Paradoxos europeus

Durante os chamados “anos de chumbo” da crise europeia que teve o seu início em 2008 – proveniente do outro lado do Atlântico, onde rebentou um ano antes – parte significativa da Europa entreteve-se a criticar e a censurar a atuação da chanceler alemã, Angela Merkel, responsabilizando-a por quase tudo o que de negativo afetava a Europa, mormente as duras medidas de austeridade que foram impostas a muitos Estados europeus, nomeadamente os Estados do sul da Europa, que eram os que mais se debatiam com a célebre questão das dívidas públicas quase insustentáveis. Merkel era, por esses dias, a personificação e o rosto da austeridade, a cara das duras medidas que se abatiam sobre parte muito significativa dos europeus e que se traduziram nos resgates financeiros que não pouparam a Grécia, a República da Irlanda, Portugal, Chipre e a Espanha (ainda que esta de forma encapotada, sob a forma de apoio exclusivo à banca).

Escassos anos volvidos, deixada para trás – assim se acredita! – a crise europeia, as eleições legislativas do passado fim de semana na Alemanha vieram pôr em destaque que Angela Merkel emergiu como um dos principais rostos não só da Alemanha como, também, do que sobra desta União Europeia que, por vezes se nos afigura caminhar em passo acelerado para o seu processo de desintegração.

Fruto de uma política profundamente humanista e personalista – que a levou a abrir as portas da Alemanha a mais de um milhão de refugiados da guerra síria que demandaram o continente europeu em busca apenas e só de serem felizes e realizarem os mais básicos dos direitos humanos, e que lhe custou alguns milhões de votos – sem igual nem paralelo na história europeia, sobretudo na história recente da Europa, e face ao descalabro eleitoral social-democrata e socialista, que obteve os seus piores resultados desde o fim da segunda guerra mundial, Merkel volveu-se na imagem e no rosto visível que concitou as atenções tanto de alemães quanto de europeus na esperança de conter e de travar o movimento ascensional de uma extrema-direita constituída em torno da Aliança para a Alemanha (AfD), mas desprovida de coerência doutrinária ou homogeneidade ideológica.

O objetivo apenas parcialmente foi alcançado. Merkel logrou obter o seu quarto sucesso eleitoral, ainda que sem alcançar a procurada maioria absoluta. E apesar da sua política humanista – ou por causa dela – das esperanças que nela depositou uma parte significativa da Europa, a AfD guindou-se ao terceiro lugar no sufrágio, obtendo 13% dos votos e fazendo entrar no Bundestag, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, deputados de uma extrema-direita antieuropeia, anti-imigração, xenófoba e profundamente racista. Na noite do passado domingo, parte significativa da Europa deu consigo a recordar alguns dos seus piores demónios internos, que julgava já enterrados definitivamente no baú das recordações e dos seus próprios horrores. A chanceler, se não foi capaz de travar esta ascensão ficou, todavia e paradoxalmente, ainda mais responsabilizada na construção de uma alternativa política de governação para o gigante económico europeu. Alternativa que, sabe-se já, não deverá contar com o apoio e a participação social-democrata: Martin Schulz foi claro na noite eleitoral – o destino do seu partido seria ir para a oposição no próximo quadriénio, reorganizando-se para o combate de daqui a quatro anos. À chanceler, por simples exclusão de partes, não restam mais de duas possibilidades para continuar a governar a Alemanha: ou partir para a legislatura com um governo minoritário, o que está longe da tradição política do Bundestag, ou tentar formar a inédita (a nível federal) e improvável “Coligação Jamaica”, associando os democratas-cristãos da CDU/CSU aos Verdes e aos liberais do FDP que regressaram ao Parlamento depois de quatro anos de ausência. A formação desta improvável coligação não deixará de constituir importante teste para a capacidade negociadora de Merkel – que tentará moderar e conciliar as exigências da sua esquerda (Verdes) e da sua direita (Liberais). Talvez o maior teste em termos de negociação política desde que ocupa a chancelaria.

