by João Pedro Simões Dias | Jun 21, 2017 | Diário de Aveiro
No final da passada semana faleceu Helmut Kohl, o chanceler que, ao longo de 16 anos, liderou primeiro a República Federal da Alemanha e, posteriormente, a Alema nha reunificada no pós segunda guerra mundial – e que terá sido o último crente e eu ropeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governaram a Europa, se gundo opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, têm de pres tar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro peus e do projeto de cons trução da unidade europeia.
Ideologicamente, foi um democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio como um neto político de Adenauer. Em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reativar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan çamento do projeto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projeto e de dar continuidade à atuação dos pais fundado res de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários. Com Mitterrand comungou a convicção de que “o nacionalismo significa guerra”. Contra esse mesmo nacionalismo, lutaram em conjunto e de forma solidária.
No plano da política interna alemã, Kohl chegou à chancelaria de Bona em 1982, atra vés de uma moção de censura construtiva que derrubou o governo de Helmut Sch midt, quando convenceu os liberais do FDP a abandonarem a sua coligação com os sociais-democratas do SPD, passando a aliar-se aos democratas-cristãos da CDU, que Kohl liderava. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi cação se tornou efetiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efetuar sobre a ação governativa do «chanceler da reunifica ção». No mais completo isolamento, elaborou pessoalmente um documento de “Dez pontos para a reunificação alemã” que muito irritou os seus aliados, sobretudo Mitterrand e Thatcher, tementes do renascimento de uma grande Alemanha no centro da Europa. Apenas George Bush, do outro lado do Atlântico, o apoiou sem reservas, tranquilizando e garantindo a Gorbachov que a reunificação iria andar a par da integração política da Europa. E assim se faria. O início da conferência intergovernamental para a união política que conduziria ao Tratado de Maastricht e da conferência intergoverna mental para a união económica e monetária arrancariam a par do processo de reunificação da Alemanha. Com a realização desta, cumpriase o desígnio de uma vida política: ver a sua pátria reunificada e integrada numa Europa unida. Como não se cansava de repetir, a unificação alemã tinha de ser feita no quadro da unificação europeia. Kohl anunciava uma “Alemanha europeia e não uma Europa alemã”.
No plano europeu, os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes e últimos sucessos regista dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Eu ropeia: a concre tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a con cretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis tência de uma moeda única europeia. O seu empenho nesta causa europeia foi determinante para que, em Dezembro de 1998, o Conselho Europeu reunido em Viena lhe viesse a atribuir o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos, então, quinze Estados membros da União Europeia, assinalaram e condecoraram uma vida “que pe los valores tra dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man teve de forma inabalável e autêntica. Sobre tudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato”.
Os últimos anos da sua vida foram marcados e vividos com uma indisfarçável tristeza, sobretudo perante o rumo que via a “sua” Europa tomar. E também por muitas das opções que a chanceler Angela Merkel ia tomando. A ponto de ter chegado a afirmar que Merkel estava “a dar cabo da sua Europa”. Foi um profundo juízo crítico sobre a obra e a atuação da sua sucessora – certamente não desligado do comportamento in fame e ignóbil que Merkel assumiu perante Kohl no momento em que este conheceu o período mais negro da sua vida política quando, para honrar a sua palavra, se recusou a divulgar as fontes de financiamento do seu Partido. Nesse momento de provação e de violentos ataques, Merkel deixou cair quem a promoveu, quem lhe havia dado a mão, quem a havia guindado ao poder. Kohl nunca esqueceu e nunca escondeu a amargura. Morreu na passada sexta-feira, amargurado, mas com o seu lugar na Histó ria garantido.
by João Pedro Simões Dias | Jun 16, 2017 | Diário
Morreu Helmut Kohl. A notícia acaba de ser divulgada há escassos minutos e, de imediato, apeteceu-me regressar ao que sobre ele tive oportunidade de escrever em texto já publicado. São essas linhas que aqui ficam:
«Não considerarão muitos o chanceler federal alemão [Helmut Kohl] o último crente e europeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governam hoje a Europa?» – a questão, perturbadora mas lúcida, colocada pelo Encarregado de Negócios da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, no decurso de um Colóquio sobre «A Construção da Europa: problemas, pensadores e políticos», que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Cervantes, nos dias 9 e 10 de Maio de 1996 sintetiza o que, pelos finais do século XX, era opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, tinham de prestar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos europeus, do projecto de construção da unidade europeia e que, invariavelmente, concluíam pela enorme debilidade das diferentes lideranças europeias ou pela secundarização que as mesmas conferiam ao desígnio europeu e ao projecto europeu.
