Helmut Kohl, Cidadão Honorário da Europa. In memoriam.

No final da passada semana faleceu Helmut Kohl, o chanceler que, ao longo de 16 anos, liderou primeiro a República Federal da Alemanha e, posteriormente, a Alema­ nha reunificada no pós segunda guerra mundial – e que terá sido o último crente e eu­ ropeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governaram a Europa, se­ gundo opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, têm de pres­ tar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro­ peus e do projeto de cons­ trução da unidade europeia.

Ideologicamente, foi um democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio como um neto político de Adenauer. Em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reativar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro­ peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan­ çamento do projeto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projeto e de dar continuidade à atuação dos pais fundado­ res de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários. Com Mitterrand comungou a convicção de que “o nacionalismo significa guerra”. Contra esse mesmo nacionalismo, lutaram em conjunto e de forma solidária.

No plano da política interna alemã, Kohl chegou à chancelaria de Bona em 1982, atra­ vés de uma moção de censura construtiva que derrubou o governo de Helmut Sch­ midt, quando convenceu os liberais do FDP a abandonarem a sua coligação com os sociais-democratas do SPD, passando a aliar-se aos democratas-cristãos da CDU, que Kohl liderava. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi­ cação se tornou efetiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efetuar sobre a ação governativa do «chanceler da reunifica­ ção». No mais completo isolamento, elaborou pessoalmente um documento de “Dez pontos para a reunificação alemã” que muito irritou os seus aliados, sobretudo Mitterrand e Thatcher, tementes do renascimento de uma grande Alemanha no centro da Europa. Apenas George Bush, do outro lado do Atlântico, o apoiou sem reservas, tranquilizando e garantindo a Gorbachov que a reunificação iria andar a par da integração política da Europa. E assim se faria. O início da conferência intergovernamental para a união política que conduziria ao Tratado de Maastricht e da conferência intergoverna­ mental para a união económica e monetária arrancariam a par do processo de reunificação da Alemanha. Com a realização desta, cumpriase o desígnio de uma vida política: ver a sua pátria reunificada e integrada numa Europa unida. Como não se cansava de repetir, a unificação alemã tinha de ser feita no quadro da unificação europeia. Kohl anunciava uma “Alemanha europeia e não uma Europa alemã”.

No plano europeu, os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes e últimos sucessos regista­ dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Eu­ ropeia: a concre­ tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a con­ cretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis­ tência de uma moeda única europeia. O seu empenho nesta causa europeia foi determinante para que, em Dezembro de 1998, o Conselho Europeu reunido em Viena lhe viesse a atribuir o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos, então, quinze Estados membros da União Europeia, assinalaram e condecoraram uma vida “que pe­ los valores tra­ dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man­ teve de forma inabalável e autêntica. Sobre­ tudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco­ nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato”.

Os últimos anos da sua vida foram marcados e vividos com uma indisfarçável tristeza, sobretudo perante o rumo que via a “sua” Europa tomar. E também por muitas das opções que a chanceler Angela Merkel ia tomando. A ponto de ter chegado a afirmar que Merkel estava “a dar cabo da sua Europa”. Foi um profundo juízo crítico sobre a obra e a atuação da sua sucessora – certamente não desligado do comportamento in­ fame e ignóbil que Merkel assumiu perante Kohl no momento em que este conheceu o período mais negro da sua vida política quando, para honrar a sua palavra, se recusou a divulgar as fontes de financiamento do seu Partido. Nesse momento de provação e de violentos ataques, Merkel deixou cair quem a promoveu, quem lhe havia dado a mão, quem a havia guindado ao poder. Kohl nunca esqueceu e nunca escondeu a amargura. Morreu na passada sexta-feira, amargurado, mas com o seu lugar na Histó­ ria garantido.

Helmut Kohl. In memoriam.

Morreu Helmut Kohl. A notícia acaba de ser divulgada há escassos minutos e, de imediato, apeteceu-me regressar ao que sobre ele tive oportunidade de escrever em texto já publicado. São essas linhas que aqui ficam:

«Não considerarão muitos o chanceler federal alemão [Helmut Kohl] o último crente e europeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governam hoje a Europa?» – a questão, perturbadora mas lúcida, colocada pelo Encarregado de Negó­cios da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, no decurso de um Coló­quio sobre «A Construção da Europa: problemas, pensadores e políticos», que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Cer­vantes, nos dias 9 e 10 de Maio de 1996 sintetiza o que, pelos finais do século XX, era opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, tinham de prestar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro­peus, do pro­jecto de construção da unidade europeia e que, invariavelmente, con­cluíam pela enorme debilidade das diferentes lideranças europeias ou pela secundari­zação que as mesmas conferiam ao desígnio europeu e ao projecto europeu.

