A Espanha invertebrada

Pedi emprestado a José Ortega y Gasset, um dos principais expoentes da filosofia espa­nhola ou castelhana do início do século passado, o título do presente texto. E fi-lo, delibe­rada e conscientemente, não só por entender que o mesmo se adequa cabal­mente à reflexão que aqui pretendo deixar como, também e sobretudo, como uma simples e singela forma de homenagem a um dos textos mais clarividentes, quiçá mesmo prescientes, de Gasset. Naquele seu texto, recordemo-lo, o filósofo de Salamanca refletia, já em 1922, praticamente há um século, sobre o fenómeno da desestruturação e desintegração de Espanha, com base e a partir de uma das suas principais fragilidades – o seu plurinacionalismo. Decerto – o enquadramento de que Gasset parte é substancialmente diferente da situação dos nossos dias. A essência do diagnóstico, porém, perma­nece incólume e intocável.

Quando Gasset escreveu a sua obra, a Espanha das primeiras décadas do século XX defrontava-se com as ameaças que incidiam principalmente sobre as suas principais possessões ultramarinas. E o filósofo identificava tais ameaças com a plurinacionalidade dessas mesmas diferentes colónias que, gradualmente, pressionavam o centro da governação, num movimento que era oriundo das periferias para esse mesmo centro do poder. E, refletindo sobre a realidade peninsu­lar dessa Espanha do seu tempo, atreveu-se a prever que idêntico movimento acabaria por se replicar na própria Península, fruto dos regionalismos que, tendo na sua base diferentes nacionalismos, acabariam por conduzir, fatalmente, a fenómenos secessionistas. A desintegração ultramarina seria, assim, a antecipação ou prelúdio, o prenúncio da desintegra­ção peninsular espanhola.

Ora, nunca como hoje a profecia ou leitura feita por Ortega y Gasset esteve tão perto de se concretizar e de se tornar realidade. A situação que está a ocorrer na Catalu­nha ilustra-o na perfeição. E é sobre isso que devemos meditar.

O poder central de Madrid até pode vir a conseguir estancar todas as pressões nacionalistas e independentistas que se fazem sentir na Catalunha. Poderá, no limite, conseguir impor a força da legalidade constitucional e fazê-la prevalecer sobre o espírito nacionalista e as ânsias independentistas que, admitamo-lo, até podem ser atualmente minoritárias. Tudo isso é possível; tudo isso é provável. Nada disso garantirá, porém, a resolução de fundo para o problema que a Espanha tem. E esse problema é, justamente, a multiplicidade das suas nacionalidades. Como já tivemos oportunidade de escrever e de anotar, por diversas vezes, a Constituição espanhola parte e assenta num equívoco. Esse equívoco chama-se “nação espanhola”. Pelo simples e elementar facto de que é uma realidade virtual, que não existe no terreno. Que foi ficcionada pelos pais da Constituição de 1978; mas que nunca saiu do domínio da ficção. A Espanha não é uma nação; é um Estado multinacional ou plurinacional, onde convivem e confluem várias nações. Nações essas que, em regimes democráticos, mais tarde ou mais cedo aspirarão a organizar-se politicamente sob a forma de Estados. Essa é uma inevitabilidade história e uma aspiração a que, por regra, nenhuma nação renuncia ou foge. Por isso, quando este fenómeno é contrariado, nascem e emergem os nacionalismos perigosos, fonte de muitos dos problemas que a Europa tem conhecido. Mas o nacionalismo apenas se torna perigoso quando é reprimido ou combatido.

Este princípio, de resto, do chamado Estado nacional e de dar a cada nação a possibilidade de se organizar politicamente sob a forma de Estado, não é uma descoberta recente. Já no início do século XX o Presidente dos EUA Wilson o enunciava como uma das condições necessárias para evitar novos cataclismos como o da primeira guerra mundial. Não é por ser antigo que perdeu validade.

