José Medeiros Ferreira. In memoriam

Morreu José Medeiros Ferreira, o político, académico e historiador indissociavelmente ligado à opção europeia, tomada pelo primeiro Governo Constitucional, liderado por Mário Soares, no qual Medeiros Ferreira assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros, sendo o mais jovem chefe da diplomacia portuguesa, com apenas 35 anos. Foi ele quem iniciou o processo de adesão à então Comunidade Económica Europeia, a que Portugal aderiu, formalmente, em 1986. Já debilitado pela doença, deixou o seu último livro que marca e analisa o percurso europeu de Portugal e o diagnóstico sobre a situação de crise que se abate sobre a União Europeia: “Não Há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)Dita da Integração Europeia” donde restará, entre outras, a tese assertiva de que a União Europeia pode desaparecer sem darmos por isso. Deixa-nos o intelectual mas também nos deixa as suas palavras, as suas preocupações e as suas angústias. Para reflectir e meditar. Que descanse em paz.

Vaclav Havel. In memoriam

Faleceu hoje Vaclav Havel, figura primeira do europeísmo da resistência e artífice principal da Revolução de Veludo que, sem quebrar um vidro ou derramar uma gota de sangue, derrubou um governo, ruiu um sistema e cindiu um país. Em texto académico publicado, dedicámos-lhe as seguintes palavras:
O fim da guerra–fria e o longo período de declínio que antecedeu esse final não pode, porém, ser apenas imputado à importante ação des­en­volvida por um pu­nhado de esta­dis­tas que as circunstâncias colocaram no go­verno dos seus Estados em momento si­multâneo. Porque o sistema bi­polar ruiu a leste, justamente a leste esse facto não pode ser dis­sociado de uma importan­te batalha travada por povos mudos e oprimidos que bus­cavam a verdade e a autenticidade. Para o efeito invoca­vam valores rela­ti­vizados a oci­dente por­que mal compaginados com uma sociedade de con­sumo em que o ter prevalece so­bre o ser. Como no­vos projetistas da paz deste fim de século, recorreram ao único po­der à sua disposição — o poder do verbo — para enfrentarem o Estado que oprimia e o partido que con­trola­va. No seu conjunto formaram uma autên­tica Internacional de Dissiden­tes que co­me­çou a ganhar forma e es­trutura com a pu­blicação, em Ja­neiro de 1977, em Praga, da Carta 77 e que se desen­volveu com a reunião ocorrida algures na fronteira polaco–checa en­tre dissi­dentes de ambos os países em Agosto de 1978. No movimento assume pro­ta­go­n­ismo espe­cial Vaclav Havel — o dra­maturgo que a Revolução de Veludo colo­cará à fren­te dos desti­nos da Checoslováquia e, após a sua se­ces­são, da novel Repú­blica Checa. As preocu­pações dos cartistas eram bem definidas e nada ti­nham a ver com as que ocupa­vam os espíritos ociden­tais: ante a deca­dên­cia que lhes era dado conhecerem, proclamam a sua iniciativa, antes de tudo, como uma iniciativa ética que reconhece o primado da con­sci­ên­cia moral indivi­dual sobre a razão–de–Esta­do. Es­sen­cialmente porque, no di­zer de ou­tro dos seus ex­po­entes, o filósofo re­sis­tente Jan Pato­cka — que decerto não esquecera o exemplo do seu compatriota, o estudante Jan Palach, auto–emulado na Praça de S.Wenceslau em Varsóvia porque era urgente protestar contra a sovieti­zação do seu país — há coisas que merecem que se so­fra por elas. Nesta cru­zada pela palavra livre e pelo di­reito de expressão e pen­samen­to, assumi­rá desta­que outro texto de Havel — «O po­der dos sem po­der» ana­lisa o fenó­meno da dissi­dência nos países co­munistas e re­toma teses da Carta apa­recida um ano an­tes.