Afastado do poder François Mitterand – cumpridos que foram os seus dois sep­tanatos constitucionalmente admitidos e substituído por um Jacques Chirac mais virado para as contingências da política interna francesa do que sensibilizado para os desafios da integração europeia – a Europa, particularmente a da União, é atraves­sada por um sentimento geral de que, dos herdeiros dos pais fundadores da primeira geração, apenas restava no exercício do poder o chanceler alemão federal: aquele que, desde a criação da República Federal da Alemanha, por mais tempo levava no exercício do cargo e que, a seu crédito, apresentava o enorme feito de haver presidido à reunificação do seu país.

Democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio neto político de Adenauer – em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reactivar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro­peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan­çamento do projecto comunitário europeu – eram também os dois mais representati­vos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a inten­ção de pros­seguir com o projecto e de dar continuidade à actuação dos pais fundado­res de cuja tra­dição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários.

Os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes sucessos regista­dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Europeia: a concre­tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a concretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis­tência de uma moeda única europeia.

Mas seguramente não será só como um pai fundador de segunda geração que a história registará a passagem de Helmut Kohl pela liderança da potência germânica. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concre­tizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi­cação se tornou efectiva, presidirão por certo ao juízo que a história não dei­xará de efectuar sobre a acção governativa do «chanceler da reunificação».

Estes dois aspectos, todavia, não deverão ser encarados como desligados um do outro: em variados momentos o chanceler sempre proclamou que a sua visão da Europa unida andava a par da sua preocupação com a reunificação da sua pátria divi­dida. E nunca a Europa lograria encontrar a sua verdadeira unidade enquanto, no seu coração, permanecesse dividida a nação alemã. Não para restaurar qualquer «Europa alemã», mas sim em nome de uma verdadeira «Alemanha europeia».

Terá sido, seguramente, considerando estes aspectos, que o Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998, concedeu a Helmut Kohl o título de “Cidadão Hono­rário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos quinze estados membros da União Europeia tiveram oportunidade de testemunhar a vivência europeísta de Helmut Kohl, escrevendo de forma inequívoca e que dis­pensa quaisquer ulteriores considerações:

«No limiar do século XXI, ainda não passadas duas gerações sobre o fim de uma guerra de­vastadora, podem os povos do nosso continente contemplar retrospec­tiva­mente um cami­nho de sucesso sem igual na via da unificação europeia. Este mo­mento histórico em que nos encontramos, com a introdução da moeda única euro­peia, mostra-nos bem como o devir da história pode ser em muitas ocasiões decisivamente moldado pela acção empenhada de algumas pessoas. É esta uma afirmação que se pode fazer em especial acerca do Dr. Helmut Kohl e da sua acção como Chanceler da República Federal da Alemanha nos últimos 16 anos. Profundamente marcado pe­los valores tra­dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man­teve de forma inabalável e autêntica. Sobretudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco­nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato. A mesma dedicação pôs nos esforços para superar a fu­nesta divisão do nosso continente. No seu labor incansável para alcançar esses objectivos políticos, nunca se deixou desen­corajar pelos reveses, dúvidas e resistên­cias. As suas qualidades de fiabi­lidade, probidade, constância, cordialidade e sensibi­lidade fize­ram do Dr. Helmut Kohl para nós, seus colegas, um exemplo pessoal de um político que foi coroado de êxitos mas sempre se manteve humano. É também nestes traços de carácter que reside o segredo da sua grande obra em prol da Europa e da integração europeia. A realização da unidade alemã e a consolidação da unificação europeia, que culminou na união económica e monetária, são a obra da vida de Hel­mut Kohl. Por este labor de toda uma vida, nós, os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e o Presidente da Comissão Europeia, lhe exprimimos o nosso sin­cero agradecimento e a nossa profunda admiração. Por todas estas razões, o Conse­lho Europeu de Viena decidiu conferir ao Dr.Helmut Kohl, antigo Chanceler Federal, Membro do Bundestag Alemão, o título de “Cidadão Honorário da Europa”».