O funeral de um Europeu.

Num acto absolutamente sem precedentes, a Europa e a Alemanha despediram-se, hoje, de Helmut Kohl. O seu féretro foi colocado em pleno hemiciclo do Parlamento Europeu em Estrasburgo – conforme sua vontade para demonstrar o seu apego aos valores e à causa europeia – símbolo da democracia na Europa, perante mais de vinte chefes de Estado e de governo e outras individualidades de Estados europeus e não europeus. Após essa homenagem, subiu as águas do Reno até à Catedral de Speyer, cidade onde eram sepultados os Imperadores do Sacro Império Romano-Germânico, onde foi recebido pelas autoridades alemãs e recebeu a sepultura definitiva. A poucos quilómetros da sua Ludwigshafen natal, mas ao lado dos maiores entre os grandes alemães.

Matteo Renzi, a voz que emerge na Europa

Quando, no passado dia 1, a Itália assumiu a presidência rotativa e turno do Conselho da União Europeia, era grande a expectativa que se erigia em torno do seu novo Pri­meiro-Ministro, o democrata (socialista) Matteo Renzi, o mais novo Primeiro-Ministro Itali­ano de sempre que, cansado de governar apenas a sua cidade de Florença, se abalan­çou a conquistar a liderança do Partido Democrático e, consequentemente, apear o também democrata Enrico Letta da chefia do governo de Roma.
Face à inexperiência em matéria de política europeia do chefe do governo romano, os re­ceios eram muitos, as dúvidas não eram menores e, portanto, a expectativa dir-se-ia imensa. Expectativa que, apenas uns quantos – poucos – acreditavam que se poderia vol­ver em oportunidade. Ademais, Renzi, talvez um tanto ou quanto injustamente, aca­bava por sofrer da “síndrome Hollande”: talvez o socialista europeu que mais esperan­ças concitou nos últimos anos mas cuja errância e descalabro na condução da polí­tica (interna e externa) francesa o arrastou para as ruas da amargura, a ele e ao seu partido, como os eleitores fizeram questão de afirmar, sem dó nem piedade, nas últi­mas eleições autárquicas e, sobretudo, nas últimas eleições para o Parlamento Euro­peu. Face a Renzi, as expectativas não ousaram subir tão alto como subiram com Hol­lande. A prudência, quase sempre, é boa conselheira, e um erro cometido duas ve­zes não poderia continuar a ser qualificado como um simples erro. E por isso, a come­çar nos próprios socialistas europeus, Renzi foi olhado com reserva, com uma certa espe­rança secreta mas quase nunca verbalizada.
O certo é que bastaram dois discursos para tudo mudar, para a força da palavra se im­por e o novo Primeiro-Ministro italiano ir buscar créditos onde menos se esperava e conse­guir gerar um sentimento generalizado de, no mínimo, elevadas e positivas expectati­vas.
Os dois discursos em causa aconteceram, primeiro, em Roma, ante o Parlamento itali­ano quando Renzi apresentou as grandes linhas gerais a que pensava submeter o seu man­dato semestral à frente do Conselho da União Europeia; e, depois, em Estras­burgo, ante o plenário do Parlamento Europeu, quando os novos eurodeputados recente­mente eleitos iniciaram a nova legislatura europeia discutindo as prioridades da nova presidência do Conselho. Ambos os discursos foram complementares e constituí­ram uma lufada de ar fresco no cinzentismo eurocrático que têm vindo a pai­rar sobre o céu europeu.
Desde logo e em primeiro lugar, Renzi ousou assumir o que nas mais recentes décadas mui­tos líderes europeus pareceram ter esquecido – “o grande desafio do semestre será não apenas agendar medidas e encontros, mas reencontrar a alma da Europa e o sen­tido de estarmos juntos. […] Há uma identidade a reencontrar.” De forma clara, explí­cita e assumida, há aqui um verdadeiro apelo a um regresso aos valores, aos princí­pios, a tudo o que determinou e esteve na origem fundacional do atual projecto euro­peu. A União Europeia não se pode reduzir a um redil despersonalizado de núme­ros, estatísticas e burocracias. Tem de ir mais longe e conquistar a alma dos europeus. Res­peitando a sua diversidade mas identificando a sua identidade. É um discurso novo que se escuta, com a particularidade de coincidir com o momento em que, tudo indica, Jean-Claude Juncker – o democrata-cristão sobrante da era de Kohl e Mitterrand, que al­guns consideram como o mais socialista dos democratas-cristãos europeus pela sua sensi­bilidade à dimensão social da ideia europeia – acederá à presidência da Comissão Eu­ropeia.
Mas Renzi foi mais longe e disse mais. Sem estender a mão, apontou o dedo a Berlim e a Haia – a Merkel mas também ao seu correligionário socialista Jeroen Dijsselbloem, Presi­dente do Eurogrupo, os arautos e os rostos mais visíveis das políticas austeritárias e ortodoxas europeias de reacção à crise – para assumir que “sem crescimento a Eu­ropa morre”. E que crescimento económico não tem de significar falta de rigor orçamen­tal. Curiosamente – ou talvez não – foi da liderança parlamentar do PPE que se ouviram as principais críticas ao modelo de desenvolvimento apresentado por Renzi. O alemão Manfred Weber, novo líder da bancada do PPE (mas que, como qual­quer eurodeputado alemão, antes de ser de qualquer partido é…. alemão), criticou forte­mente Renzi, a propósito da “flexibilidade” orçamental. Foi a oportunidade para recor­dar que a Alemanha conseguiu transformar-se na potência económica que é hoje, pre­cisamente à custa da violação das regras previstas no Pacto de Estabilidade e Cresci­mento, tendo sido objecto de processo de incumprimento por défice excessivo que a anterior Comissão Europeia resolveu arquivar. Ou seja, foi com base na violação das regras orçamentais da União, que a Alemanha se guindou à posição de supremacia eco­nómica de que hoje beneficia. E Renzi relembrou-o e recordou-o. O que não é fre­quente no Parlamento Europeu.
Em suma, os tempos próximos merecem que se dedique uma atenção cuidada à presta­ção do novo Primeiro-Ministro italiano. Matteo Renzi pode vir a ser aquela voz que faltava aos socialistas europeus (que o francês Hollande defraudou e o alemão Schulz nunca conseguiu ser) para credibilizar a sua visão europeia e o seu próprio pro­jeto europeu. Se assim for, serão boas notícias para o futuro próximo da União Euro­peia.