Paradoxalmente, porém, não serão só os alemães que estarão expectantes e atentos. Também aos europeus, a todos nós cidadãos desta União Europeia sobrante, o que se vier a passar não nos será, de todo, indiferente. Pelo papel liderante que desempenha na União, a posição do governo de Berlim será determinante para muitos dos dossiers que estarão em cima da mesa de Bruxelas. Do Brexit à reforma institucional e ao aprofundamento da zona euro – a palavra final passará sempre pelo governo de Berlim. Também nessa medida o paradoxo se verifica – quem ontem era detestada pelas suas opções políticas, é vista hoje como a única capaz de sustentar as reformas que a União necessita e carece urgentemente. Reformas como aquelas que, por exemplo, Merkel já havia dado mostras de ter articulado com Macron. E que, agora, estão objetivamente postas em causa, sobretudo pela agenda europeia dos renovados liberais alemães. Outro paradoxo do passado domingo: mesmo sem ter ido a votos, Emmanuel Macron foi um dos grandes derrotados do sufrágio alemão. Os resultados saídos das urnas alemãs podem ter hipotecado o apoio alemão a parte importante da sua agenda política europeia.

Assim se vai fazendo e construindo a política europeia dos nossos dias: navegando à vista, sem uma linha de rumo definida, com avanços e recuos. E com paradoxos; muitos paradoxos – que só servem para a tornar cada mais indecifrável e menos previsível.

Os fantasmas europeus

O Presidente dos Estados Unidos concluiu na passada semana a sua primeira viagem oficial ao exterior desde que tomou posse do seu cargo. Foi uma viagem com um itinerário estranho, que tentou responder a uma agenda quase indecifrável, tantos e tão variados os temas que pretendeu tocar e os lugares por onde andou. Foi ao oriente médio, foi ao Vaticano e ainda divagou por duas cimeiras na Europa.
No Médio Oriente começou a digressão com uma visita à Arábia Saudita. Terá sido o momento onde mais palpável se tornou a digressão. Assinou um acordo de venda de armamento militar que ultrapassou os cem mil milhões de dólares. O complexo militar-industrial norte-americano, a que há mais de cinquenta anos se referiu o Presidente Dwight Eisenhower, terá esfregado as mãos de júbilo. Para além deste acordo, Trump teve a possibilidade de discursar numa cimeira de Estados árabes onde os estimulou a combaterem o fundamentalismo islâmico. Em boa verdade, quereria referir-se ao fundamentalismo xiita – escolhendo uma plateia de sunitas para deixar a sua mensagem. Não é líquido, porém, que a diferença tenha sido apreendida, sobretudo considerando os laços que intercedem entre muitos dos Estados que se fizeram representar na dita conferência e muitos dos movimentos xiitas que vão trilhando o caminho da radicalização. Os comentadores mais atentos fizeram notar a subtileza da distinção precisamente para evidenciarem a duvidosa eficácia da mensagem que Trump quis deixar em Riade – justamente em Riade, onde impera um dos mais autocráticos e despóticos regimes do oriente médio.
No roteiro do Air Force One seguiu-se uma paragem em Israel, para reafirmar a velha solidariedade norte-americana com o Estado judeu e o empenho num processo de paz que tarda em chegar, e nova paragem desta feita no Vaticano. Aqui, Francisco não se preocupou em esconder o seu sentimento mais profundo, plasmado em fotos que ficam para a posteridade e que não deixam dúvidas sobre o incómodo de Sua Santidade na recepção a tão ilustre visitante. De forma mediata e indirecta, Francisco e Trump já tiveram oportunidade de registar diferentes pontos de vista a propósito de diversos temas, nomeadamente da agenda internacional. Nada nos parece permitir concluir que as divergências hajam sido aplainadas, muito menos superadas ou dissipadas. O protocolo limitou-se a ser cumprido. E não há notícia de que algo mais tenha acontecido.