Voltando ao caso espanhol – aquilo a que assistimos na Catalunha pelos dias de hoje é à emergência do nacionalismo catalão em busca da sua organização política autónoma. O gene da nação está-lhe imanente e, por isso, esta é uma batalha condenada a não terminar. Pode ser derrotada, pode ser amordaçada, pode ser apoucada. Dificilmente será vencida.

Nesse quadro, melhor fariam os dirigentes de Madrid em buscar uma solução de longo prazo do que uma vitória de curto prazo. Para tal, porém, também se requereriam políticos com sentido de Estado, mais do que governantes com sentido eleitoral. E isso é coisa que também pela Espanha dos nossos dias não abunda.

Uma Catalunha independente?

No passado domingo a Catalunha foi a votos para, num arremedo de referendo, se expressar sobre a sua independência. O fundamento para a realização dessa espécie de referendo foi, assim nos foi dito, o exercício democrático do direito dos catalães a expressarem a sua opinião sobre o seu futuro político. Tratou-se, portanto, assim foi contado ao mundo, de uma manifestação do princípio democrático. Acontece, porém, que se levarmos a análise a um maior grau de profundidade e não nos ficarmos pela superficialidade da espuma dos sias, talvez esse dito princípio democrático tenha muito pouco de democrático.

Os organizadores do dito referendo limitaram-se a constatar que, a simples possibilidade de os catalães depositarem um papel numa urna, significaria que se estava perante um exercício de democracia. Nada mais falso, nada mais errado, nada mais desconforme com as regras e os princípios. É verdade que, sem votos, não existe democracia. Nenhuma democracia pode prescindir do exercício inalienável do direito de escolhe e esse direito exerce-se através do voto. Acontece, porém, que o voto, por si só, não é suficiente para demonstrar a existência de uma democracia. Também se vota na Venezuela. Também se vota na Coreia do Norte. Também se votava no Portugal de antes do 25 de Abril. E a ninguém de bom-senso passará pela cabeça sustentar ou defender que, na Venezuela, na Coreia do Norte ou no Portugal salazarista vigoravam regimes ou sistemas democráticos. Assentemos, portanto: sem votos não há democracia; mas o voto por si só não chega para afirmar a existência da democracia. Esta, para existir, na sua plenitude, supõe e exige que, a montante, antes do momento de se exercer o voto, estejam reunidos um conjunto de requisitos e pressupostos, também eles definidores do princípio democrático: no momento de apresentação de candidaturas, no momento de fixação de garantias sobre a forma como as votações decorrem, no momento de contagem e apuramento de resultados, no momento de fixação do colégio eleitoral, no momento de composição de assembleias de voto, etc, etc. Em todos esses momentos, a montante e prévios ao exercício do direito de voto, as regras democráticas da transparência e da legalidade hão-de estar presentes se quisermos ou pretendermos estar ante uma verdadeira manifestação do princípio democrático. Ora, nada disto ocorreu, no passado domingo, na Catalunha.

O pretenso referendo foi convocado à revelia da lei e por quem não tinha competência legal para o fazer; os cadernos eleitorais não existiam, possibilitando que um cidadão votasse mais de uma vez; as urnas não funcionaram em assembleias eleitorais devidamente constituídas mas chegaram a estar postas na rua; o secretismo do voto pura e simplesmente não existiu; as garantias de regularidade e transparência do processo eleitoral eram palavra vã; o apuramento dos resultados chegou a dar percentagens totais que em alguns casos ultrapassavam os 100%….

Tudo isto, e muitas outras irregularidades que se poderiam apontar, é suficiente para demonstrar o contrário do que se pretendeu afirmar com a realização do dito referendo: em nada o mesmo contribuiu para ilustrar o exercício da democracia por parte dos catalães.

