Umas eleições presidenciais atípicas
As eleições presidenciais do passado domingo, em França, foram, a vários títulos, umas eleições atípicas e “anormais”. Desde logo, e contrariamente ao sucedido em recentes actos eleitorais, a generalidade das sondagens e estudos de opinião acertaram em cheio nos resultados que se registaram no momento da contagem dos votos. Tem sido um dado raro e, por isso, merece relevo e realce. Claro – como se verificou um acerto, isso não constituiu notícia.
Por outro lado, se atentarmos aos resultados eleitorais comparados, há dois elementos que não podem deixar de ser realçados.
O primeiro, tem a ver com o facto de o Partido Socialista francês e o seu candidato Benoît Hamon terem tido o pior resultado eleitoral desde o longínquo ano de 1969. Nunca, desde então, o score eleitoral dos socialistas franceses desceu tão baixo como no passado domingo. Várias causas poderão justificar este verdadeiro desaire. Desde logo, o mandato desastroso de François Hollande. Aquele que, há tão-só cinco anos, era visto como o farol de esperança do socialismo democrático europeu, devido a uma série infindável de errâncias que marcaram o seu mandato, volveu-se em coveiro do Partido Socialista francês. Não se submeteu ao sufrágio presidencial, remetendo para a fogueira do eleitorado um impreparado Benoît Hamon que, jogando “à esquerda”, esbanjou o centro outrora protagonizado pela, agora, maldita “terceira via” – que um dia Tony Blair fundou e que constituiu o último momento que conferiu efetivo poder na Europa ao socialismo democrático. Hamon ficará, para a história, como o protagonista de um estertor desse mesmo socialismo democrático em França – o que, objetivamente, é um péssimo serviço prestado a esse mesmo socialismo democrático europeu.
O segundo elemento prende-se com o facto de, pela primeira vez desde 1958, data em que se fundou a atual V República francesa, a direita tradicional e gaullista não ter um candidato na segunda volta das eleições presidenciais. François Fillon, o mais bem posicionado há escassos meses, coberto por um labéu de corrupção, não resistiu a uma série de escândalos em cadeia que afetou a sua credibilidade e até a sua honorabilidade. O eleitorado que conseguiu segurar, apesar de tudo, na casa dos 20%, foi insuficiente para lhe garantir uma presença na segunda volta presidencial.
Com este cenário, a segunda volta das presidenciais, dentro de duas semanas, jogar-se-á entre dois candidatos “atípicos” mas prováveis.
De um lado, o independente centrista e europeísta Emmanuel Macron, o candidato que, sem partido, que há cerca de um ano fundou o seu movimento “En marche” e logrou ser o mais votado na primeira volta e parte para a segunda volta “confortado” com uma pluralidade de apoios que atravessa transversalmente todo o campo democrático francês, da esquerda democrática à direita democrática. Muito deste voto e muitos destes apoios são, manifestamente, votos contra Marine Le Pen. No momento da verdade, porém, não deixarão de somar para Macron.
Do outro lado – Marine Le Pen. A candidata da extrema-direita nacionalista que, pasme-se!, lidera o maior partido político francês nesta altura. É, nessa medida, uma vítima do sistema político-eleitoral gaulês. A consagração do sistema maioritário a duas voltas não lhe dá mais de 2 (!) deputados entre o 577 que compõem a Assembleia Nacional francesa – apesar de ser, neste momento, o partido político mais votado em França.
Significa isto que o próximo Presidente da República francês irá ter de trabalhar sem um partido que o suporte e que apoie explicitamente o governo que terá de apresentar à Assembleia Nacional. É uma rutura com os fundamentos e as bases constitucionais da V República. Não nos esqueçamos que quando o General de Gaulle fundou a V República francesa, nos idos de 1958, um dos pressupostos subjacente ao sistema político que a Constituição de 4 de outubro desse ano consagrou era o de que o Presidente da República e Chefe de Estado, eleito diretamente pelos cidadãos, seria uma espécie de chefe de fila ou líder de facto do partido ou movimento político que fosse maioritário na Assembleia Nacional de Paris. Enquanto líder de facto dessa maioria, designaria o seu Primeiro-Ministro o qual, depois de obtida a confiança presidencial, deveria ser confirmado pelo Parlamento. Esta estreita ligação que se estabelecia entre o Presidente, o seu Governo e a Assembleia Nacional eram, por assim dizer, a garantia da estabilidade e do funcionamento do sistema político gaulês. Quando, com Mitterrand, pela primeira vez, a sintonia foi quebrada, assistimos ao nascimento dos primeiros governos de coabitação, caracterizados, basicamente, por uma desconformidade entre as maiorias presidencial e parlamentar – com esta a impor os seus governos ao titular do Eliseu.
Mesmo essa anormalidade, porém, parece ultrapassada. Os novos tempos que se anunciam prenunciam novos e mais difíceis desafios lançados à Constituição da V República. Esta irá ser levada aos seus limites e testada como até agora nunca o foi. E pode acontecer que, quando nos apercebermos, estejamos a ser confrontados com o caminho para uma nova Constituição que funde uma nova República. Talvez já tenha faltado mais tempo.