacionais, está completamente ausente e não é estimulado nem alimentado.
Eis-nos, pois, perante um caldo de condições verdadeiramente potenciador de um atrofiamento capaz de constranger o aprofundamento e o desenvolvimento de um espírito europeu indispensável ao projeto que se pretendeu edificar sob a égide da União Europeia. Está nas mãos dos europeus impedir que este perigo potencial se transforme numa realidade triste e deplorável.
Se a Europa e os Estados europeus pretendem ter uma voz neste mundo cada vez mais globalizado e cada vez mais estruturado em torno de grandes espaços, urge que se organize e se institucionalizem para poderem ser ouvidos e escutados. Nenhum Estado europeu, por muito grande que seja, conseguirá sobreviver por si só neste mundo globalizado e de grandes espaços. Nem sobreviver, nem fazer-se ouvir. Nem os grandes, muito menos os pequenos e médios Estados. A União Europeia tem sido, até ao presente, essa estrutura mínima que almeja representar a Europa. Se não puder ser ela, que seja outra qualquer que venha a suceder-lhe. Mas o mundo, lá fora, não prescinde da Europa para se estruturar e se organizar. Mas se esta velha Europa não se apressar, esse mesmo mundo não ficará parado à espera dela.
by João Pedro Simões Dias | Jul 8, 2014 | Diário de Aveiro
Quando, no passado dia 1, a Itália assumiu a presidência rotativa e turno do Conselho da União Europeia, era grande a expectativa que se erigia em torno do seu novo Primeiro-Ministro, o democrata (socialista) Matteo Renzi, o mais novo Primeiro-Ministro Italiano de sempre que, cansado de governar apenas a sua cidade de Florença, se abalançou a conquistar a liderança do Partido Democrático e, consequentemente, apear o também democrata Enrico Letta da chefia do governo de Roma.
Face à inexperiência em matéria de política europeia do chefe do governo romano, os receios eram muitos, as dúvidas não eram menores e, portanto, a expectativa dir-se-ia imensa. Expectativa que, apenas uns quantos – poucos – acreditavam que se poderia volver em oportunidade. Ademais, Renzi, talvez um tanto ou quanto injustamente, acabava por sofrer da “síndrome Hollande”: talvez o socialista europeu que mais esperanças concitou nos últimos anos mas cuja errância e descalabro na condução da política (interna e externa) francesa o arrastou para as ruas da amargura, a ele e ao seu partido, como os eleitores fizeram questão de afirmar, sem dó nem piedade, nas últimas eleições autárquicas e, sobretudo, nas últimas eleições para o Parlamento Europeu. Face a Renzi, as expectativas não ousaram subir tão alto como subiram com Hollande. A prudência, quase sempre, é boa conselheira, e um erro cometido duas vezes não poderia continuar a ser qualificado como um simples erro. E por isso, a começar nos próprios socialistas europeus, Renzi foi olhado com reserva, com uma certa esperança secreta mas quase nunca verbalizada.
O certo é que bastaram dois discursos para tudo mudar, para a força da palavra se impor e o novo Primeiro-Ministro italiano ir buscar créditos onde menos se esperava e conseguir gerar um sentimento generalizado de, no mínimo, elevadas e positivas expectativas.
Os dois discursos em causa aconteceram, primeiro, em Roma, ante o Parlamento italiano quando Renzi apresentou as grandes linhas gerais a que pensava submeter o seu mandato semestral à frente do Conselho da União Europeia; e, depois, em Estrasburgo, ante o plenário do Parlamento Europeu, quando os novos eurodeputados recentemente eleitos iniciaram a nova legislatura europeia discutindo as prioridades da nova presidência do Conselho. Ambos os discursos foram complementares e constituíram uma lufada de ar fresco no cinzentismo eurocrático que têm vindo a pairar sobre o céu europeu.
Desde logo e em primeiro lugar, Renzi ousou assumir o que nas mais recentes décadas muitos líderes europeus pareceram ter esquecido – “o grande desafio do semestre será não apenas agendar medidas e encontros, mas reencontrar a alma da Europa e o sentido de estarmos juntos. […] Há uma identidade a reencontrar.” De forma clara, explícita e assumida, há aqui um verdadeiro apelo a um regresso aos valores, aos princípios, a tudo o que determinou e esteve na origem fundacional do atual projecto europeu. A União Europeia não se pode reduzir a um redil despersonalizado de números, estatísticas e burocracias. Tem de ir mais longe e conquistar a alma dos europeus. Respeitando a sua diversidade mas identificando a sua identidade. É um discurso novo que se escuta, com a particularidade de coincidir com o momento em que, tudo indica, Jean-Claude Juncker – o democrata-cristão sobrante da era de Kohl e Mitterrand, que alguns consideram como o mais socialista dos democratas-cristãos europeus pela sua sensibilidade à dimensão social da ideia europeia – acederá à presidência da Comissão Europeia.
Mas Renzi foi mais longe e disse mais. Sem estender a mão, apontou o dedo a Berlim e a Haia – a Merkel mas também ao seu correligionário socialista Jeroen Dijsselbloem, Presidente do Eurogrupo, os arautos e os rostos mais visíveis das políticas austeritárias e ortodoxas europeias de reacção à crise – para assumir que “sem crescimento a Europa morre”. E que crescimento económico não tem de significar falta de rigor orçamental. Curiosamente – ou talvez não – foi da liderança parlamentar do PPE que se ouviram as principais críticas ao modelo de desenvolvimento apresentado por Renzi. O alemão Manfred Weber, novo líder da bancada do PPE (mas que, como qualquer eurodeputado alemão, antes de ser de qualquer partido é…. alemão), criticou fortemente Renzi, a propósito da “flexibilidade” orçamental. Foi a oportunidade para recordar que a Alemanha conseguiu transformar-se na potência económica que é hoje, precisamente à custa da violação das regras previstas no Pacto de Estabilidade e Crescimento, tendo sido objecto de processo de incumprimento por défice excessivo que a anterior Comissão Europeia resolveu arquivar. Ou seja, foi com base na violação das regras orçamentais da União, que a Alemanha se guindou à posição de supremacia económica de que hoje beneficia. E Renzi relembrou-o e recordou-o. O que não é frequente no Parlamento Europeu.
Em suma, os tempos próximos merecem que se dedique uma atenção cuidada à prestação do novo Primeiro-Ministro italiano. Matteo Renzi pode vir a ser aquela voz que faltava aos socialistas europeus (que o francês Hollande defraudou e o alemão Schulz nunca conseguiu ser) para credibilizar a sua visão europeia e o seu próprio projeto europeu. Se assim for, serão boas notícias para o futuro próximo da União Europeia.