Quo vadis, União Europeia?

No rescaldo do último ato eleitoral para o Parlamento Europeu, resulta claro que, para além das diferentes conclusões que podem ser retiradas no plano nacional em cada um dos 28 Estados-Membros onde os cidadãos foram chamados às urnas, também no específico plano europeu há ilações a extrair deste sufrágio e que as lições que o mesmo forneceu nesse mesmo plano europeu não podem ser ignoradas nem escamoteadas.
Tendo-se tratado de eleições europeias, seria suposto que as mesmas não causassem acentuada perturbação política nos planos nacionais, para além daquelas que por regra já lhes aparecem associadas e que se prendem sempre com alguma dose de censura aos governos nacionais de turno. Desta vez, porém, as coisas foram significativamente diferentes e, em alguns Estados o ato eleitoral perturbou profundamente os respectivos sistemas político-partidários.
Descontando o caso português, já suficientemente escalpelizado e analisado, há três casos que devem merecer a nossa atenção – o que aconteceu em Espanha, no Reino Unido e em França.
Aqui bem ao lado, em Espanha, os tradicionais partidos da governação – PP e PSOE – ficaram nos dois primeiros lugares da eleição. Ambos, todavia, perderam votos e mandatos e, em conjunto, valem hoje menos de 50% do eleitorado espanhol. Em contrapartida, em quarto lugar e com 1,2 milhões de votos, 9,7% dos sufrágios e 5 eurodeputados eleitos, surge um partido novo – chamado Podemos – emanação direta do célebre movimento dos indignados do 15M (por referência ao movimento de 15 de maio de 2011), liderado por Pablo Iglesias, de 35 anos, um intelectual marxista, professor de Ciência Política e vedeta televisiva. Inequivocamente, o ambiente político em Madrid tremeu com este resultado eleitoral.
No Reino Unido, por seu lado, o UKIP (Partido da Independência do Reino Unido) venceu as eleições, levando para Estrasburgo 24 deputados, mais do que qualquer dos tradicionais partidos conservador, liberal e trabalhista. Há mais de cem anos que não se assistia a nada assim e, mais de uma semana volvida, Nigel Farage continua no centro da cena política britânica para completa estupefacção dos que se habituaram a ver no sistema político-partidário do Reino Unido o paradigma da estabilidade e da previsibilidade.
Finalmente, de França, da pátria da revolução e dos direitos do homem na Europa, veio a maior das surpresas da noite eleitoral: a Frente Nacional, matizando o carácter radicar que lhe havia sido imprimido pelo seu fundador, liderada agora por Marine Le Pen, venceu as eleições, logrou mais de 25% dos sufrágios contra os 20% da direita tradicional e os 14% dos socialistas do Presidente Hollande. Foi um resultado que só surpreendeu quem não acompanhava a vida política francesa, há muito previsível, mas que continua a causar perplexidades e incredulidades.
Se a todos estes factos – e a tantos outros que poderíamos mencionar – somarmos os elevadíssimos valores da abstenção, dos votos brancos e nulos que foram contados por todo o continente, impõe-se tentar perceber o que vai a União Europeia fazer deles e com eles e que ilações e consequências a própria União e as suas instituições dos mesmos irão retirar. Quando se apregoa que não há uma ligação estreita entre a UE e os cidadãos europeus, convocam-se os cidadãos às urnas e verifica-se que o voto foi diminuto, disperso e de protesto. Sabe-se que esse voto de protesto coincide em muitas críticas feitas ao projecto europeu mas, pela sua própria natureza, é insusceptível de construir ou viabilizar um projecto comum, uma alternativa credível. E, felizmente, ainda é, também, incapaz de construir minorias de bloqueio que impeçam o normal funcionamento dessas mesmas instituições europeias. Mas o sinal está dado – e se a União e as suas instituições não perceberem o sentido das urnas e não escutarem o que disseram os europeus (os que votaram e falaram e os outros também) nada nos garante que, num futuro próximo o panorama continue a ser o mesmo. Hoje por hoje, ainda são as tradicionais forças políticas europeias – democratas-cristãos, socialistas e liberais – que têm meios, deputados e instrumentos para governarem a União. Amanhã poderá já não ser assim. E se é verdade que aquela União Europeia que nos ensinaram e que ensinámos – sucessora das velhas Comunidades Europeias nascidas para reconstruirem a Europa dos escombros da segunda guerra mundial – já acabou e já não existe, no dia em que a instabilidade e o fator de ingovernabilidade atingirem as suas instituições, provavelmente nem “esta” UE resistirá e sobreviverá. Por ora, ainda pode conter danos e limitar os estragos. Se não tiver nem arte nem engenho para o fazer, pouco ou nada se salvará, pouco ou nada se aproveitará.