E, como era de esperar, foi-nos dito que uma ampla maioria de votantes, na ordem dos 92% haviam votado a favor da independência da Catalunha. Com um tal enquadramento o espanto só pode, mesmo, residir na percentagem de votos que é indicada: “só” 92%? Obviamente que a própria comunidade internacional não esteve desatenta e não há notícia de quem quer seja, até agora, ter reconhecido tal referendo. Eventualmente, apenas Nicolas Maduro….

O problema é que, segundo notícias recentes, será este simulacro de referendo que estará na base das exigências do sector mais nacionalista do governo autónomo da Catalunha para, dentro de horas, proclamar a independência unilateral da Catalunha. Ora, a ser verdade e a confirmar-se um tal passo rumo ao abismo, parece inevitável que ao governo de Madrid outra opção não restará do que utilizar a sua bomba atómica constitucional – célebre artigo 155º da Constituição que prevê as situações em que o poder central possa derrogar e reverter as autonomias. Como se percebe, seria uma solução para a rebelião mas não uma solução para o problema.

As autoridades centrais de Madrid desde sempre enfrentaram este desafio no plano jurídico, remetendo sempre para os Tribunais as decisões mais difíceis de tomar. Nunca assumiram a vertente política do caso e, por isso, nunca encetaram verdadeiras negociações políticas com as instâncias autonómicas de Barcelona. Foi um erro crasso que seguramente ainda lhes virá a custar caro. Mais caro do que já custou. É que se na Catalunha nem todos são independentistas ou soberanistas, quase todos ou a imensa maioria são, neste momento, anti-madridistas. E isso em nada contribui para a resolução do diferendo que existe, que é real e que está instalado.

Numa palavra, o desatino com que este processo tem sido conduzido de parte-a-parte só pode levar a uma “solução lose-lose”, em que ambas as partes saem perdedoras. Não se adivinha saída mais provável para esta crise. Em qualquer dos casos, parece certo que, por muitos e longos anos, a Espanha que conhecemos já acabou. Doravante será, sempre e necessariamente uma coisa diferente. Podemos não saber o quão diferente será. Mas será, certamente, diferente. Com ou sem a Catalunha.

Paradoxos europeus

Durante os chamados “anos de chumbo” da crise europeia que teve o seu início em 2008 – proveniente do outro lado do Atlântico, onde rebentou um ano antes – parte significativa da Europa entreteve-se a criticar e a censurar a atuação da chanceler alemã, Angela Merkel, responsabilizando-a por quase tudo o que de negativo afetava a Europa, mormente as duras medidas de austeridade que foram impostas a muitos Estados europeus, nomeadamente os Estados do sul da Europa, que eram os que mais se debatiam com a célebre questão das dívidas públicas quase insustentáveis. Merkel era, por esses dias, a personificação e o rosto da austeridade, a cara das duras medidas que se abatiam sobre parte muito significativa dos europeus e que se traduziram nos resgates financeiros que não pouparam a Grécia, a República da Irlanda, Portugal, Chipre e a Espanha (ainda que esta de forma encapotada, sob a forma de apoio exclusivo à banca).

Escassos anos volvidos, deixada para trás – assim se acredita! – a crise europeia, as eleições legislativas do passado fim de semana na Alemanha vieram pôr em destaque que Angela Merkel emergiu como um dos principais rostos não só da Alemanha como, também, do que sobra desta União Europeia que, por vezes se nos afigura caminhar em passo acelerado para o seu processo de desintegração.

Fruto de uma política profundamente humanista e personalista – que a levou a abrir as portas da Alemanha a mais de um milhão de refugiados da guerra síria que demandaram o continente europeu em busca apenas e só de serem felizes e realizarem os mais básicos dos direitos humanos, e que lhe custou alguns milhões de votos – sem igual nem paralelo na história europeia, sobretudo na história recente da Europa, e face ao descalabro eleitoral social-democrata e socialista, que obteve os seus piores resultados desde o fim da segunda guerra mundial, Merkel volveu-se na imagem e no rosto visível que concitou as atenções tanto de alemães quanto de europeus na esperança de conter e de travar o movimento ascensional de uma extrema-direita constituída em torno da Aliança para a Alemanha (AfD), mas desprovida de coerência doutrinária ou homogeneidade ideológica.

