by João Pedro Simões Dias | Mai 31, 2017 | Diário de Aveiro
O Presidente dos Estados Unidos concluiu na passada semana a sua primeira viagem oficial ao exterior desde que tomou posse do seu cargo. Foi uma viagem com um itinerário estranho, que tentou responder a uma agenda quase indecifrável, tantos e tão variados os temas que pretendeu tocar e os lugares por onde andou. Foi ao oriente médio, foi ao Vaticano e ainda divagou por duas cimeiras na Europa.
No Médio Oriente começou a digressão com uma visita à Arábia Saudita. Terá sido o momento onde mais palpável se tornou a digressão. Assinou um acordo de venda de armamento militar que ultrapassou os cem mil milhões de dólares. O complexo militar-industrial norte-americano, a que há mais de cinquenta anos se referiu o Presidente Dwight Eisenhower, terá esfregado as mãos de júbilo. Para além deste acordo, Trump teve a possibilidade de discursar numa cimeira de Estados árabes onde os estimulou a combaterem o fundamentalismo islâmico. Em boa verdade, quereria referir-se ao fundamentalismo xiita – escolhendo uma plateia de sunitas para deixar a sua mensagem. Não é líquido, porém, que a diferença tenha sido apreendida, sobretudo considerando os laços que intercedem entre muitos dos Estados que se fizeram representar na dita conferência e muitos dos movimentos xiitas que vão trilhando o caminho da radicalização. Os comentadores mais atentos fizeram notar a subtileza da distinção precisamente para evidenciarem a duvidosa eficácia da mensagem que Trump quis deixar em Riade – justamente em Riade, onde impera um dos mais autocráticos e despóticos regimes do oriente médio.
No roteiro do Air Force One seguiu-se uma paragem em Israel, para reafirmar a velha solidariedade norte-americana com o Estado judeu e o empenho num processo de paz que tarda em chegar, e nova paragem desta feita no Vaticano. Aqui, Francisco não se preocupou em esconder o seu sentimento mais profundo, plasmado em fotos que ficam para a posteridade e que não deixam dúvidas sobre o incómodo de Sua Santidade na recepção a tão ilustre visitante. De forma mediata e indirecta, Francisco e Trump já tiveram oportunidade de registar diferentes pontos de vista a propósito de diversos temas, nomeadamente da agenda internacional. Nada nos parece permitir concluir que as divergências hajam sido aplainadas, muito menos superadas ou dissipadas. O protocolo limitou-se a ser cumprido. E não há notícia de que algo mais tenha acontecido.
Já o mesmo não se poderá dizer da etapa final da viagem inicial do Presidente Trump. Tanto na Cimeira da NATO em Bruxelas quanto na Cimeira do G7 na Sicília não faltaram motivos de reflexão e, alguns, de apreensão. Em Bruxelas, na Cimeira NATO, assistiu-se a um Trump mais moderado relativamente à própria Aliança Atlântica, tendo por comparação o que dela chegou a dizer em plena campanha eleitoral. Decerto – insistiu na tecla de que todos os Estados têm de assumir as suas responsabilidades financeiras para com a organização, levando as respectivas contribuições aos 2% de cada PIB. No fundo, recordava o compromisso, assumido na cimeira do País de Gales, em 2014, de, no espaço de uma década, todos os países aliados destinarem 2% do PIB a despesas militares. Ora, de acordo com os dados da própria Aliança Atlântica, no ano passado apenas cinco aliados atingiram ou ultrapassaram o objectivo acordado: Estados Unidos (3,61%), Grécia (2,36%), Estónia (2,18%), Reino Unido (2,17%) e Polónia (2,01%). Recorde-se, todavia, que este objectivo deverá estar atingido em 2024; não em 2017. Mas as críticas iniciadas em Bruxelas acabariam por se tornar mais evidentes na Sicília, na Cimeira do G7, onde alguns consensos anteriormente alcançados entre as sete maiores economias do mundo foram questionados ou, mesmo, renegados pela nova administração norte-americana.
As divergências surgidas foram de tal monta que, há dois dias, a chanceler Angela Merkel veio colocar em causa uma constante da ordem internacional dos últimos setenta anos – a regra segundo a qual os EUA eram verdadeiramente indispensáveis para a defesa e a segurança da Europa. Primeiro da Europa ocidental; depois da queda do Muro e do fim da guerra-fria, da Europa da União.