Já o mesmo não se poderá dizer da etapa final da viagem inicial do Presidente Trump. Tanto na Cimeira da NATO em Bruxelas quanto na Cimeira do G7 na Sicília não faltaram motivos de reflexão e, alguns, de apreensão. Em Bruxelas, na Cimeira NATO, assistiu-se a um Trump mais moderado relativamente à própria Aliança Atlântica, tendo por comparação o que dela chegou a dizer em plena campanha eleitoral. Decerto – insistiu na tecla de que todos os Estados têm de assumir as suas responsabilidades financeiras para com a organização, levando as respectivas contribuições aos 2% de cada PIB. No fundo, recordava o compromisso, assumido na cimeira do País de Gales, em 2014, de, no espaço de uma década, todos os países aliados destinarem 2% do PIB a despesas militares. Ora, de acordo com os dados da própria Aliança Atlântica, no ano passado apenas cinco aliados atingiram ou ultrapassaram o objectivo acordado: Estados Unidos (3,61%), Grécia (2,36%), Estónia (2,18%), Reino Unido (2,17%) e Polónia (2,01%). Recorde-se, todavia, que este objectivo deverá estar atingido em 2024; não em 2017. Mas as críticas iniciadas em Bruxelas acabariam por se tornar mais evidentes na Sicília, na Cimeira do G7, onde alguns consensos anteriormente alcançados entre as sete maiores economias do mundo foram questionados ou, mesmo, renegados pela nova administração norte-americana.
As divergências surgidas foram de tal monta que, há dois dias, a chanceler Angela Merkel veio colocar em causa uma constante da ordem internacional dos últimos setenta anos – a regra segundo a qual os EUA eram verdadeiramente indispensáveis para a defesa e a segurança da Europa. Primeiro da Europa ocidental; depois da queda do Muro e do fim da guerra-fria, da Europa da União.
Creio podermos afirmar que, nunca nos últimos 70 anos que são os que decorreram desde o fim da segunda guerra mundial, líder europeu algum se atreveu a ir tão longe face aos EUA como o foi, há dias, a chanceler alemã. Nem mesmo De Gaulle, nos seus tempos áureos de “antiamericanismo”, ousou ir tão longe.
Dito isto, impõe-se reconhecer que a afirmação de Merkel – mesmo descontando o facto de se encontrar em plena campanha eleitoral para as eleições gerais de setembro – não deixa de revelar duas coisas. Ambas preocupantes. A primeira, que foi quebrada a fronteira de confiança entre o maior Estado europeu e o principal aliado dos europeus. E rôta a fronteira da confiança, ultrapassada a linha vermelha que a mesma supõe, dificilmente o relacionamento transatlântico, nos tempos mais próximos, poderá voltar a ser normalizado. A segunda ilação a retirar desta afirmação da chanceler alemã conduz-nos, fatalmente, à conclusão de que a Alemanha merkeliana está disposta a, também no plano militar e da defesa e segurança colectiva da Europa, desempenhar um papel liderante, condizente com o seu poderio económico e a sua proeminência política. Isto é, pela ideia de Merkel, não andará distante a concepção de uma Europa militarmente organizada sob liderança alemã. O que, no momento presente, conduziria os europeus a terem de efectuar uma escolha muito pouco desejável: continuarem a abrigar-se sob a protecção militar norte-americana como o têm feito nos últimos setenta anos, ou colocarem-se debaixo do guarda-chuva alemão, no quadro duma defesa exclusivamente europeia. E mesmo que, como talvez viesse a ser mais provável, optassem pela manutenção do stato quo, não deixa de ser recomendável registar que bem no centro desta União Europeia em acelerado caminho de desintegração, existe um Estado, responsável pelos principais fantasmas com que a Europa se defrontou no seu passado recente, disposto a, de novo, projetar o seu poder e liderar militarmente a defesa europeia. Talvez seja chegado o momento de revisitar, para recordar, alguns dos referidos fantasmas.