Elena Bonner. In memoriam

Elena Bonner lutou pela defesa dos direitos humanos na antiga União Soviética, esteve presa e exilada. Era viúva do físico nuclear e dissidente russo Andrei Sakharov, distinguido com o Nobel da Paz em 1975. Já tinha sido operada três vezes ao coração e morreu neste sábado em Boston, nos Estados Unidos, aos 88 anos.
Nascida na República soviética do Turquemenistão, em 1923, Bonner, enfermeira que chegou a ser condecorada pelos seus serviços de apoio ao Exército Vermelho durante a II Guerra Mundial, era uma crítica do regime desde finais dos anos 60. Nessa altura deixou as fileiras do Partido Comunista, depois de ver, durante a Primavera de Praga, a repressão das forças soviéticas na principal cidade da então Checoslováquia. Conheceu Andrei Sakharov em 1970 e os dois casaram em 1972. Ele foi físico nuclear, chegou a participar na criação da bomba de hidrogénio soviética mas depressa se juntou à contestação ao regime, por isso foi perseguido, submetido a um exílio interno na cidade de Gorki, a cerca de 400 quilómetros de Moscovo. Ela tornar-se-ia a sua voz no exterior, mas acabou por também ser expulsa para Gorki em 1984 por “agitação anti-soviética”. Um ano depois acabou por ser autorizada a deixar o país, partiu para Itália e mais tarde para Boston, onde vivia a sua mãe e a sua filha. Aí foi submetida à primeira intervenção cirúrgica ao coração. Até que, em 1986, foi autorizada a regressar a Moscovo, já Mikhail Gorbatchov procurava levar a cabo diversas reformas no regime. Sakharov também voltou, viria a morrer dois anos depois. E Bonner continuou envolvida na defesa dos direitos humanos e a ser uma das vozes mais críticas do regime. Críticas à guerra na Tchetchénia e a Putin Condenou com firmeza a intervenção militar russa na Tchetchénia, em 1994, guerra que qualificou como “genocídio do povo tchetcheno”. E como protesto renunciou ao cargo que ocupava na comissão de direitos humanos russa, era já Boris Ieltsin quem estava na presidência do país. Ieltsin, aliás, voltaria a ser alvo das suas críticas por ter promovido a ascensão do ex-agente do KGB Vladimir Putin a seu sucessor. Putin foi Presidente, é agora primeiro-ministro, e ainda no ano passado Bonner assinou uma petição na Internet contra ele, a condenar as violações de direitos humanos na Rússia. “A sua morte é uma grande perda, e não só para o movimento de defesa dos direitos humanos”, disse à agência Interfax a sua amiga e presidente do Grupo Helsinki, Lioudmila Alexeeva. O presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, prestou homenagem “à coragem de Bonner na sua luta pelas liberdades fundamentais e a dignidade humana”.

Francesco Cossiga. In memoriam

Morreu hoje, com 82 anos, o ex-Presidente da República de Itália, Francesco Cossiga, figura maior da Itália do pós-segunda guerra mundial. Nascido a 26 de Julho de 1928 em Sassari, noroeste da Sardenha, Cossiga entrou para a Democracia Cristã aos 17 anos. Advogado, doutor em Direito Constitucional, de inteligência e ironia mordazes, teve uma carreira política irrepreensível. Deputado pela DC aos 30 anos, foi várias vezes Secretário de Estado de Defesa e, depois, Ministro do Interior, em 1978. Renunciou ao cargo no dia seguinte ao assassinato do líder da DC, Aldo Moro, sequestrado e morto em 9 de Maio de 1978 pelas Brigadas Vermelhas. Durante os 55 dias em que Moro ficou nas mãos dos terroristas, Cossiga foi criticado em diversas oportunidades pela sua gestão do caso, a par do convencimento generalizado de que conhecia a maior parte dos segredos e dos documentos confidenciais dos “anos de chumbo” do terrorismo na Itália. Primeiro-Ministro por um breve período, em 1979, foi eleito Presidente da República em 1985, para um mandato de sete anos. Depois de anos a exercer funções essencialmente protocolares, renunciou à Presidência em Abril de 1992, três meses antes do final do seu mandato, para dar lugar a “um Presidente forte”, na lógica das reformas institucionais que defendia em ordem à presidencialização do regime político italiano. Durante o conturbado período de decadência dos partidos tradicionais provocado pela operação “Mãos Limpas”, Francesco Cossiga, senador vitalício, foi dos poucos políticos da «velha guarda» que manteve incólume o seu prestígio, o que lhe permitiu fundar novo partido democrata-cristão que se reclamou sucessor da velha DC. Neste âmbito, reeditou o célebre «compromisso histórico» da década de setenta do século passado ao apoiar, em Outubro de 1998, a investidura do primeiro governo italiano dirigido por um ex-comunista, no caso, Massimo D’Alema. Um ano depois, retirou o seu apoio ao governo. A última ascensão ao poder de Sílvio Berlusconi coincidiu praticamente com o seu afastamento da vida pública italiana.