Creio podermos afirmar que, nunca nos últimos 70 anos que são os que decorreram desde o fim da segunda guerra mundial, líder europeu algum se atreveu a ir tão longe face aos EUA como o foi, há dias, a chanceler alemã. Nem mesmo De Gaulle, nos seus tempos áureos de “antiamericanismo”, ousou ir tão longe.
Dito isto, impõe-se reconhecer que a afirmação de Merkel – mesmo descontando o facto de se encontrar em plena campanha eleitoral para as eleições gerais de setembro – não deixa de revelar duas coisas. Ambas preocupantes. A primeira, que foi quebrada a fronteira de confiança entre o maior Estado europeu e o principal aliado dos europeus. E rôta a fronteira da confiança, ultrapassada a linha vermelha que a mesma supõe, dificilmente o relacionamento transatlântico, nos tempos mais próximos, poderá voltar a ser normalizado. A segunda ilação a retirar desta afirmação da chanceler alemã conduz-nos, fatalmente, à conclusão de que a Alemanha merkeliana está disposta a, também no plano militar e da defesa e segurança colectiva da Europa, desempenhar um papel liderante, condizente com o seu poderio económico e a sua proeminência política. Isto é, pela ideia de Merkel, não andará distante a concepção de uma Europa militarmente organizada sob liderança alemã. O que, no momento presente, conduziria os europeus a terem de efectuar uma escolha muito pouco desejável: continuarem a abrigar-se sob a protecção militar norte-americana como o têm feito nos últimos setenta anos, ou colocarem-se debaixo do guarda-chuva alemão, no quadro duma defesa exclusivamente europeia. E mesmo que, como talvez viesse a ser mais provável, optassem pela manutenção do stato quo, não deixa de ser recomendável registar que bem no centro desta União Europeia em acelerado caminho de desintegração, existe um Estado, responsável pelos principais fantasmas com que a Europa se defrontou no seu passado recente, disposto a, de novo, projetar o seu poder e liderar militarmente a defesa europeia. Talvez seja chegado o momento de revisitar, para recordar, alguns dos referidos fantasmas.
by João Pedro Simões Dias | Fev 22, 2017 | Diário de Aveiro
Foi no final da passada semana que, na habitual Conferência sobre Segurança que costuma reunir anualmente em Munique os principais líderes mundiais com a comunidade académica e científica transatlântica, o ministro dos negócios estrangeiros russo, Sergei Lavrov, pediu o fim da ordem mundial dominada pelo Ocidente e afirmou que Moscovo pretende estabelecer uma relação “pragmática” com os EUA. O governante russo adiantou que o tempo em que o Ocidente disparava acabou e, considerando a NATO como uma relíquia da Guerra Fria, afirmou: “Espero que o mundo venha a escolher uma ordem mundial democrática – uma ordem pós-Ocidente – em que cada país é definido pela sua própria soberania”. Esta intervenção teve a particularidade de se seguir à do Vice-Presidente norte-americano, Mike Pence que, falando em nome do Presidente Donald Truman, reiterou a fidelidade e o empenho dos EUA na Aliança Atlântica desde que, não se esqueceu de o reafirmar, os restantes Estados-membros suportem a respectiva quota-parte nas despesas da organização.
Historicamente este desejo de Moscovo ver surgir uma ordem internacional pós-ocidental – que talvez melhor se apelidasse de uma ordem internacional pós-NATO – não constitui em si mesmo nenhuma novidade. É um tema recorrente no discurso internacional de Moscovo que conheceu particular acuidade nos tempos que se seguiram à queda da União Soviética e ao desmantelamento de todas as organizações internacionais que esta patrocinava, nomeadamente o Pacto de Varsóvia. Já na altura – finais dos anos oitenta, princípios dos anos noventa do século passado – nomeadamente quando Kohl e Gorbachov discutiam o processo de reunificação da Alemanha, uma das pretensões ou exigências de Moscovo passou pelo desmantelamento da Aliança Atlântica e, depois, pela solene afirmação de que nunca permitiria que uma Alemanha reunificada integrasse a Aliança Atlântica. Sabe-se o que aconteceu: a NATO permaneceu e a Alemanha reunificada manteve a sua presença no quadro da organização. Posteriormente, poucos anos volvidos, ouviram-se semelhantes exigências aquando do processo de adesão dos Estados bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) à Aliança. Moscovo voltou a sustentar que a NATO deveria ser dissolvida e que os Estados bálticos, antigas repúblicas socialistas soviéticas integrantes da extinta URSS, nunca adeririam à organização. Sabe-se, também, o que aconteceu: não só a NATO subsistiu como, entre 1999 e 2004, acabariam por integrar a Aliança uma série de Estados que uma década antes constituíam satélites soviéticos na Europa: a Hungria, a Polónia, a República Checa, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Roménia, a Eslováquia e a Eslovénia. Ou seja, uma vez mais a cruzada soviético-russa contra a Aliança Atlântica havia fracassado. E percebem-se bem as razões desta obstinação soviético-russa contra a Aliança ocidental.
