O procedimento por défice excessivo

Como era mais ou menos expectável, na passada segunda-feira a Comissão Europeia deliberou recomendar ao ECOFIN, a reunião os Ministros das Finanças da União Europeia, que Portugal fosse retirado da lista de incumpridores dos critérios da convergência subjacentes à existência da moeda única, saindo do chamado “procedimento por défice excessivo”.
Trata-se, inquestionavelmente, de uma boa notícia – daquelas a que, de há muito, não estamos habituados a receber, sobretudo se provenientes de Bruxelas e das instituições europeias e comunitárias.
Portugal, recorde-se, entrou no referido procedimento, na dita lista de incumpridores, em Outubro de 2009, na vigência do governo de José Sócrates. Demorou sete anos e meio a sair desse procedimento e a recuperar a plena condição de membro cumpridor das suas obrigações perante a União.
Está de parabéns o País; estão de parabéns os governos de Pedro Passos Coelho que trouxeram o défice de 11% para 3% e o actual governo, de António Costa, que reduziu o défice de 3% para 2%. Mas estão, sobretudo, de parabéns os portugueses, todos nós, que, em escala e grau variáveis, sofremos na pele um conjunto de medidas austeritáritas sem paralelo na nossa história recente, sujeitando-nos a um processo de empobrecimento, eufemisticamente dito de “consolidação”, sem memória nem igual.
Convém, todavia, não embandeirarmos em arco; pelo contrário, convém que tenhamos aprendido com a lição e que não nos deixemos inebriar por novos e falsos messias, impostores de alto quilate, que apareçam a prometer mundos e fundos, facilidades e novos amanhãs que cantem.
A deliberação da Comissão Europeia, que certamente não deixará de ser confirmada em breve pelo Conselho da União, constitui meio caminho andado para, se tivermos juízo, critério e exigência nas nossas escolhas, retomarmos definitivamente o rumo do crescimento económico, do aceleramento da nossa economia, condição indispensável para a geração da riqueza de que o País precisa como de pão para a boca. Poderá ser, também, o elemento que faltava para, finalmente, vermos revisto em alta o nosso rating da República pelas principais agências de notação, ponto de partida para que os nossos credores possam continuar a (re)financiar a República e a nossa dívida e em condições significativamente mais favoráveis do que aquelas que atualmente existem, aliviando de sobremaneira o serviço da nossa dívida pública que, nos anos mais recentes, tem andado por uns astronómicos 8 mil milhões de euros.
Numa altura em que a conjuntura externa que envolve a nossa economia nos sorri nas mais diversas vertentes – desde logo e a título meramente exemplificativo, com abundância de recursos a um custo deveras reduzido e um preço do petróleo assaz diminuto – e em que alguns indicadores económicos internos também parecem conjugar-se no melhor sentido possível – atentemos nos excelentes 2,8% de crescimento que registou a nossa economia no primeiro trimestre deste ano ou na acentuada redução da taxa de desemprego para números inferiores aos 10%, o que traduz a melhor taxa dos últimos 9 anos – dir-se-á que, tanto na frente externa como na frente interna, os astros se conjugam de forma anormalmente favorável para que os desideratos do país sejam alcançados e a recuperação económica deixe de ser uma miragem ou apenas uma tendência para se transformar numa realidade sustentada e consistente. Bastará, dirão alguns, não fazer asneiras e não contrariar um destino que parece favorável.
Todavia, e como ainda há poucos dias alertava o Presidente da República, impõe-se sermos cautelosos e prudentes e não nos deixarmos contagiar por euforias que quase sempre são más conselheiras. Avisado conselho vindo de Belém, sobretudo porque foi feito em dia em que alguma imprensa dava conta de que os ainda ténues sinais de recuperação económica já estavam a gerar um aumento desmesurado do crédito bancário, sobretudo às famílias e para consumo, o que estava a ter como consequência o disparar das situações de incumprimento perante as instituições bancárias. Ora, este foi um, apenas um, dos fatores incontornáveis que nos conduziu ao ponto crítico a que chegámos. Repetirmos o erro seria imperdoável. Significaria nada termos aprendido nem com os nossos próprios erros nem, sobretudo, com tudo aquilo que sofremos e por que passámos.
Mas o risco, alerte-se, não seria original. Das anteriores vezes em que Portugal esteve submetido a procedimentos de défices excessivos e se libertou dos mesmos, um ano depois estava de novo caído em tais procedimentos. Ou seja, a lição não nos serviu para nada. Espera-se, obviamente, que o erro não se repita – sobretudo porque, a repetir-se, as condições a que seríamos sujeitos seriam, fatalmente, muito mais gravosas e muito mais dolorosas. Seguramente trariam consigo novo resgate e os condicionalismos que lhe estariam associados; e que não seriam meigos nem doces. É, pois, chegada a altura de provarmos que o bom aluno de Bruxelas é, mesmo, um bom aluno e não um estudante relapso. E nesta matéria, a responsabilidade estará, toda e apenas, nas mãos do governo. Não dos anteriores, mas deste. E só deste. E na forma como vai saber reagir às próprias pressões internas da coligação governativa, que não faltarão, para voltar ao caminho do despesismo irresponsável. É aí que tudo se jogará; que tudo se decidirá.

Sanções económicas ou ajuste de contas político?

