by João Pedro Simões Dias | Set 7, 2016 | Diário Económico
As eleições estaduais alemãs do passado fim de semana, no Estado federado de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental constituíram um pequeno exemplo do ambiente político a que esta União Europeia sobrante tem estado a ser reconduzida, um pouco em todos os seus Estados. Os sociais-democratas tornaram-se no partido mais votado num Estado tradicionalmente democrata-cristão; a nova força do Altrenativa para a Alemanha (AfD) logrou alcançar o segundo lugar; e a CDU da chanceler Angela Merkel viu-se relegada para um inglório terceiro lugar na escolha dos eleitores, quando por regra este era um dos seus bastiões em toda a Alemanha.
A sensivelmente um ano das próximas eleições legislativas, estes resultados têm sido olhados com redobrada atenção e escalpelizados ao detalhe pelo estado-maior dos principais partidos germânicos, não faltando quem esteja a neles ver um ensaio importante para as próximas eleições gerais.
Dois dados resultam com particular evidência deste sufrágio – e devem merecer uma meditação mais aprofundada.
O primeiro tem a ver com a forte penalização da tradicional democracia-cristã da CDU, que de primeiro passa a terceiro partido no Estado. A generalidade dos comentadores que se debruçaram sobre estes resultados eleitorais foi unânime. Angela Merkel e a sua União Democrata-Cristã foram fortemente penalizados pela sua política europeia, com particular ênfase para a sua postura relativa aos refugiados e migrantes que têm demandado a Alemanha e se têm deparado, apesar de tudo, com uma política de acolhimento flexível e disposta a integrar um número significativo desta nova vaga de refugiados, política iniciada em setembro do ano passado, quando a chanceler decidiu não bloquear o caminho para os refugiados detidos na Hungria. Não faltaram, de então para cá, dentro e fora da Alemanha, vozes reclamando um endurecimento da política alemã face a estes migrantes e um endurecimento das leis federais que permitiam que os mesmos passassem e ficassem em território alemão. Da mesma forma que não faltaram os que associaram a esta vaga de migrantes o aumento da criminalidade e, sobretudo, o recrudescimento da onda terrorista que há muito a Alemanha já não conhecia. De todas as formas, sempre as questões atinentes à política europeia a justificarem esta queda eleitoral do partido da chanceler Merkel. Diga-se, já agora e à laia de parêntesis, terem sido muito poucos os que repararam nas fracas qualidades do candidato democrata-cristão à chefia do governo estadual; detalhes, apenas detalhes….
Por outro lado, a par com esta descida da CDU, os eleitores de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental optaram por beneficiar a extrema-direita populista da Alternativa para a Alemanha, guindando-a a um inesperado terceiro lugar no ranking eleitoral. Partido que se define como fora do sistema, populista e contrário à presença da Alemanha na União Europeia com tudo o que isso supõe (nomeadamente a pertença à zona euro, a aceitação da liberdade de circulação de pessoas, a política de assimilação de migrantes), o seu crescimento fez-se, também na Alemanha, à custa de um dos tradicionais partidos que moldaram o atual sistema político germânico (a CDU). Repetiu-se, com as devidas proporções, um fenómeno que já tínhamos visto acontecer em Espanha, na Grécia, no Reino Unido, em França, na Hungria, na Polónia. E que não está dito nem escrito em lado algum que se possa dar por terminado e encerrado.
A política europeia, em escalas e tonalidades diferentes, está, pois, a penalizar os clássicos e tradicionais partidos políticos que geriram os Estados europeus no pós-segunda guerra mundial, apadrinhando e criando condições propícias para a emergência de novas e desestruturadas propostas políticas, de matiz radical e sinais políticos contraditórios, que acabam por acolher e beneficiar de todo o descontentamento que as políticas europeias despertam e suscitam. A União Europeia, por sua vez, “põe-se a jeito”: em vez de construir um projeto político europeu, oferece políticas avulsas, dirigistas, regulamentadoras e não raro contraditórias entre si; em lugar de mostrar ao mundo lideranças inspiradoras e geradoras de confiança, contenta-se em escolher e substituir regularmente simples governantes de turno, que frequentemente nem são respeitados nem se dão ao respeito; à existência de uma opinião pública forte, consentânea com uma cidadania comum que pretende potenciar, convive com a existência de vinte e oito opiniões públicas nacionais onde o sentido de pertença a uma identidade comum que complete e complemente as identidades nacionais, está completamente ausente e não é estimulado nem alimentado.