O objetivo apenas parcialmente foi alcançado. Merkel logrou obter o seu quarto sucesso eleitoral, ainda que sem alcançar a procurada maioria absoluta. E apesar da sua política humanista – ou por causa dela – das esperanças que nela depositou uma parte significativa da Europa, a AfD guindou-se ao terceiro lugar no sufrágio, obtendo 13% dos votos e fazendo entrar no Bundestag, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, deputados de uma extrema-direita antieuropeia, anti-imigração, xenófoba e profundamente racista. Na noite do passado domingo, parte significativa da Europa deu consigo a recordar alguns dos seus piores demónios internos, que julgava já enterrados definitivamente no baú das recordações e dos seus próprios horrores. A chanceler, se não foi capaz de travar esta ascensão ficou, todavia e paradoxalmente, ainda mais responsabilizada na construção de uma alternativa política de governação para o gigante económico europeu. Alternativa que, sabe-se já, não deverá contar com o apoio e a participação social-democrata: Martin Schulz foi claro na noite eleitoral – o destino do seu partido seria ir para a oposição no próximo quadriénio, reorganizando-se para o combate de daqui a quatro anos. À chanceler, por simples exclusão de partes, não restam mais de duas possibilidades para continuar a governar a Alemanha: ou partir para a legislatura com um governo minoritário, o que está longe da tradição política do Bundestag, ou tentar formar a inédita (a nível federal) e improvável “Coligação Jamaica”, associando os democratas-cristãos da CDU/CSU aos Verdes e aos liberais do FDP que regressaram ao Parlamento depois de quatro anos de ausência. A formação desta improvável coligação não deixará de constituir importante teste para a capacidade negociadora de Merkel – que tentará moderar e conciliar as exigências da sua esquerda (Verdes) e da sua direita (Liberais). Talvez o maior teste em termos de negociação política desde que ocupa a chancelaria.

Paradoxalmente, porém, não serão só os alemães que estarão expectantes e atentos. Também aos europeus, a todos nós cidadãos desta União Europeia sobrante, o que se vier a passar não nos será, de todo, indiferente. Pelo papel liderante que desempenha na União, a posição do governo de Berlim será determinante para muitos dos dossiers que estarão em cima da mesa de Bruxelas. Do Brexit à reforma institucional e ao aprofundamento da zona euro – a palavra final passará sempre pelo governo de Berlim. Também nessa medida o paradoxo se verifica – quem ontem era detestada pelas suas opções políticas, é vista hoje como a única capaz de sustentar as reformas que a União necessita e carece urgentemente. Reformas como aquelas que, por exemplo, Merkel já havia dado mostras de ter articulado com Macron. E que, agora, estão objetivamente postas em causa, sobretudo pela agenda europeia dos renovados liberais alemães. Outro paradoxo do passado domingo: mesmo sem ter ido a votos, Emmanuel Macron foi um dos grandes derrotados do sufrágio alemão. Os resultados saídos das urnas alemãs podem ter hipotecado o apoio alemão a parte importante da sua agenda política europeia.

Assim se vai fazendo e construindo a política europeia dos nossos dias: navegando à vista, sem uma linha de rumo definida, com avanços e recuos. E com paradoxos; muitos paradoxos – que só servem para a tornar cada mais indecifrável e menos previsível.