Portugal ficou a saber ontem aquilo de que os portugueses e o próprio governo já suspeitavam há bastante tempo: a ultrapassagem do défice orçamental em 2015 em duas décimas percentuais vai-nos ficar cara e vai-nos, tendencialmente, direta e/ou indiretamente, custar muito dinheiro. De facto, a Comissão Europeia já tinha aconselhado os ministros das Finanças da União a aplicar sanções a Portugal (e a Espanha) e, agora, o ECOFIN validou essa recomendação, deu dez dias aos países visados para entregarem as suas observações escritas findos os quais a Comissão Europeia terá mais vinte dias para formular uma proposta de sanções que podem passar por uma multa financeira com o limite máximo de 0,2% do PIB e pelo congelamento dos fundos estruturais em 2017 no menor dos dois valores seguintes: 50% dos fundos europeus ou 0,5% do PIB.
Estas sanções, que têm sido formalmente apresentadas como sanções económicas, suscitam no imediato quatro comentários ou observações.
Em primeiro lugar, aplicar sanções a Portugal é uma estupidez tanto política quanto jurídica. Numa altura em que os europeus andam zangados com a União Europeia (como ainda agora se comprovou pelos resultados do recente referendo britânico) a quem atribuem a responsabilidade por todos os males e dificuldades que estão a atravessar, devido às políticas de forte recorte austeritário que a União tem forçado muitos países a seguirem, aplicar sanções a dois Estados europeus por estes não terem sido suficientemente rigorosos, revela enorme insensibilidade política. Significa dar mais um passo para a União Europeia perder definitivamente a batalha das opiniões públicas nacionais. E contra as opiniões públicas e os povos da Europa, não há projeto político que tenha qualquer futuro e que se possa salvar. É, por isso, uma estupidez política com duvidoso (para ser parcimonioso na adjetivação) fundamento legal.
Em segundo lugar, a aplicação destas sanções não pode ser censurada apenas às instâncias europeias. Constituem, também, uma óbvia derrota política, no que a Portugal diz respeito, quer do anterior quer do atual governo. O anterior governo deixou, incompreensivelmente, derrapar o défice orçamental para além dos 3%. Em ano eleitoral, cedo começou a abrir os cordões à bolsa e a gastar por conta…. A conta apareceu agora e não é barata. Mas o atual governo não se pode livrar de responsabilidades sobretudo por aquilo que não fez. António Costa fez uma campanha inteira afirmando e prometendo uma nova postura na política europeia de Portugal. Chegou a invocar o apoio e a relação privilegiada com muitos governantes socialistas europeus. Pois bem – chegada a altura de mostrar as suas credenciais, viu-se nada. Mais de metade dos ministros das finanças que votaram a aplicação destas sanções a Portugal são seus parceiros socialistas, trabalhistas ou sociais-democratas europeus. Serviu de alguma coisa? De nada. Apenas serve para que, doravante, não mais se possa recorrer ao discurso da tribo neo-liberal contra os defensores do Estado social. Como se vê, andam todos juntos e de mãos dadas.
Em terceiro lugar – o tipo de sanções anunciadas. A multa – ainda que seja a célebre “multa zero” de nenhum impacto financeiro direto no orçamento mas inquestionável dano reputacional e, por isso, também impacto orçamental ainda que indireto – e o congelamento dos fundos comunitários. Esta última muito mais danosa do que a multa financeira. Sabemos que o nosso crescimento económico abrandou e o pouco que se prevê alcançar será conseguido com base na procura interna e no consumo. Investimento, público ou privado, nem vê-lo. E o pouco que sobra, tem acentuada tendência para decrescer. Neste clima, será de todo importante a alavancagem que os fundos estruturais europeus possam dar à nossa economia, contribuindo para que ela cresça um pouco mais. Privá-la desse balão de oxigénio significa condenar-nos mais a uma maior e mais extensa penúria. Outra incongruência deste processo em que ninguém fica bem: Portugal é condenado por não cumprir e falhar objetivos consagrados nos tratados europeus e a sanção aplicada consiste em aplicar medidas que ainda vão dificultar mais esse mesmo cumprimento. Supremo paradoxo duma União onde o economicismo venceu, definitivamente, a política!
Finalmente, mas não menos importante, a aplicação destas medidas atesta na perfeição que a União deixou de ser uma organização de direito e passou a ser uma entidade onde predomina a discricionariedade e onda reina o casuísmo. Outros Estados houve que deram motivos vários à aplicação de sanções por incumprimento de outras disposições dos tratados, nomeadamente saldos orçamentais excessivos. Onde estão as sanções para eles? Quiçá na teoria de Orwell que nos ensinou que todos são iguais mas que uns são mais iguais do que outros…. Assim parede também acontecer na União Europeia. E esse é, inquestionavelmente, mais um passo dado no sentido da desagregação e descredibilização desta União Europeia em processo acelerado de desconstrução.
Por estas razões, e outras que se poderiam enunciar, parece um dado adquirido que as sanções que se anunciam a Portugal (e a Espanha) como sanções económicas, de económicas têm apenas o nome. Objetivamente são sanções políticas e é como sanções políticas e como um ajuste de contas político que podem e devem ser encaradas. E assim sendo, sem prejuízo da defesa jurídica que o governo português entenda dever fazer da posição do nosso país, é no terreno político que estas sanções ou este ajuste de contas devem merecer resposta e devem ser combatidas. E não nos limitemos a queixarmo-nos da sua aplicação porque, apesar de tudo, os tratados dão-nos vários instrumentos para o debate e o combate político que devem ser travados. Assim haja, para tanto, a necessária vontade política. E a necessária arte e engenho.