Nos cem dias de Macron

A passagem dos primeiros cem dias da presidência de Emmanuel Macron coincidiram, para quem esteve atento ao pormenor e ao detalhe, com a divulgação de sondagens e estu­ dos de opinião que reflectiram uma acentuada queda da popularidade e índice de aprova­ ção do Presidente da República junto do eleitorado francês. Pouco mais de três me­ ses depois de haver cilindrado e pulverizado todas as oposições, o centrista que apare­ ceu como demasiadamente liberal para muitos socialistas e o liberal que não dei­ xava de ter uma importante veia socialista para outros tantos republicanos, começou a sen­ tir na pele o inevitável choque de realidade que, mais tarde ou mais cedo, teria inevitavel­ mente de o atingir.

Curiosamente – e sem deixar de ser paradoxalmente – é no momento em que conhece as suas primeiras dificuldades políticas internas que Macron assume protagonismo pelas propos­ tas que avança no domínio e no plano europeu.

A defesa da criação de uma espécie de Fundo Monetário Europeu, a admissão da existên­ cia de um ministro das finanças da zona euro, o aprofundamento da própria união económica e monetária – constituem algumas das propostas que, no plano euro­ peu, Emmanuel Macron tem acolhido e sustentado.

Isto é – deliberadamente ou não, o Presidente francês tem tentado suprir as insuficiên­ cias denotadas no plano da política interna com a aposta deliberada nas questões euro­ peias. Dando a entender – e bem – que percebeu e compreendeu o papel que a França, conjunta­ mente com a Alemanha, pode vir a desempenhar no projecto europeu. Reacti­ vando o célebre “eixo Paris-Berlim”, personificado por Kohl e Mitterrand e, posterior­ mente, deixado cair em desuso por um Chirac cujos danos que infligiu à Europa – quando resol­ veu reavivar os fantasmas da Europa nova e da velha Europa – ainda estão por determi­ nar em toda a sua extensão e, seguidamente, enterrado por um Sarkozy que se subme­ teu em toda a linha e de forma indecorosa aos ditames da chanceler Merkel. Hollande, pelas razões óbvias e conhecidas, nem sequer pode ser chamado para estas con­ tas.

Esta ambição europeia de Macron – que já deixou indícios suficientes de não se preten­ der conformar com uma simples referência numa nota de rodapé da história do projeto euro­peu – pode vir a beneficiar, inequivocamente, da renovação do mandato de Merkel, que se anuncia como o cenário mais provável a sair das eleições legislativas germânicas do próximo dia 24.

Essas eleições, de resto, fecharão o ciclo das eleições legislativas e presidenciais ocorridas em 2017 que se revelarão determinantes para o futuro da União Europeia. Serão, tudo o indica, a consagração dos mandatos sucessivos de Angela Merkel – ainda que estando longe de poder vir a alcançar uma qualquer maioria absoluta que lhe permita vir a formar um governo unipartidário em Berlim. Eis-nos, pois, com enorme probabilidade, chegados à situação tida por paradoxal há poucos anos: Angela Merkel estará em vésperas de se volver na estadista de referência do projeto europeu. Quem o diria nos anos de chumbo da crise! Para a concretização deste estatuto, muito poderá Merkel vir a beneficiar da ambição francesa protagonizada por Macron. Este tem dito e feito propostas que a Alemanha tem gostado de escutar. Basta termos assistido ao debate eleitoral que a chanceler travou com o social-democrata Schulz para ficarmos a perceber os caminhos comuns que Paris e Berlim podem estar dispostos a trilhar. E, nessa medida, o futuro do projeto europeu poderá não ser tão sombrio como o foi o seu passado recente e o tem sido o seu longo presente. Oxalá não surjam, de onde menos se possa esperar, obstáculos ou entraves, endógenos ou exógenos, ao aprofundamento desse projeto. Por vezes, donde menos se espera, é donde vêm os entraves mais difíceis de ultrapassar.