Afastado do poder François Mitterand – cumpridos que foram os seus dois septanatos constitucionalmente admitidos e substituído por um Jacques Chirac mais virado para as contingências da política interna francesa do que sensibilizado para os desafios da integração europeia – a Europa, particularmente a da União, é atravessada por um sentimento geral de que, dos herdeiros dos pais fundadores da primeira geração, apenas restava no exercício do poder o chanceler alemão federal: aquele que, desde a criação da República Federal da Alemanha, por mais tempo levava no exercício do cargo e que, a seu crédito, apresentava o enorme feito de haver presidido à reunificação do seu país.
Democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio neto político de Adenauer – em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reactivar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Europeia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relançamento do projecto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projecto e de dar continuidade à actuação dos pais fundadores de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários.
Os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes sucessos registados pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Europeia: a concretização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a concretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a existência de uma moeda única europeia.
Mas seguramente não será só como um pai fundador de segunda geração que a história registará a passagem de Helmut Kohl pela liderança da potência germânica. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunificação se tornou efectiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efectuar sobre a acção governativa do «chanceler da reunificação».
Estes dois aspectos, todavia, não deverão ser encarados como desligados um do outro: em variados momentos o chanceler sempre proclamou que a sua visão da Europa unida andava a par da sua preocupação com a reunificação da sua pátria dividida. E nunca a Europa lograria encontrar a sua verdadeira unidade enquanto, no seu coração, permanecesse dividida a nação alemã. Não para restaurar qualquer «Europa alemã», mas sim em nome de uma verdadeira «Alemanha europeia».
Terá sido, seguramente, considerando estes aspectos, que o Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998, concedeu a Helmut Kohl o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos quinze estados membros da União Europeia tiveram oportunidade de testemunhar a vivência europeísta de Helmut Kohl, escrevendo de forma inequívoca e que dispensa quaisquer ulteriores considerações:
«No limiar do século XXI, ainda não passadas duas gerações sobre o fim de uma guerra devastadora, podem os povos do nosso continente contemplar retrospectivamente um caminho de sucesso sem igual na via da unificação europeia. Este momento histórico em que nos encontramos, com a introdução da moeda única europeia, mostra-nos bem como o devir da história pode ser em muitas ocasiões decisivamente moldado pela acção empenhada de algumas pessoas. É esta uma afirmação que se pode fazer em especial acerca do Dr. Helmut Kohl e da sua acção como Chanceler da República Federal da Alemanha nos últimos 16 anos. Profundamente marcado pelos valores tradicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre manteve de forma inabalável e autêntica. Sobretudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união económica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato. A mesma dedicação pôs nos esforços para superar a funesta divisão do nosso continente. No seu labor incansável para alcançar esses objectivos políticos, nunca se deixou desencorajar pelos reveses, dúvidas e resistências. As suas qualidades de fiabilidade, probidade, constância, cordialidade e sensibilidade fizeram do Dr. Helmut Kohl para nós, seus colegas, um exemplo pessoal de um político que foi coroado de êxitos mas sempre se manteve humano. É também nestes traços de carácter que reside o segredo da sua grande obra em prol da Europa e da integração europeia. A realização da unidade alemã e a consolidação da unificação europeia, que culminou na união económica e monetária, são a obra da vida de Helmut Kohl. Por este labor de toda uma vida, nós, os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e o Presidente da Comissão Europeia, lhe exprimimos o nosso sincero agradecimento e a nossa profunda admiração. Por todas estas razões, o Conselho Europeu de Viena decidiu conferir ao Dr.Helmut Kohl, antigo Chanceler Federal, Membro do Bundestag Alemão, o título de “Cidadão Honorário da Europa”».
by João Pedro Simões Dias | Mai 17, 2017 | Diário de Aveiro
Justamente no primeiro dia útil da nova presidência francesa, na passada segunda-feira, enquanto Emmanuel Macron se deslocava a Berlim para a sua primeira cimeira com a chanceler Angela Merkel visando retomar os laços do eixo franco-alemão na UE, o governo espanhol apresentou em Bruxelas um ousado plano visando a reforma da governação da zona euro. Dizem as notícias mais fidedignas que o referido plano terá sido acordado ou consensualizado por ocasião da cimeira dos países do sul da União, que reuniu em Lisboa, no passado mês de janeiro, António Costa, Mariano Rajoy (Espanha), François Hollande (França), Alexis Tsipras (Grécia), Nikos Anastasiades (Chipre), Paolo Gentiloni (Itália) e Joseph Muscat (Malta). Como já na altura se assinalou, o tema dominante desta cimeira foi a reforma da política monetária da UE, o acabamento da união económica e monetária e a introdução de mudanças e de reformas profundas na Zona Euro.