Eis-nos, pois, perante um caldo de condições verdadeiramente potenciador de um atrofiamento capaz de constranger o aprofundamento e o desenvolvimento de um espírito europeu indispensável ao projeto que se pretendeu edificar sob a égide da União Europeia. Está nas mãos dos europeus impedir que este perigo potencial se transforme numa realidade triste e deplorável.
Se a Europa e os Estados europeus pretendem ter uma voz neste mundo cada vez mais globalizado e cada vez mais estruturado em torno de grandes espaços, urge que se organize e se institucionalizem para poderem ser ouvidos e escutados. Nenhum Estado europeu, por muito grande que seja, conseguirá sobreviver por si só neste mundo globalizado e de grandes espaços. Nem sobreviver, nem fazer-se ouvir. Nem os grandes, muito menos os pequenos e médios Estados. A União Europeia tem sido, até ao presente, essa estrutura mínima que almeja representar a Europa. Se não puder ser ela, que seja outra qualquer que venha a suceder-lhe. Mas o mundo, lá fora, não prescinde da Europa para se estruturar e se organizar. Mas se esta velha Europa não se apressar, esse mesmo mundo não ficará parado à espera dela.
by João Pedro Simões Dias | Jul 13, 2016 | Diário Económico
Portugal ficou a saber ontem aquilo de que os portugueses e o próprio governo já suspeitavam há bastante tempo: a ultrapassagem do défice orçamental em 2015 em duas décimas percentuais vai-nos ficar cara e vai-nos, tendencialmente, direta e/ou indiretamente, custar muito dinheiro. De facto, a Comissão Europeia já tinha aconselhado os ministros das Finanças da União a aplicar sanções a Portugal (e a Espanha) e, agora, o ECOFIN validou essa recomendação, deu dez dias aos países visados para entregarem as suas observações escritas findos os quais a Comissão Europeia terá mais vinte dias para formular uma proposta de sanções que podem passar por uma multa financeira com o limite máximo de 0,2% do PIB e pelo congelamento dos fundos estruturais em 2017 no menor dos dois valores seguintes: 50% dos fundos europeus ou 0,5% do PIB.
Estas sanções, que têm sido formalmente apresentadas como sanções económicas, suscitam no imediato quatro comentários ou observações.
Em primeiro lugar, aplicar sanções a Portugal é uma estupidez tanto política quanto jurídica. Numa altura em que os europeus andam zangados com a União Europeia (como ainda agora se comprovou pelos resultados do recente referendo britânico) a quem atribuem a responsabilidade por todos os males e dificuldades que estão a atravessar, devido às políticas de forte recorte austeritário que a União tem forçado muitos países a seguirem, aplicar sanções a dois Estados europeus por estes não terem sido suficientemente rigorosos, revela enorme insensibilidade política. Significa dar mais um passo para a União Europeia perder definitivamente a batalha das opiniões públicas nacionais. E contra as opiniões públicas e os povos da Europa, não há projeto político que tenha qualquer futuro e que se possa salvar. É, por isso, uma estupidez política com duvidoso (para ser parcimonioso na adjetivação) fundamento legal.
Em segundo lugar, a aplicação destas sanções não pode ser censurada apenas às instâncias europeias. Constituem, também, uma óbvia derrota política, no que a Portugal diz respeito, quer do anterior quer do atual governo. O anterior governo deixou, incompreensivelmente, derrapar o défice orçamental para além dos 3%. Em ano eleitoral, cedo começou a abrir os cordões à bolsa e a gastar por conta…. A conta apareceu agora e não é barata. Mas o atual governo não se pode livrar de responsabilidades sobretudo por aquilo que não fez. António Costa fez uma campanha inteira afirmando e prometendo uma nova postura na política europeia de Portugal. Chegou a invocar o apoio e a relação privilegiada com muitos governantes socialistas europeus. Pois bem – chegada a altura de mostrar as suas credenciais, viu-se nada. Mais de metade dos ministros das finanças que votaram a aplicação destas sanções a Portugal são seus parceiros socialistas, trabalhistas ou sociais-democratas europeus. Serviu de alguma coisa? De nada. Apenas serve para que, doravante, não mais se possa recorrer ao discurso da tribo neo-liberal contra os defensores do Estado social. Como se vê, andam todos juntos e de mãos dadas.