E com isto estaremos reconduzidos à possível – e desejável! – reconstrução da velha aliança franco-alemã que, tendo estado na origem do projeto europeu, poderá voltar a estar na origem da sua refundação. É o seu alfa e será o seu ómega.

Dois ícones europeus.

Devido aos seus insondáveis desígnios, em pouco mais de duas semanas a Divina Providência levou-nos duas figuras de relevo na construção do projecto europeu de unificação da Europa do pós-segunda guerra mundial; duas personalidades de exceção nos respetivos países que foram, justamente, a Alemanha e a França, isto é, aqueles Estados cuja ligação o tal projecto europeu começou por afirmar que era preciso aprofundar como condição prévia à manutenção da paz no continente europeu, evitando a repetição de chacinas como aquelas que, nos 75 anos anteriores, por três vezes praticamente haviam destruído este nosso velho continente; dois exemplos de integridade cívica e moral que o foram e, decerto, continuarão a ser, não só para os seus contemporâneos como, também, para as gerações vindouras, que nas suas vidas não deixarão de identificar o exemplo a seguir e a imitar.

Helmut Kohl e Simone Veil deixaram-nos num curto intervalo de tempo, mas os exemplos das suas vidas perdurarão por muito e longo tempo para além da sua morte.

De Helmut Kohl já tudo ou quase tudo foi dito, escrito e recordado. Detenhamo-nos um pouco sobre Simone Veil, cuja vida e obra nunca tiveram a mesma repercussão e dimensão pública de Kohl, o que não significa que tenham tido menor importância.

Nascida a 13 de julho de 1927, em Nice, no seio de uma família judia e laica, foi vítima, na sua infância, dos horrores de Auschwitz. Aliás, toda a sua família foi deportada em 1944 para campos de concentração: o seu pai e o seu irmão, Jean, para a Lituânia, uma das irmãs para Ravensbruck, e ela, a sua mãe e uma segunda irmã foram deportadas para Auschwitz. Tornou-se advogada e subiu a pulso na vida política francesa, onde chegou a ser Ministra por várias vezes (com a eleição de Valéry Giscard d’Estaing para a Presidência da República francesa em 1974, foi nomeada Ministra da Saúde no governo liderado por Jacques Chirac, cargo que conservou nos governos seguintes de Raymond Barre até julho de 1979).

Após os primeiros passos do projecto europeu do pós-segunda guerra mundial, empenha-se activamente na causa do europeísmo militante. Tornou-se deputada ao Parlamento Europeu em 1979 presidindo a esta instituição entre 1979 e 1982 (foi a primeira mulher a presidir à Assembleia de Estrasburgo). Entre 1984 e 1989 liderou o Grupo Liberal e Democrático do mesmo Parlamento. Ficaram célebres as suas expressões em que afirmava ser uma optimista mas, desde 1945, já não ter ilusões. Ou aqueloutra onde afirmava que “o facto de ter feito a Europa reconciliou-me com o século XX”. Foi uma protagonista de excepção desta causa europeia, à qual emprestou a sua credibilidade e a sua honorabilidade.

Terminada a sua passagem pelas instituições europeias, voltou à vida política ativa na sua pátria – em Março de 1993, com Jacques Chirac na Presidência da República, foi nomeada Ministra de Estado, Ministra dos Assuntos Sociais e da Cidade no governo liderado por Édouard Balladur, cargo que desempenhou até Julho de 1995). Em 1998 foi nomeada membro do Conselho Constitucional de França onde permaneceu até 2007, ano em que terminou seu mandato, abandonando as suas funções públicas com o apoio à eleição presidencial de Nicolas Sarkozy.

A consagração do se percurso de vida, tanto no plano político como nos planos académico e cultural, é coroada em 2008 com a sua eleição para a Academia Francesa, tornando-se a sexagésima mulher a pertencer à instituição.