A coincidência da divulgação pública destas medidas por parte do governo espanhol com a deslocação de Macron a Berlim, não foi produto do acaso. Resulta do facto de, entre o texto consensualizado entre Madrid e Lisboa e as posições do novo Presidente francês em matéria de reforma da governação da zona euro existir uma ampla área de sintonia e consenso. Mas também zonas de dissenso e de divergência. Madrid apresentou as suas propostas em Bruxelas; Macron foi levá-las pessoalmente e em mão a Angela Merkel. No fundo, as mensagens, não tendo sido as mesmas, centraram-se ambas em torno da reforma da zona euro.
Entrando, no detalhe das medidas subscritas por Espanha e Portugal e as que são sustentadas pelo novo Presidente francês, como já se referiu, notam-se algumas divergências pontuais. Espanha e Portugal, por exemplo, defendem a criação de um orçamento anti-crise para a zona euro, um seguro de desemprego comunitário, a mutualização da dívida dos países da zona euro através da emissão de eurobonds, a conclusão da união bancária, a reforma do Pacto de Estabilidade retirando-lhe a componente “pro-cíclica” e o reforço da legitimidade democrática do Eurogrupo. Deste conjunto alargado de medidas, Macron já deu sinais de discordar, pelo menos para já, da mutualização das dívidas dos Estados da eurozona através da criação do mecanismo dos eurobonds. É uma discordância assinalável posto que, na proposta formulada por Madrid e que Portugal subscreveu, o mecanismo dos eurobonds constituía elemento fulcral e central.
Da parte do programa defendido pelo Presidente francês, por seu lado, há um elemento original – é defendida a criação de um Parlamento dos Estados da zona euro. E esta proposta parece merecer a discordância e oposição do governo português com base no argumento de que seria impossível de ser concretizada sem uma prévia conferência intergovernamental que procedesse a uma revisão dos tratados actualmente em vigor. Ora, parece defender – e bem! – o governo português que, no presente momento, não existem condições políticas que possibilitem encetar com sucesso um processo de revisão dos tratados comunitários.
Pese embora estas divergências, que se encontram quando analisamos o detalhe das medidas propostas, constatamos que, apesar das divergências mais ou menos pontuais registadas, existe uma ampla zona de convergência e de possível consenso entre as posições que estão a ser, actualmente, sustentadas pelo novo governo francês e, pelo menos, por Espanha e Portugal. Significa isto que começam a ser criadas condições mínimas para, finalmente, ser encarada de frente a questão do acabamento da estrutura institucional e de governação da zona euro – cuja falta tanto se fez sentir nos dias mais pesados da última grande crise que atingiu a zona euro.
Decerto – neste continente em busca desesperada pelo seu norte e que parece condenado a adiar as suas decisões sempre à espera da realização do próximo ato eleitoral, dificilmente serão tomadas medidas ou decisões concretas antes das próximas eleições legislativas alemãs marcadas para o próximo mês de setembro. Apesar dessa pausa forçada, e com a consciência de que antes de setembro pouco ou nada de relevante acontecerá na União Europeia, pelo menos de previsível, nada impede que determinados caminhos se comecem a trilhar e a caminhar. O da reforma da governação da zona euro e do seu acabamento será, sem dúvida, um desses caminhos.