Em terceiro lugar – o tipo de sanções anunciadas. A multa – ainda que seja a célebre “multa zero” de nenhum impacto financeiro direto no orçamento mas inquestionável dano reputacional e, por isso, também impacto orçamental ainda que indireto – e o congelamento dos fundos comunitários. Esta última muito mais danosa do que a multa financeira. Sabemos que o nosso crescimento económico abrandou e o pouco que se prevê alcançar será conseguido com base na procura interna e no consumo. Investimento, público ou privado, nem vê-lo. E o pouco que sobra, tem acentuada tendência para decrescer. Neste clima, será de todo importante a alavancagem que os fundos estruturais europeus possam dar à nossa economia, contribuindo para que ela cresça um pouco mais. Privá-la desse balão de oxigénio significa condenar-nos mais a uma maior e mais extensa penúria. Outra incongruência deste processo em que ninguém fica bem: Portugal é condenado por não cumprir e falhar objetivos consagrados nos tratados europeus e a sanção aplicada consiste em aplicar medidas que ainda vão dificultar mais esse mesmo cumprimento. Supremo paradoxo duma União onde o economicismo venceu, definitivamente, a política!
Finalmente, mas não menos importante, a aplicação destas medidas atesta na perfeição que a União deixou de ser uma organização de direito e passou a ser uma entidade onde predomina a discricionariedade e onda reina o casuísmo. Outros Estados houve que deram motivos vários à aplicação de sanções por incumprimento de outras disposições dos tratados, nomeadamente saldos orçamentais excessivos. Onde estão as sanções para eles? Quiçá na teoria de Orwell que nos ensinou que todos são iguais mas que uns são mais iguais do que outros…. Assim parede também acontecer na União Europeia. E esse é, inquestionavelmente, mais um passo dado no sentido da desagregação e descredibilização desta União Europeia em processo acelerado de desconstrução.
Por estas razões, e outras que se poderiam enunciar, parece um dado adquirido que as sanções que se anunciam a Portugal (e a Espanha) como sanções económicas, de económicas têm apenas o nome. Objetivamente são sanções políticas e é como sanções políticas e como um ajuste de contas político que podem e devem ser encaradas. E assim sendo, sem prejuízo da defesa jurídica que o governo português entenda dever fazer da posição do nosso país, é no terreno político que estas sanções ou este ajuste de contas devem merecer resposta e devem ser combatidas. E não nos limitemos a queixarmo-nos da sua aplicação porque, apesar de tudo, os tratados dão-nos vários instrumentos para o debate e o combate político que devem ser travados. Assim haja, para tanto, a necessária vontade política. E a necessária arte e engenho.
by João Pedro Simões Dias | Jun 3, 2014 | Diário de Aveiro
No rescaldo do último ato eleitoral para o Parlamento Europeu, resulta claro que, para além das diferentes conclusões que podem ser retiradas no plano nacional em cada um dos 28 Estados-Membros onde os cidadãos foram chamados às urnas, também no específico plano europeu há ilações a extrair deste sufrágio e que as lições que o mesmo forneceu nesse mesmo plano europeu não podem ser ignoradas nem escamoteadas.
Tendo-se tratado de eleições europeias, seria suposto que as mesmas não causassem acentuada perturbação política nos planos nacionais, para além daquelas que por regra já lhes aparecem associadas e que se prendem sempre com alguma dose de censura aos governos nacionais de turno. Desta vez, porém, as coisas foram significativamente diferentes e, em alguns Estados o ato eleitoral perturbou profundamente os respectivos sistemas político-partidários.
Descontando o caso português, já suficientemente escalpelizado e analisado, há três casos que devem merecer a nossa atenção – o que aconteceu em Espanha, no Reino Unido e em França.
Aqui bem ao lado, em Espanha, os tradicionais partidos da governação – PP e PSOE – ficaram nos dois primeiros lugares da eleição. Ambos, todavia, perderam votos e mandatos e, em conjunto, valem hoje menos de 50% do eleitorado espanhol. Em contrapartida, em quarto lugar e com 1,2 milhões de votos, 9,7% dos sufrágios e 5 eurodeputados eleitos, surge um partido novo – chamado Podemos – emanação direta do célebre movimento dos indignados do 15M (por referência ao movimento de 15 de maio de 2011), liderado por Pablo Iglesias, de 35 anos, um intelectual marxista, professor de Ciência Política e vedeta televisiva. Inequivocamente, o ambiente político em Madrid tremeu com este resultado eleitoral.