A governação da zona euro

Justamente no primeiro dia útil da nova presidência francesa, na passada segunda-feira, enquanto Emmanuel Macron se deslocava a Berlim para a sua primeira cimeira com a chanceler Angela Merkel visando retomar os laços do eixo franco-alemão na UE, o governo espanhol apresentou em Bruxelas um ousado plano visando a reforma da governação da zona euro. Dizem as notícias mais fidedignas que o referido plano terá sido acordado ou consensualizado por ocasião da cimeira dos países do sul da União, que reuniu em Lisboa, no passado mês de janeiro, António Costa, Mariano Rajoy (Espanha), François Hollande (França), Alexis Tsipras (Grécia), Nikos Anastasiades (Chipre), Paolo Gentiloni (Itália) e Joseph Muscat (Malta). Como já na altura se assinalou, o tema dominante desta cimeira foi a reforma da política monetária da UE, o acabamento da união económica e monetária e a introdução de mudanças e de reformas profundas na Zona Euro.
A coincidência da divulgação pública destas medidas por parte do governo espanhol com a deslocação de Macron a Berlim, não foi produto do acaso. Resulta do facto de, entre o texto consensualizado entre Madrid e Lisboa e as posições do novo Presidente francês em matéria de reforma da governação da zona euro existir uma ampla área de sintonia e consenso. Mas também zonas de dissenso e de divergência. Madrid apresentou as suas propostas em Bruxelas; Macron foi levá-las pessoalmente e em mão a Angela Merkel. No fundo, as mensagens, não tendo sido as mesmas, centraram-se ambas em torno da reforma da zona euro.
Entrando, no detalhe das medidas subscritas por Espanha e Portugal e as que são sustentadas pelo novo Presidente francês, como já se referiu, notam-se algumas divergências pontuais. Espanha e Portugal, por exemplo, defendem a criação de um orçamento anti-crise para a zona euro, um seguro de desemprego comunitário, a mutualização da dívida dos países da zona euro através da emissão de eurobonds, a conclusão da união bancária, a reforma do Pacto de Estabilidade retirando-lhe a componente “pro-cíclica” e o reforço da legitimidade democrática do Eurogrupo. Deste conjunto alargado de medidas, Macron já deu sinais de discordar, pelo menos para já, da mutualização das dívidas dos Estados da eurozona através da criação do mecanismo dos eurobonds. É uma discordância assinalável posto que, na proposta formulada por Madrid e que Portugal subscreveu, o mecanismo dos eurobonds constituía elemento fulcral e central.
Da parte do programa defendido pelo Presidente francês, por seu lado, há um elemento original – é defendida a criação de um Parlamento dos Estados da zona euro. E esta proposta parece merecer a discordância e oposição do governo português com base no argumento de que seria impossível de ser concretizada sem uma prévia conferência intergovernamental que procedesse a uma revisão dos tratados actualmente em vigor. Ora, parece defender – e bem! – o governo português que, no presente momento, não existem condições políticas que possibilitem encetar com sucesso um processo de revisão dos tratados comunitários.
Pese embora estas divergências, que se encontram quando analisamos o detalhe das medidas propostas, constatamos que, apesar das divergências mais ou menos pontuais registadas, existe uma ampla zona de convergência e de possível consenso entre as posições que estão a ser, actualmente, sustentadas pelo novo governo francês e, pelo menos, por Espanha e Portugal. Significa isto que começam a ser criadas condições mínimas para, finalmente, ser encarada de frente a questão do acabamento da estrutura institucional e de governação da zona euro – cuja falta tanto se fez sentir nos dias mais pesados da última grande crise que atingiu a zona euro.
Decerto – neste continente em busca desesperada pelo seu norte e que parece condenado a adiar as suas decisões sempre à espera da realização do próximo ato eleitoral, dificilmente serão tomadas medidas ou decisões concretas antes das próximas eleições legislativas alemãs marcadas para o próximo mês de setembro. Apesar dessa pausa forçada, e com a consciência de que antes de setembro pouco ou nada de relevante acontecerá na União Europeia, pelo menos de previsível, nada impede que determinados caminhos se comecem a trilhar e a caminhar. O da reforma da governação da zona euro e do seu acabamento será, sem dúvida, um desses caminhos.
Se, nesse debate, conseguirmos encontrar Portugal no pelotão da frente da discussão que terá de ser travada – ainda que integrado no grupo dos países ditos do Sul que regularmente se têm vindo a reunir em cimeiras regulares, no quadro das quais, por exemplo, poderão vira a ser articuladas as posições de França, Espanha, Portugal, Itália e restantes Estados-membros – só poderemos ter razões para nos congratular e felicitar.