Se, nesse debate, conseguirmos encontrar Portugal no pelotão da frente da discussão que terá de ser travada – ainda que integrado no grupo dos países ditos do Sul que regularmente se têm vindo a reunir em cimeiras regulares, no quadro das quais, por exemplo, poderão vira a ser articuladas as posições de França, Espanha, Portugal, Itália e restantes Estados-membros – só poderemos ter razões para nos congratular e felicitar.
by João Pedro Simões Dias | Abr 12, 2017 | Jornal Económico
Foi há dois dias que, em Madrid, reuniram pela terceira vez em cimeira, os Estados do sul mediterrânico – a Espanha, França, Itália, Portugal, Grécia, Chipre e Malta. Disseram algumas coisas óbvias, outras quantas banalidades mas deram sinais de, de uma forma informal e não estruturada (ao contrário, por exemplo, do que acontece com os Estados do Grupo de Visegrado), estarem na disposição de buscarem os consenso possíveis para enfrentarem os desafios que se vão colocar à Europa durante a fase de negociação do Brexit e, sobretudo, após a concretização da saída do Reino Unido. Foi a primeira vez que este grupo se reuniu, como foi assinalado, depois da declaração de Roma que assinalou os 60 anos do Tratado de Roma e depois de o Reino Unido ter accionado formalmente o artigo 50º do Tratado de Lisboa. Foi, ao mesmo tempo, o momento adequado para ser consensualizada uma posição comum face à próxima cimeira de finais de abril, em Bruxelas, do Conselho Europeu.
Ainda sobre as conclusões desta III Cimeira do Sul europeu, um aspeto se destaca, a meu ver, de todos os restantes – pela sua importância prática, pela sua relevância humanitária e pelo seu impacto na atual (des)ordem internacional. Refiro-me à política de vistos, que foi decidido pelos sete de Madrid que deverá continuar a ser uma política e uma competência comunitária. A pressão das migrações e dos refugiados conferem, a esta decisão, uma importância enorme. Mas faz recair também, sobre as estruturas decisórias e a máquina administrativa da União um repto e um desafio sem igual – o de conseguir montar e manter em funcionamento eficaz um serviço adequado a dar uma resposta em tempo útil aos pedidos e à pressão de que vier a ser alvo. Mas isso será todo o contrário do que, até agora, tem acontecido e sucedido.
E a importância desta cimeira pode, ainda, ser aferida por dois outros dados de relevo: em primeiro lugar o facto de, estes sete Estados que reuniram em Madrid, quando articulados, poderem formar, a qualquer momento, uma minoria de bloqueio que impede qualquer tomada de deliberação ordinária em sede de Conselho da União; em segundo lugar, a sua heterogeneidade. Ao lado de três das maiores economias da União (França, Itália e Espanha), tomam assento na mesma três dos Estados resgatados na sequência da crise das dívidas soberana (Grécia, Portugal e Chipre). Ou seja, seria difícil encontrar composição mais heterogénea para um grupo de Estados que voluntariamente se deseja articular e consensualizar posições no quadro europeu. Isto porque, seguramente, independentemente das diferenças económicas que intercedem entre eles, o facto de serem Estados do “mal-amado” sul europeu, são Estados que comungam de muitas especificidades comuns, que partilham muitos problemas e desafios em comum e que encontram nessas dificuldades que se lhes deparam uma boa base de partida para entendimentos futuros. Sobretudo num tempo em que, todos os indícios apontam para tal, a discussão do Livro Branco sobre o futuro da União, da responsabilidade da Comissão Europeia liderada por Jean-Claude Juncker, acabará para apontar para um cenário de desenvolvimento futuro da União em torno de vários círculos ou a várias velocidades. No fundo, um cenário em que os 27 sobrantes não participarão, todos, nas mesmas e das mesmas políticas comuns, podendo escolher, de entre as existentes, quais aquelas em que pretendem participar e quais aquelas matérias onde pretendem reservar para a sua competência nacional o poder e a decisão final. Um pouco, afinal, à imagem e semelhança do que já acontece hoje em dia com, por exemplo, a União Económica e Monetária e o espaço Schengen.
Numa altura em que nada parece impedir que as velocidades diferentes para que aponta o futuro da integração do projeto europeu tenha na sua génese um critério geográfico – e em que outros parece já o terem compreendido e parecem apostados nisso mesmo, e teremos de voltar sempre ao caso do Grupo de Visegrado – articular e consensualizar posições e interesses entre estes sete Estados reunidos em Madrid pode não constituir o método ideal de contribuir para a o futuro da integração europeia. Mas como, frequentemente, o ótimo é inimigo do bom, pode ser a melhor forma possível destes Estados darem o seu contributo para esse mesmo futuro.
by João Pedro Simões Dias | Abr 5, 2017 | Diário de Aveiro
Ainda não passou o tempo suficiente para se digerirem os primeiros impactos da oficialização britânica do desejo de sair da União Europeia, através do acionamento do mecanismo previsto no artigo 50º do Tratado de Lisboa, e já começaram a surgir os primeiros imbróglios que terão de ser dirimidos entre Londres e Bruxelas – ou, no mínimo, entre Londres e algumas das capitais europeias.