No Reino Unido, por seu lado, o UKIP (Partido da Independência do Reino Unido) venceu as eleições, levando para Estrasburgo 24 deputados, mais do que qualquer dos tradicionais partidos conservador, liberal e trabalhista. Há mais de cem anos que não se assistia a nada assim e, mais de uma semana volvida, Nigel Farage continua no centro da cena política britânica para completa estupefacção dos que se habituaram a ver no sistema político-partidário do Reino Unido o paradigma da estabilidade e da previsibilidade.
Finalmente, de França, da pátria da revolução e dos direitos do homem na Europa, veio a maior das surpresas da noite eleitoral: a Frente Nacional, matizando o carácter radicar que lhe havia sido imprimido pelo seu fundador, liderada agora por Marine Le Pen, venceu as eleições, logrou mais de 25% dos sufrágios contra os 20% da direita tradicional e os 14% dos socialistas do Presidente Hollande. Foi um resultado que só surpreendeu quem não acompanhava a vida política francesa, há muito previsível, mas que continua a causar perplexidades e incredulidades.
Se a todos estes factos – e a tantos outros que poderíamos mencionar – somarmos os elevadíssimos valores da abstenção, dos votos brancos e nulos que foram contados por todo o continente, impõe-se tentar perceber o que vai a União Europeia fazer deles e com eles e que ilações e consequências a própria União e as suas instituições dos mesmos irão retirar. Quando se apregoa que não há uma ligação estreita entre a UE e os cidadãos europeus, convocam-se os cidadãos às urnas e verifica-se que o voto foi diminuto, disperso e de protesto. Sabe-se que esse voto de protesto coincide em muitas críticas feitas ao projecto europeu mas, pela sua própria natureza, é insusceptível de construir ou viabilizar um projecto comum, uma alternativa credível. E, felizmente, ainda é, também, incapaz de construir minorias de bloqueio que impeçam o normal funcionamento dessas mesmas instituições europeias. Mas o sinal está dado – e se a União e as suas instituições não perceberem o sentido das urnas e não escutarem o que disseram os europeus (os que votaram e falaram e os outros também) nada nos garante que, num futuro próximo o panorama continue a ser o mesmo. Hoje por hoje, ainda são as tradicionais forças políticas europeias – democratas-cristãos, socialistas e liberais – que têm meios, deputados e instrumentos para governarem a União. Amanhã poderá já não ser assim. E se é verdade que aquela União Europeia que nos ensinaram e que ensinámos – sucessora das velhas Comunidades Europeias nascidas para reconstruirem a Europa dos escombros da segunda guerra mundial – já acabou e já não existe, no dia em que a instabilidade e o fator de ingovernabilidade atingirem as suas instituições, provavelmente nem “esta” UE resistirá e sobreviverá. Por ora, ainda pode conter danos e limitar os estragos. Se não tiver nem arte nem engenho para o fazer, pouco ou nada se salvará, pouco ou nada se aproveitará.
by João Pedro Simões Dias | Mar 23, 2014 | Diário
A Espanha deve a Adolfo Suárez o máximo que um país pode dever a um estadista. Pese embora os muitos erros cometidos, sobretudo depois de deixar a Presidência do governo, conduziu o país da ditadura à democracia, liderando a transição e superando os traumas de uma guerra civil (1936-1939) que foi uma das maiores carnificinas do século XX. Conseguiu fazê-lo de uma forma pacífica e duradoura. Talvez por isso continue a ser o Presidente do governo da democracia que os espanhóis mais continuam a admirar. Que descanse em paz.
by João Pedro Simões Dias | Dez 12, 2013 | Diário de Aveiro
Vão conturbados e agitados, e não raro paradoxais, os tempos por esta Europa que teima em afirmar-se como sendo a da União, mas onde os sinais mais visíveis parece apontarem em sentido radicalmente diferente, de desunião e de crise, de marcha acentuada para o empobrecimento, de inversão do caminho da história. Esta crise que afecta o continente europeu, de resto, mais não é do que a expressão mais evidente da crise que afecta o Ocidente – de que a Europa foi durante muito tempo o rosto mais expressivo – neste tempo de “outono e falta de bússola”, para parafrasearmos o título da mais recente obra que nos é legada por Adriano Moreira. Falta de bússola que equivale a uma dramática ausência de uma escala de valores perceptível e compreensível e à proliferação de teses e teorias relativistas, sempre dispostas a tudo questionar e a tudo pôr em causa. Um dos mais recentes perigos com que esta Europa se está a defrontar provém dos riscos e dos perigos do fenómeno secessionista que parece querer pôr em causa a unidade de muitos Estados tal como os conhecemos no momento presente.