Tendo perdido, objetivamente, sem apelo nem agravo, a guerra-fria; tendo visto o seu império esboroar-se como um castelo de cartas com os Estados dominados e os Estados-satélites a escolherem, um após outro, o campo ocidental e livre; com o comunismo, a ideologia mater do império a ser reduzida à sua mais absoluta irrelevância, passando num ápice de ideologia temida que assustava muitos a ideologia errónea que deixou de assustar quem quer que fosse – toda esta sucessão de factos e de acontecimentos foi alcançada pelo mundo livre e ocidental sob o manto protetor da NATO, a aliança transatlântica que associava os Estados Unidos aos Estados europeus ocidentais que haviam formado a meia-Europa livre do pós-segunda guerra mundial. Nessa medida, se alguém pode, legitimamente, reivindicar o título de vencedor da guerra-fria, esse alguém foi, objetivamente, a Aliança Atlântica, fruto da visão, da estratégia, da firmeza e da determinação dos seus líderes que nunca tergiversaram nem nunca cederam ante as mais diversas manobras, infiltrações e manipulações da opinião pública ocidental (lembram-se do “antes vermelhos que mortos”?) ensaiadas por Moscovo. A eles e à geração desses líderes de referência, de ambos os lados do Atlântico, devemos hoje o facto de vivermos em liberdade e de a NATO haver ganho a guerra-fria.
Moscovo sabe disso perfeitamente e nunca lidou bem com essa evidência. Como continua a não lidar. E por isso, no momento em que os Estados Unidos, o principal membro da Aliança Atlântica e a superpotência sobrante do mundo da guerra-fria, vive um estado de transtorno geral fruto das errâncias da sua nova administração, Moscovo volta, uma vez mais, ao seu tema de estimação: é preciso que a NATO desapareça; a NATO é um resquício do mundo da guerra-fria; é preciso uma nova ordem internacional pós-ocidental, que o mesmo é dizer, pós-NATO. Ou seja, em termos muito simples, uma nova ordem internacional onde o papel liderante se transfira dos Estados Unidos para a Rússia. No fundo, foi isto que Sergei Lavrov foi defender a Munique no final da semana passada. É criticável? De forma alguma – é a Rússia a defender os seus interesses. Da mesma forma que defende os seus interesses quando interfere nas eleições norte-americanas ou quando subsidia a Frente Nacional de Le Pen com milhões de dólares. Fazendo-nos ver que estes interesses diferem em muito pouco dos que foram os interesses territorialmente expansionistas da defunta União Soviética e que coincidem ainda mais com os métodos de atuação que esta desenvolvia nos tempos da guerra-fria, comprando a fidelidade de parte das opiniões públicas ocidentais. Cabe-nos a nós, cabe ao Ocidente, cabe aos Estados ocidentais, hoje como inúmeras vezes no passado, manterem-se coesos na defesa da sua aliança transatlântica e evidenciarem que não estão interessados em viver nessa tal ordem pós-ocidental que Moscovo propugna e defende.
Não será uma tarefa fácil, tanto mais que, atualmente, as nossas lideranças ocidentais não se comparam às que outrora fizeram frente às ambições do Kremlin. A começar, obviamente, na liderança norte-americana. Mas no dia em que for admitida, ainda que no puro plano teórico, a possibilidade de se evoluir para o tal mundo pós-ocidental defendido por Moscovo, estejamos bem cientes que nada será como dantes.
E que pouco sobrará do Ocidente para contar a sua história. Putin não costuma brincar em serviço.