A primeira questão surgida escassos dias sobre a invocação do referido artigo 50º do Tratado de Lisboa derivou do estatuto político de Gibraltar – de cuja administração Londres não dá sinal de querer prescindir, mas de cuja soberania Madrid também não pretende abrir mão.
De facto, Gibraltar – território britânico desde 1713 que ainda em 2002 rejeitou através de referendo popular ficar sob soberania partilhada de Londres e Madrid – irá tornar-se no primeiro exemplo de uma situação que, tendo sido gerida até agora no quadro da União Europeia, passará, com a saída do Reino Unido da União, para o plano do relacionamento bilateral entre o Reino Unido e Espanha. E, nesse plano bilateral, não poderá deixar de ser dissociado de outras questões que oporão ambos estes Estados. A questão escocesa será outra de entre essas mais relevantes.
Depois de o Reino Unido ter decidido avançar com o Brexit, o governo nacionalista de Glasgow tomou a decisão de encetar um novo procedimento referendário pretendendo desligar-se do Reino Unido e, subsequentemente, ingressar na União Europeia. Até agora, Londres tinha em Madrid um aliado de peso que estaria na disposição de vetar a referida adesão escocesa à União. Sobretudo por receio de abrir um precedente que, a prazo, se pudesse virar contra si própria, pensando sobretudo na situação da Catalunha – onde as forças nacionalistas e independentistas fazem campanha pela autodeterminação da Catalunha e pela defesa do seu ingresso na União Europeia.
Surpreendentemente, nos últimos dias, no momento em que se elevou a escalada verbal entre o Reino Unido e Espanha a propósito do estatuto político do rochedo, registou-se uma alteração significativa na posição espanhola relativamente à Escócia. O ministro espanhol dos negócios estrangeiros, Alfonso Dastis veio, pela primeira vez, anunciar que Madrid não aporia o seu veto a uma eventual candidatura de uma futura Escócia independente à União Europeia deixando, assim, as portas abertas para que, num futuro próximo, uma eventual Escócia independente se possa tornar membro de pleno direito da União Europeia.
Com esta mudança ou evolução radical na posição oficial de Espanha, Madrid dá por adquirido que, a prazo, a sua estratégia para lidar com a questão da Catalunha terá de assentar em novos pressupostos – o, neste caso, aliado britânico está em vias de abandonar o clube europeu e ao Reino de Espanha pouco mais restará do que contar consigo própria numa eventual batalha em torno da questão catalã.
Qualquer um destes três casos – o caso de Gibraltar, o caso da Escócia e o caso da Catalunha – enquadra-se num contexto mais vasto de renascimento das punções nacionalistas um pouco por toda a Europa. Até agora, estas questões eram tratadas no quadro da União Europeia e com uma intervenção de mediação frequentemente exercida por parte das instituições comuns, nomeadamente a Comissão Europeia. A concretização do Brexit fará com que, doravante, os mesmos se remetam para o plano do relacionamento bilateral entre os Estados envolvidos. Trata-se de uma alteração não desprovida de consequências, e de consequências que não facilitam a resolução destes diferendos.
A trilogia “Gibraltar – Escócia – Catalunha” volve-se, assim, num dos primeiros, talvez o primeiro, teste que, em matéria de política externa e relações internacionais, se vai colocar à União Europeia a 27 e aos seus Estados membros no novo relacionamento que vai ser necessário encetar com Reino Unido que, além de novos desafios externos, se irá ver confrontado com novos desafios internos, sendo que o da sua sobrevivência ou subsistência como Reino “unido” não será, seguramente, o menor de todos eles. Mas pode vir a ser também, paralelamente, a possibilidade de começar a ser edificado um outro modelo de ordem internacional que pode vir a conferir a esse mesmo Reino Unido, se como tal se conseguir conservar e preservar, um papel muito mais ativo na articulação da Europa, a que continuará a pertencer, com os aliados transatlânticos, nomeadamente os Estados Unidos e o Canadá.
Serão, pois, tempos de mutações relevantes aqueles que poderemos ter por diante. Não, necessariamente, positivos; mas, seguramente, relevantes e importantes.