Catalunha, 1 de outubro

Tem passado significativamente ao lado quer da nossa opinião pública quer da nossa opi­ nião publicada a verdadeira querela autonómica-constitucional que, por estes dias, se vai travando aqui ao lado, em Espanha, a propósito do referendo autonómico que a Generali­ tat da Catalunha convocou unilateralmente para o próximo dia 1 de outubro e que o governo central de Madrid tem contestado e ameaça impedir por todos os meios ao seu alcance. A pergunta que será colocada aos catalães é a seguinte: “Está de acordo com um Estado Independente sob a forma de República?” Se o “sim” vencer, a independência será declarada no parlamento catalão 48 horas depois do referendo. Se perder, serão convocadas novas eleições autonómicas. E se o Governo espanhol impedir a realização desse referendo, a secessão será proclamada de forma automática e imedi­ ata pelo mesmo parlamento.

Esta disputa em torno da marcação e eventual realização deste referendo autonómico e independentista tem dominado todo o debate político em Espanha e tem vindo em cres­ cendo de radicalização, com as duas partes envolvidas a recorrerem a todos os meios ao seu alcance para conseguir a realização do sufrágio ou para impedir a sua concretiza­ ção. A ponto de, em boa verdade, nenhuma delas ter, já, margem de recuo ou de negociação sob pena de perder irremediavelmente a face. E é esta radicalização já atingida no clima político da Catalunha que tornam o processo referendário em curso num momento potencialmente perigoso, tanto para o Estado espanhol como para a pró­ pria Catalunha.

No que à Catalunha diz respeito, a generalidade dos estudos sociológicos encarrega-se de demonstrar uma realidade iniludível: a Catalunha está partida em dois blocos pratica­ mente iguais. Significa isto que o referendo de 1 de outubro, a realizar-se e concretizar-se, ameaça assim tornar-se numa verdadeira batalha de catalães contra catalães. Com ou­ tra agravante: o próprio bloco nacionalista catalão está longe de possuir uma estru­ tura homogénea ou coerente, com uma agenda coesa e coerente. A coligação Juntos pelo Sim – formada pela Esquerda Republicana da Catalunha e o Partido Democrata Euro­ peu da Catalunha (PDeCAT, antiga Convergência) – e a CUP – Candidatura de Uni­ dade Popular – convergem no apoio parlamentar ao governo autonómico catalão, na de­ fesa da independência da Catalunha, mas não têm uma base doutrinária homogénea e comum.

Mas também do lado do bloco nacionalista espanhol – dominado pelo Partido Popular, pelo Partido Socialista e pelos Cidadãos – as divergências são profundas e assinaláveis. Une-os a recusa do referendo independentista, a negação da possibilidade de autodetermina­ ção de qualquer autonomia espanhola e pouco mais. Entre estas forma­ ções partidárias, porém, não se divisa uma coesão ou uma homogeneidade de visões so­ bre o futuro territorial daquilo que é a Espanha dos nossos dias. Nesse plano, aliás, es­ tará do lado do Partido Socialista espanhol – sobretudo muito por efeito da renovada lide­ rança de Pedro Sanchez – a abordagem doutrinária e dogmática mais consistente dessa mesma realidade da Espanha dos nossos dias, definindo-a como uma “Nação de Na­ ções”. É uma perspetiva e uma abordagem, cremos, muito mais consentânea com a reali­ dade do que aquela, por exemplo, que é sustentada pelo Partido Popular e por Mari­ ano Rajoy – que embarcam no mito e no sofisma que a Constituição espanhola consa­ gra, ao criar e referir-se a uma “nação espanhola”, realidade absolutamente mí­ tica, inexistente quer no plano dos princípios quer no domínio dos factos.