Na passada semana o Presidente da Generalitat – o governo autonómico da Catalunha –, Artur Mas, anunciou à Espanha e ao mundo que, no dia 9 de Novembro de 2014, o seu governo tenciona promover um referendo aos catalães cuja primeira pergunta será: “Quer que a Catalunha seja um Estado?”. E a que, em caso afirmativo, se seguirá uma segunda questão: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente?”. Não há memória, nos tempos recentes, de este movimento autonomista/independentista ter chegado tão longe e ter causado tamanha proporção. Decerto – as autoridades espanholas – com o Presidente do Governo, Mariano Rajoy, secundado pelo líder da oposição, Alfredo Pérez-Rubalcaba – vieram, de imediato, declarar que o referendo não se realizaria, por evidente e flagrante violação da Constituição espanhola que defende a unidade do Estado autonómico e chega ao ponto de ficcionar a existência de uma “Nação espanhola”, mormente no seu artigo 2º, que tem uma redação tão abrangente quanto controversa quando afirma que “La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”. A questão que merece, todavia, ficar para reflexão prende-se com as sementes que a iniciativa pode deixar e com o grau de germinação que podem alcançar. Mas o facto não é inédito nem original.
Três semanas antes, a 26 de novembro, em Glasgow, o líder do governo escocês, Alex Salmond, apresentou o seu livro branco sobre a independência da Escócia, tendo por referência o referendo sobre a independência do país, marcado para 18 de setembro de 2014. Alex Salmond, que é a favor do “sim” ao referendo, veio garantir que a Escócia tem “um grande potencial” enquanto país, ressalvando sempre, porém, que o mesmo teria de passar sempre por uma pertença à União Europeia. Curiosamente, ou talvez não, foi o Presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy, quem se apressou a vir declarar que se oporá à adesão da Escócia à União Europeia caso os escoceses optem pela independência. Como parece óbvio, dirigia-se a Glasgow mas falava para Barcelona.
Num ponto, porém, os discursos catalão e escocês convergem – ambos anseiam por se separar dos Estados onde estão integrados explicitando, porém, a respectiva vinculação ao ideal e ao projecto europeu corporizado na União Europeia. Como já algumas vezes tivemos oportunidade de anotar, este é um dos mais fascinantes paradoxos do nosso tempo: pese embora a profundíssima crise que atravessa, seguramente a maior desde a sua fundação, o projecto comunitário continua a exercer enorme fascínio e imensa capacidade de atracão relativamente aos Estados que não o integram. E mesmo relativamente àqueles que, ainda não sendo Estados, aspiram a sê-lo e veem a pertença à União Europeia como um verdadeiro seguro ou caução que assegure e mantenha essas independências ansiadas. Fenómeno, de resto, que não é novo – quando ruiu o Muro e implodiu a influência soviética no leste europeu, foi sob a protecção das organizações ocidentais (primeiro a NATO, logo depois a União Europeia) que as recém-recuperadas soberanias se quiseram acolher. As novas democracias foram protegidas mas o projecto europeu ficou imensamente debilitado.
Decerto – quem recordar o passado recente não poderá deixar de lembrar que a própria União Europeia, e a esmagadora maioria dos seus Estados membros, muito por influência directa dos Estados Unidos (que na sua guerra contra o terrorismo queriam deixar transparecer que a mesma não era contra os Estados islâmicos), abriram as portas de par em par a este caminho perigoso quando reconheceram a independência do Kosovo, separando-o da Sérvia com base unicamente na uniformidade étnica, sem curar de averiguar nem da viabilidade do novo Estado (militarmente defendido pelos norte-americanos e economicamente sustentado pela União Europeia) nem do potencial efeito contagio que tal independência podia suscitar.
Mas como a realidade se nos impõe, eis a Europa de 2014 confrontada, no mínimo, com duas crises secessionistas que poderão servir de rastilho para outras, semelhantes e não menos legítimas aspirações independentistas – do País Basco ao desmembramento da Bélgica, da Sicília à Sardenha, passando por outras incontáveis aspirações nacionalistas que se encontram adormecidas um pouco por essa Europa fora, com particular ênfase nos territórios do antigo poder imperial soviético. Era, diria, o último problema com a Europa da União se deveria preocupar e confrontar nos tempos de emergência que atravessa. Paradoxalmente, porém, tudo leva a crer que será mais um dos problemas com que teremos de nos defrontar, a somar aos muitos já existentes.