A III Cimeira do Sul

Foi há dois dias que, em Madrid, reuniram pela terceira vez em cimeira, os Estados do sul mediterrânico – a Espanha, França, Itália, Portugal, Grécia, Chipre e Malta. Disseram algumas coisas óbvias, outras quantas banalidades mas deram sinais de, de uma forma informal e não estruturada (ao contrário, por exemplo, do que acontece com os Estados do Grupo de Visegrado), estarem na disposição de buscarem os consenso possíveis para enfrentarem os desafios que se vão colocar à Europa durante a fase de negociação do Brexit e, sobretudo, após a concretização da saída do Reino Unido. Foi a primeira vez que este grupo se reuniu, como foi assinalado, depois da declaração de Roma que assinalou os 60 anos do Tratado de Roma e depois de o Reino Unido ter accionado formalmente o artigo 50º do Tratado de Lisboa. Foi, ao mesmo tempo, o momento adequado para ser consensualizada uma posição comum face à próxima cimeira de finais de abril, em Bruxelas, do Conselho Europeu.
Ainda sobre as conclusões desta III Cimeira do Sul europeu, um aspeto se destaca, a meu ver, de todos os restantes – pela sua importância prática, pela sua relevância humanitária e pelo seu impacto na atual (des)ordem internacional. Refiro-me à política de vistos, que foi decidido pelos sete de Madrid que deverá continuar a ser uma política e uma competência comunitária. A pressão das migrações e dos refugiados conferem, a esta decisão, uma importância enorme. Mas faz recair também, sobre as estruturas decisórias e a máquina administrativa da União um repto e um desafio sem igual – o de conseguir montar e manter em funcionamento eficaz um serviço adequado a dar uma resposta em tempo útil aos pedidos e à pressão de que vier a ser alvo. Mas isso será todo o contrário do que, até agora, tem acontecido e sucedido.
E a importância desta cimeira pode, ainda, ser aferida por dois outros dados de relevo: em primeiro lugar o facto de, estes sete Estados que reuniram em Madrid, quando articulados, poderem formar, a qualquer momento, uma minoria de bloqueio que impede qualquer tomada de deliberação ordinária em sede de Conselho da União; em segundo lugar, a sua heterogeneidade. Ao lado de três das maiores economias da União (França, Itália e Espanha), tomam assento na mesma três dos Estados resgatados na sequência da crise das dívidas soberana (Grécia, Portugal e Chipre). Ou seja, seria difícil encontrar composição mais heterogénea para um grupo de Estados que voluntariamente se deseja articular e consensualizar posições no quadro europeu. Isto porque, seguramente, independentemente das diferenças económicas que intercedem entre eles, o facto de serem Estados do “mal-amado” sul europeu, são Estados que comungam de muitas especificidades comuns, que partilham muitos problemas e desafios em comum e que encontram nessas dificuldades que se lhes deparam uma boa base de partida para entendimentos futuros. Sobretudo num tempo em que, todos os indícios apontam para tal, a discussão do Livro Branco sobre o futuro da União, da responsabilidade da Comissão Europeia liderada por Jean-Claude Juncker, acabará para apontar para um cenário de desenvolvimento futuro da União em torno de vários círculos ou a várias velocidades. No fundo, um cenário em que os 27 sobrantes não participarão, todos, nas mesmas e das mesmas políticas comuns, podendo escolher, de entre as existentes, quais aquelas em que pretendem participar e quais aquelas matérias onde pretendem reservar para a sua competência nacional o poder e a decisão final. Um pouco, afinal, à imagem e semelhança do que já acontece hoje em dia com, por exemplo, a União Económica e Monetária e o espaço Schengen.
Numa altura em que nada parece impedir que as velocidades diferentes para que aponta o futuro da integração do projeto europeu tenha na sua génese um critério geográfico – e em que outros parece já o terem compreendido e parecem apostados nisso mesmo, e teremos de voltar sempre ao caso do Grupo de Visegrado – articular e consensualizar posições e interesses entre estes sete Estados reunidos em Madrid pode não constituir o método ideal de contribuir para a o futuro da integração europeia. Mas como, frequentemente, o ótimo é inimigo do bom, pode ser a melhor forma possível destes Estados darem o seu contributo para esse mesmo futuro.