É assim, uma Catalunha profundamente dividida no quadro duma Espanha minada pelas suas contradições territoriais, que se apresta a ter uma palavra decisiva sobre o seu futuro no próximo dia 1 de outubro. Se o referendo se realizar, o dia 2 de outubro será uma incógnita tremenda. Com ondas de choque que não se limitarão a Espanha e que poderão fazer-se sentir em vários territórios da União Europeia que anseiam pelos momentos de, igualmente, se poderem expressar sobre as suas autodeterminações. Se a vontade – e a força – de Madrid se impuserem e ganharem o braço-de-ferro com Barcelona, as consequências também não se adivinham fáceis de antecipar, atendendo, sobretudo, à divisão reinante na Catalunha.
O dia 1 de outubro marcará, assim, o confronto do Estado (dotado do acervo de competências que lhe restaram) com a sua Autonomia (que busca disputar uma parcela significativa daquele acervo). Saber quem levará a melhor neste braço-de-ferro pode ser determinante para o futuro não só da Catalunha, não só de Espanha, mas também de muitos outros territórios europeus. Por isso, toda a atenção que lhe dediquemos, não será demais.

O Estado-exíguo.

Foi o Professor Adriano Moreira quem, pelo início dos anos oitenta do século passado, trouxe para o nosso vocabulário político e promoveu a divulgação da expressão “Estado exí­guo”, com ela querendo significar ou ilustrar um Estado incapaz de cumprir as suas tare­fas mais básicas, aquele mínimo de atribuições que justificam a sua existência e que a clássica ciência política ensina como sendo a segurança, a justiça e o bem estar e bem co­mum dos seus cidadãos. Um Estado que não seja capaz de cumprir e dar resposta a es­ses objetivos ou finalidades, é um Estado que não tem razão de existir, que não cum­pre as finalidades para as quais é criado, que não desempenha o mínimo indispensável de tarefas que os seus cidadãos lhe confiam por meio do contrato social em que o mesmo Estado se funda. Chamava, na altura, o Professor Adriano Moreira a atenção para o facto de, nesses idos do século passado, Portugal caminhar assustadora e vertiginosa­ mente para essa condição de Estado exíguo, incapaz de desempenhar o mí­nimo de tarefas essenciais que os cidadãos dele esperavam e para as quais abdicaram de uma parcela da sua liberdade individual e dos seus direitos para os confiarem a esse mesmo Estado.

Pese embora tenha introduzido o conceito pelos anos oitenta do século passado, o que o nosso querido Mestre nunca terá, por certo, imaginado foi a situação que este nosso País viveu nas últimas duas semanas e que, salvo outra e melhor opinião, veio ilustrar na perfeição o exemplo de um verdadeiro Estado exíguo, incapaz de prover às mais elementa­res necessidades dos seus cidadãos, falhando rotundamente onde não seria su­ posto que um Estado, na plenitude das suas competências, pudesse falhar.

Em primeiro lugar foi a tragédia de Pedrógão Grande e concelhos limítrofes. Não, não foi o Estado e o seu aparelho político-administrativo que foram responsáveis pelo eclodir dos incêndios. Mas já não podemos subscrever idêntico juízo absolvedor relativamente à forma como esse mesmo aparelho político-administrativo (não) reagiu ao eclodir da tragé­dia. A multiplicidade de serviços, agências e corporações que foram convocadas para (não) responderem à catástrofe, não só nos evidenciam a completa e desorgani­zada dispersão do poder por inúmeros organismos e entidades como, mais importante que tudo, demonstram à saciedade a total desorganização e a completa falta de coordena­ção entre todos esses serviços dependentes de um mesmo e único Estado. En­tre entidades convocadas para a previsão do fenómeno meteorológico até entidades responsá­veis pela prevenção dos incêndios, pelo combate, pelo socorro, pelo policia­mento, pela segurança, pela assistência, pelas comunicações – contam-se mais de uma de­zena os serviços públicos, de variada natureza e diversa finalidade que, chamados a actua­rem, fizeram o melhor que puderam sem embargo de se reconhecer, hoje, que esse me­lhor possível ficou muito distante do mínimo exigido. Ou seja, perante um fenómeno natu­ral de magnitude sem precedente, que ninguém exigiria que o Estado pudesse anteci­par ou evitar, constatou-se impreparação das entidades públicas para atenuarem os seus efeitos e curarem das suas consequências. Em matéria de segurança e proteção da vida e dos bens dos seus cidadãos, o Estado, o nosso Estado, falhou e demonstrou-se impreparado para o cumprimento da sua missão. O auxílio e recurso a meios externos para o cumprimento de uma missão que devia ser, em primeiro lugar, nacional, não deter­mina a exiguidade do Estado. Mas ajuda a perceber que o Estado se assumiu como um verdadeiro “Estado exíguo”. 64 vidas humanas foi o preço a pagar pela impreparação dos diferentes serviços e agências da nossa administração e do nosso poder político.