A sua voz tornou-se, gradualmente, uma das mais escutadas, em França e na Europa, sendo-lhe reconhecida, unanimemente, uma enorme integridade moral e uma profunda auctoritas. Poderíamos aplicar-lhe, na íntegra, a velha figura de retórica regularmente utilizada pelo Professor Adriano Moreira: a Europa acaba de perder uma daquelas raras vozes encantatórias, destinadas a falarem ao ouvido dos príncipes. E com isto a Europa acaba de ficar mais pobre; e todos nós com ela.

Ficámos, aliás, duplamente mais pobres – com a perda de Helmut Kohl e de Simone Veil são dois dos símbolos da construção do ideal europeu que nos deixam, não se vislumbrando, de momento, que possa ser o legatário dos seus exemplos, dos seus valores e das suas convicções. Ambos personificaram estadistas e valores europeus, coisa que, infelizmente, nos nossos dias, vai rareando e escasseando.

Louvemo-nos nestes dois exemplos que nos foram legados e tentemos apreender o essencial do que nos deixaram. Será a melhor forma de suprirmos a perda que a sua partida nos proporcionou.

Simone Veil. In memoriam.

Faleceu hoje Simone Veil, 89 anos, voz de respeito na sociedade francesa, ícone da resistência ao nazismo e figura de referência da segunda geração dos construtores do projecto europeu.

Nascida a 13 de julho de 1927, em Nice, no seio de uma família judia e laica, foi vítima, na sua infância, dos horrores de Auschwitz. Aliás, toda a sua família foi deportada em 1944 para campos de concentração: o seu pai e o seu irmão, Jean, para a Lituânia, uma das irmãs para Ravensbruck, e ela, a sua mãe e uma segunda irmã foram deportadas para Auschwitz. Tornou-se Advogada e subiu a pulso na vida política francesa, onde chegou a ser Ministra por várias vezes (com a eleição de Valéry Giscard d’Estaing para a Presidência da República francesa em 1974, foi nomeada Ministra da Saúde no governo liderado por Jacques Chirac, cargo que conservou nos governos seguintes de Raymond Barre até julho de 1979).

Após os primeiros passos do projecto europeu do pós-segunda guerra mundial, empenha-se activamente na causa do europeísmo militante. Tornou-se deputada ao Parlamento Europeu em 1979 presidindo a esta instituição entre 1979 e 1982 (foi a primeira mulher a presidir à Assembleia de Estrasburgo). Entre 1984 e 1989 liderou o Grupo Liberal e Democrático do mesmo Parlamento. Ficaram célebres as suas expressões em que afirmava ser uma optimista mas, desde 1945, já não ter ilusões. Ou aqueloutra onde afirmava que “o facto de ter feito a Europa reconciliou-me com o século XX”. Foi uma protagonista de excepção desta causa europeia, à qual emprestou a sua credibilidade e a sua honorabilidade.

Terminada a sua passagem pelas instituições europeias, voltou à vida política ativa na sua pátria – em Março de 1993, com Jacques Chirac na Presidência da República, foi nomeada Ministra de Estado, Ministra dos Assuntos Sociais e da Cidade no governo liderado por Édouard Balladur, cargo que desempenhou até Julho de 1995). Em 1998 foi nomeada membro do Conselho Constitucional de França onde permaneceu até 2007, ano em que terminou seu mandato, abandonando as suas funções públicas com o apoio à eleição presidencial de Nicolas Sarkozy.

A consagração do se percurso de vida, tanto no plano político como nos planos académico e cultural, é coroada em 2008 com a sua eleição para a Academia Francesa, tornando-se a sexagésima mulher a pertencer à instituição.

A sua voz tornou-se, gradualmente, uma das mais escutadas, em França e na Europa, sendo-lhe reconhecida, unanimemente, uma enorme integridade moral e uma profunda auctoritas. Poderíamos aplicar-lhe, na íntegra, a velha figura de retórica regularmente utilizada pelo Professor Adriano Moreira: a Europa acaba de perder uma daquelas raras vozes encantatórias, destinadas a falarem ao ouvido dos príncipes. E com isto a Europa acaba de ficar mais pobre; e todos nós com ela. Que descanse em paz.