O Mundo não espera pela Europa

As eleições estaduais alemãs do passado fim de semana, no Estado federado de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental constituíram um pequeno exemplo do ambiente político a que esta União Europeia sobrante tem estado a ser reconduzida, um pouco em todos os seus Estados. Os sociais-democratas tornaram-se no partido mais votado num Estado tradicionalmente democrata-cristão; a nova força do Altrenativa para a Alemanha (AfD) logrou alcançar o segundo lugar; e a CDU da chanceler Angela Merkel viu-se relegada para um inglório terceiro lugar na escolha dos eleitores, quando por regra este era um dos seus bastiões em toda a Alemanha.
A sensivelmente um ano das próximas eleições legislativas, estes resultados têm sido olhados com redobrada atenção e escalpelizados ao detalhe pelo estado-maior dos principais partidos germânicos, não faltando quem esteja a neles ver um ensaio importante para as próximas eleições gerais.
Dois dados resultam com particular evidência deste sufrágio – e devem merecer uma meditação mais aprofundada.
O primeiro tem a ver com a forte penalização da tradicional democracia-cristã da CDU, que de primeiro passa a terceiro partido no Estado. A generalidade dos comentadores que se debruçaram sobre estes resultados eleitorais foi unânime. Angela Merkel e a sua União Democrata-Cristã foram fortemente penalizados pela sua política europeia, com particular ênfase para a sua postura relativa aos refugiados e migrantes que têm demandado a Alemanha e se têm deparado, apesar de tudo, com uma política de acolhimento flexível e disposta a integrar um número significativo desta nova vaga de refugiados, política iniciada em setembro do ano passado, quando a chanceler decidiu não bloquear o caminho para os refugiados detidos na Hungria. Não faltaram, de então para cá, dentro e fora da Alemanha, vozes reclamando um endurecimento da política alemã face a estes migrantes e um endurecimento das leis federais que permitiam que os mesmos passassem e ficassem em território alemão. Da mesma forma que não faltaram os que associaram a esta vaga de migrantes o aumento da criminalidade e, sobretudo, o recrudescimento da onda terrorista que há muito a Alemanha já não conhecia. De todas as formas, sempre as questões atinentes à política europeia a justificarem esta queda eleitoral do partido da chanceler Merkel. Diga-se, já agora e à laia de parêntesis, terem sido muito poucos os que repararam nas fracas qualidades do candidato democrata-cristão à chefia do governo estadual; detalhes, apenas detalhes….
Por outro lado, a par com esta descida da CDU, os eleitores de Mecklenburg-Pomerânia Ocidental optaram por beneficiar a extrema-direita populista da Alternativa para a Alemanha, guindando-a a um inesperado terceiro lugar no ranking eleitoral. Partido que se define como fora do sistema, populista e contrário à presença da Alemanha na União Europeia com tudo o que isso supõe (nomeadamente a pertença à zona euro, a aceitação da liberdade de circulação de pessoas, a política de assimilação de migrantes), o seu crescimento fez-se, também na Alemanha, à custa de um dos tradicionais partidos que moldaram o atual sistema político germânico (a CDU). Repetiu-se, com as devidas proporções, um fenómeno que já tínhamos visto acontecer em Espanha, na Grécia, no Reino Unido, em França, na Hungria, na Polónia. E que não está dito nem escrito em lado algum que se possa dar por terminado e encerrado.
A política europeia, em escalas e tonalidades diferentes, está, pois, a penalizar os clássicos e tradicionais partidos políticos que geriram os Estados europeus no pós-segunda guerra mundial, apadrinhando e criando condições propícias para a emergência de novas e desestruturadas propostas políticas, de matiz radical e sinais políticos contraditórios, que acabam por acolher e beneficiar de todo o descontentamento que as políticas europeias despertam e suscitam. A União Europeia, por sua vez, “põe-se a jeito”: em vez de construir um projeto político europeu, oferece políticas avulsas, dirigistas, regulamentadoras e não raro contraditórias entre si; em lugar de mostrar ao mundo lideranças inspiradoras e geradoras de confiança, contenta-se em escolher e substituir regularmente simples governantes de turno, que frequentemente nem são respeitados nem se dão ao respeito; à existência de uma opinião pública forte, consentânea com uma cidadania comum que pretende potenciar, convive com a existência de vinte e oito opiniões públicas nacionais onde o sentido de pertença a uma identidade comum que complete e complemente as identidades nacionais, está completamente ausente e não é estimulado nem alimentado.
Eis-nos, pois, perante um caldo de condições verdadeiramente potenciador de um atrofiamento capaz de constranger o aprofundamento e o desenvolvimento de um espírito europeu indispensável ao projeto que se pretendeu edificar sob a égide da União Europeia. Está nas mãos dos europeus impedir que este perigo potencial se transforme numa realidade triste e deplorável.
Se a Europa e os Estados europeus pretendem ter uma voz neste mundo cada vez mais globalizado e cada vez mais estruturado em torno de grandes espaços, urge que se organize e se institucionalizem para poderem ser ouvidos e escutados. Nenhum Estado europeu, por muito grande que seja, conseguirá sobreviver por si só neste mundo globalizado e de grandes espaços. Nem sobreviver, nem fazer-se ouvir. Nem os grandes, muito menos os pequenos e médios Estados. A União Europeia tem sido, até ao presente, essa estrutura mínima que almeja representar a Europa. Se não puder ser ela, que seja outra qualquer que venha a suceder-lhe. Mas o mundo, lá fora, não prescinde da Europa para se estruturar e se organizar. Mas se esta velha Europa não se apressar, esse mesmo mundo não ficará parado à espera dela.