Mal refeitos da tragédia incendiária, fomos confrontados, na passada semana, com um assalto a um dos principais depósitos de armamento militar do país, em Tancos, donde foram furtados (porque nem de roubo se tratou…) mate­rial capaz de espoletar um conflito militar em qualquer parte do mundo. Pela imprensa espa­nhola (!), soubemos que o furto abrangeu um verdadeiro arsenal (1450 cartuchos de 9 mm; 22 Bobinas ativadoras por tração; 1 Disparador de descompressão; 24 Disparado­res de tração lateral multidimensional inerte; 6 Granadas de mão de gás lacrimogé­neo CS / MOD M7; 10 Granadas de mão de gás lacrimogéneo CM Antimotim; 2 Granadas de mão de gás lacrimogéneo Triplex CS; 90 Granadas de mão ofensivas M321; 30 Granadas de mão ofensivas M962; 30 Granadas de mão ofensivas M321; 44 Grana­ das foguete antitanque carro 66 mm com espoleta; 264 Unidades de explosivo plás­ tico PE4A; 30 CCD10 (Carga de corte); 57 CCD20 (Carga de corte); 15 CCD30 (Carga de corte); 60 Iniciadores IKS; 30,5 Lâminas Explosivas KSL), Numa Europa sem fronteiras, ou de fronteiras transparentes, poderemos imaginar onde o mesmo já estará. E podere­mos, também, aquilatar com facilitar as insónias que este furto em Portugal terá provo­cado em todos os nossos aliados, numa época em que o combate ao terrorismo é fim eri­gido em prioridade máxima por (quase) toda a comunidade internacional. Da dimen­são do facto e listagem de todo o material furtado, viemos a ter notícia pela imprensa espa­nhola – certamente a partir da notificação efetuada pelas autoridades nacionais. Ficámos a conhe­cer a dimensão do facto mas não pudemos ficar a confiar nas autoridades espanho­las. Ao divulgarem, ou ao não saberem proteger, informação confidencial relativa a material reser­vado de um seu parceiro e aliado demonstraram que não são de confiança. Devem-nos, inequivocamente, um pedido de desculpas. Mas independentemente disso (que não é pouco), Portugal voltou a dar outro exemplo de impreparação para o desempenho duma tarefa essencial da sua função soberana (ou daquilo que resta dela). Ao não saber guar­dar e proteger o seu material militar, colocou em causa a defesa, a segurança e o bem-estar dos seus nacionais e, por extensão, daqueles a quem estamos ligados por trata­ dos de associação. São acontecimentos ou eventos que apenas esperamos ver em filmes de TV ou em Estados-falhados. Nunca em Estados do dito primeiro mundo, países membros duma Aliança Atlântica, aspirando a participar numa qualquer força europeia de defesa que se possa vir a criar. Também aqui demonstrámos o quão perto estamos de resvalar para a condição de “Estado-exíguo”.

Infelizmente, mesmo face a todos estes acontecimentos, o poder parece que meteu férias. Fez algumas perguntas, demitiu alguns oficiais, constituiu uma comissão de inquérito e foi, tranquilamente, gozar a vilegiatura. O país, ainda que caminhando aceleradamente para a condição de “Estado-exíguo”, pode esperar.