Helmut Kohl. In memoriam.

Morreu Helmut Kohl. A notícia acaba de ser divulgada há escassos minutos e, de imediato, apeteceu-me regressar ao que sobre ele tive oportunidade de escrever em texto já publicado. São essas linhas que aqui ficam:

«Não considerarão muitos o chanceler federal alemão [Helmut Kohl] o último crente e europeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governam hoje a Europa?» – a questão, perturbadora mas lúcida, colocada pelo Encarregado de Negó­cios da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, no decurso de um Coló­quio sobre «A Construção da Europa: problemas, pensadores e políticos», que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Cer­vantes, nos dias 9 e 10 de Maio de 1996 sintetiza o que, pelos finais do século XX, era opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, tinham de prestar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro­peus, do pro­jecto de construção da unidade europeia e que, invariavelmente, con­cluíam pela enorme debilidade das diferentes lideranças europeias ou pela secundari­zação que as mesmas conferiam ao desígnio europeu e ao projecto europeu.

Afastado do poder François Mitterand – cumpridos que foram os seus dois sep­tanatos constitucionalmente admitidos e substituído por um Jacques Chirac mais virado para as contingências da política interna francesa do que sensibilizado para os desafios da integração europeia – a Europa, particularmente a da União, é atraves­sada por um sentimento geral de que, dos herdeiros dos pais fundadores da primeira geração, apenas restava no exercício do poder o chanceler alemão federal: aquele que, desde a criação da República Federal da Alemanha, por mais tempo levava no exercício do cargo e que, a seu crédito, apresentava o enorme feito de haver presidido à reunificação do seu país.

Democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio neto político de Adenauer – em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reactivar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro­peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan­çamento do projecto comunitário europeu – eram também os dois mais representati­vos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a inten­ção de pros­seguir com o projecto e de dar continuidade à actuação dos pais fundado­res de cuja tra­dição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários.

Os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes sucessos regista­dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Europeia: a concre­tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a concretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis­tência de uma moeda única europeia.

Mas seguramente não será só como um pai fundador de segunda geração que a história registará a passagem de Helmut Kohl pela liderança da potência germânica. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concre­tizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi­cação se tornou efectiva, presidirão por certo ao juízo que a história não dei­xará de efectuar sobre a acção governativa do «chanceler da reunificação».

Estes dois aspectos, todavia, não deverão ser encarados como desligados um do outro: em variados momentos o chanceler sempre proclamou que a sua visão da Europa unida andava a par da sua preocupação com a reunificação da sua pátria divi­dida. E nunca a Europa lograria encontrar a sua verdadeira unidade enquanto, no seu coração, permanecesse dividida a nação alemã. Não para restaurar qualquer «Europa alemã», mas sim em nome de uma verdadeira «Alemanha europeia».

Terá sido, seguramente, considerando estes aspectos, que o Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998, concedeu a Helmut Kohl o título de “Cidadão Hono­rário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos quinze estados membros da União Europeia tiveram oportunidade de testemunhar a vivência europeísta de Helmut Kohl, escrevendo de forma inequívoca e que dis­pensa quaisquer ulteriores considerações:

«No limiar do século XXI, ainda não passadas duas gerações sobre o fim de uma guerra de­vastadora, podem os povos do nosso continente contemplar retrospec­tiva­mente um cami­nho de sucesso sem igual na via da unificação europeia. Este mo­mento histórico em que nos encontramos, com a introdução da moeda única euro­peia, mostra-nos bem como o devir da história pode ser em muitas ocasiões decisivamente moldado pela acção empenhada de algumas pessoas. É esta uma afirmação que se pode fazer em especial acerca do Dr. Helmut Kohl e da sua acção como Chanceler da República Federal da Alemanha nos últimos 16 anos. Profundamente marcado pe­los valores tra­dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man­teve de forma inabalável e autêntica. Sobretudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco­nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato. A mesma dedicação pôs nos esforços para superar a fu­nesta divisão do nosso continente. No seu labor incansável para alcançar esses objectivos políticos, nunca se deixou desen­corajar pelos reveses, dúvidas e resistên­cias. As suas qualidades de fiabi­lidade, probidade, constância, cordialidade e sensibi­lidade fize­ram do Dr. Helmut Kohl para nós, seus colegas, um exemplo pessoal de um político que foi coroado de êxitos mas sempre se manteve humano. É também nestes traços de carácter que reside o segredo da sua grande obra em prol da Europa e da integração europeia. A realização da unidade alemã e a consolidação da unificação europeia, que culminou na união económica e monetária, são a obra da vida de Hel­mut Kohl. Por este labor de toda uma vida, nós, os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e o Presidente da Comissão Europeia, lhe exprimimos o nosso sin­cero agradecimento e a nossa profunda admiração. Por todas estas razões, o Conse­lho Europeu de Viena decidiu conferir ao Dr.Helmut Kohl, antigo Chanceler Federal, Membro do Bundestag Alemão, o título de “Cidadão Honorário da Europa”».

O discurso de Tony Blair no Parlamento Europeu

[Chicago, Illinois, EUA] O discurso de Tony Blair no Parlamento Europeu, para apresentar o programa da próxima presidência britânica da União Europeia, permitiu evidenciar, mais uma vez, o clima de crise política e económico-financeira que atravessa a Europa da União. A que se soma agora – e a alocução evidenciou-o de forma clara – um dispensável e de todo indesejável clima de crispação pessoal entre alguns dos líderes europeus.
A partir de Chicago (Illinois, EUA) e aproveitando as maravilhas do progresso técnico, tive­mos oportunidade de produzir um primeiro comentário sobre o discurso de Mr Blair aos microfones da TSF poucos minutos depois de o mesmo ter terminado – comentário que aqui agora se reproduz de forma desenvolvida.
A primeira reflexão que se impõe fazer é que Tony Blair se viu na contingência de ter de fazer uma profissão de fé no ideal europeu e declarar-se um “apaixonado” pela Europa e pela União Europeia – talvez venha a propósito, aqui, agora, recordar que a paixão é um estado de alma passageiro e transitório, que na maior parte das vezes vai com a mesma rapidez com que vem… O primeiro-ministro britânico, que saiu da última cimeira europeia com o anátema da responsabilidade pelo fracasso da mesma no plano das perspectivas financeiras, escolheu claramente a sede parlamentar da União para se defender dos ata­ques e das pressões sofridas em público (e presume-se que em privado, durante os traba­lhos do Conselho Europeu) – e esse caminho não beneficia o clima institucional no quadro da União Europeia, pois o Parlamento Europeu não deve servir de contrapeso ao Conselho nem de caixa de ressonância de problemas deixados em aberto e por resolver na sede intergovernamental.
Por outro lado, perpassou por quase todo o discurso de Blair a sombra do Presidente fran­cês Jacques Chirac. Sem nunca ter citado ou mencionado o chefe de Estado francês, foi para Paris e para o Palácio do Eliseu que a maior parte dos recados deixados por Blair se dirigiram. E não foram recados meigos ou simpáticos. Desde logo quando afirmou taxativa­mente que a crise europeia não é institucional mas é de lideranças, recordando (bem) que não foram artigos concretos do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa que foram derrotados nos referendos – mas sim políticas concretas personificadas e interpreta­das por líderes concretos. Era impossível Blair ser mais directo em mensagem dirigida ao Eliseu. Pena foi não ter explicado se manteria a sua tese se, como todos os estudos de opi­nião deixavam perceber, idêntico referendo se realizasse no Reino Unido e o “não” também obtivesse vantagem. Mas nesse capítulo, convenhamos, franceses e holandeses facilitaram-lhe a vida, dispensando-o, pelo menos para já, de realizar a prometida consulta ao eleito­rado o qual, por sua vez, já lhe havia prometido resultado nada favorável.
Mas houve outras mensagens com o mesmo destinatário: a afirmação de que foi ele, Blair, o primeiro líder britânico a admitir colocar em cima da mesa, para ser negociado, o famoso “cheque britânico”, contrariamente ao que a delegação francesa ao Conselho Europeu divulgou até à exaustão (embora Blair não tenha dito, e teria sido útil dizê-lo, como e em que termos se dispôs a negociar o famoso “cheque”); a afirmação que nunca pretendeu discutir o custo da agricultura francesa para o orçamento agrícola comum como “moeda de troca” para a diminuição do mesmo “cheque” que Londres recebe desde 1984 e que foi concebido, justamente, como contrapartida dada ao Reino Unido pelo peso na política agrícola comum da agricultura francesa; e – sobretudo – a afirmação de que, apesar da crise que atravessa, a Europa da União não pode nem deve travar os projectos e processos de alargamento em curso – todo o contrário, recorde-se, da primeira declaração tornada pública por Chirac, no primeiro dia do último Conselho Europeu, quando preconizou que os novos alargamentos deveriam ser seriamente repensados, face à crise resultante da não aprovação do tratado constitucional europeu. Com tanta resposta directamente endereçada a Chirac, este foi o verdadeiro “ausente-presente” ao longo de todo o discurso de Blair. O que revela de forma insofismável que o relacionamento pessoal entre ambos deixa muito a desejar. E a questão apenas é politicamente relevante porquanto quem se detiver um pouco a ler algumas bio­grafias de antigos estadistas europeus dos anos oitenta ou noventa aperceber-se-á do quão importante é o bom relacionamento pessoal entre os membros do Conselho Europeu para garantir o sucesso dos seus trabalhos. Na monografia que dedicámos ao estudo da institui­ção (João Pedro Simões Dias, O Conselho Europeu, estudo de direito comunitário institu­cional, Editora Quarteto, Coimbra, 2002) pudemos evidenciar de forma particular esse aspecto. Inexistindo esse bom relacionamento, está aberto o caminho para o inêxito e para o insucesso. A cimeira da passada semana comprovou-o em absoluto – se necessário fosse ou dúvidas existissem na matéria.
Outro ponto a merecer destaque neste “discurso da paixão” de Blair – a afirmação de que não pretende concentrar os esforços da sua presidência apenas na dimensão comercial da União, porquanto não vê esta apenas como um amplo espaço de livre comércio intraeuro­peu, antes lhe reconhece, também, uma efectiva dimensão política objectivada nos vectores da segurança, do combate à criminalidade e ao terrorismo, eventualmente na justiça. Ao mesmo tempo, porém, uma fortíssima crítica era desferida ao modelo social europeu – res­ponsável, entre outras coisas, por um passivo social que conta com mais de 20 milhões de desempregados. pena que o líder britânico – que nesta Europa de crise de lideranças, como o próprio reconheceu, é dos poucos que podem aspirar ao verdadeiro estatuto de estadista na esteira dos que lideraram a União nos anos oitenta e noventa – não tenha ido mais além, explicitando o seu pensamento e as suas propostas em matéria social.
Em todo o caso, este “discurso da paixão” – que teve tanto de justificativo quanto de omisso relativamente a questões nucleares com que se debate actualmente a União – não pode ser visto como um estimulante suficientemente forte para afastar as sombrias núvens outonais que perpassam sobre este projecto comunitário que envolve 25 Estados europeus. Resta esperar que a prática revele maior arte e não menor empenho do governo de Londres na forma como se propõe enfrentar os desafios que terá pela frente.