Dois ícones europeus.

Devido aos seus insondáveis desígnios, em pouco mais de duas semanas a Divina Providência levou-nos duas figuras de relevo na construção do projecto europeu de unificação da Europa do pós-segunda guerra mundial; duas personalidades de exceção nos respetivos países que foram, justamente, a Alemanha e a França, isto é, aqueles Estados cuja ligação o tal projecto europeu começou por afirmar que era preciso aprofundar como condição prévia à manutenção da paz no continente europeu, evitando a repetição de chacinas como aquelas que, nos 75 anos anteriores, por três vezes praticamente haviam destruído este nosso velho continente; dois exemplos de integridade cívica e moral que o foram e, decerto, continuarão a ser, não só para os seus contemporâneos como, também, para as gerações vindouras, que nas suas vidas não deixarão de identificar o exemplo a seguir e a imitar.

Helmut Kohl e Simone Veil deixaram-nos num curto intervalo de tempo, mas os exemplos das suas vidas perdurarão por muito e longo tempo para além da sua morte.

De Helmut Kohl já tudo ou quase tudo foi dito, escrito e recordado. Detenhamo-nos um pouco sobre Simone Veil, cuja vida e obra nunca tiveram a mesma repercussão e dimensão pública de Kohl, o que não significa que tenham tido menor importância.

Nascida a 13 de julho de 1927, em Nice, no seio de uma família judia e laica, foi vítima, na sua infância, dos horrores de Auschwitz. Aliás, toda a sua família foi deportada em 1944 para campos de concentração: o seu pai e o seu irmão, Jean, para a Lituânia, uma das irmãs para Ravensbruck, e ela, a sua mãe e uma segunda irmã foram deportadas para Auschwitz. Tornou-se advogada e subiu a pulso na vida política francesa, onde chegou a ser Ministra por várias vezes (com a eleição de Valéry Giscard d’Estaing para a Presidência da República francesa em 1974, foi nomeada Ministra da Saúde no governo liderado por Jacques Chirac, cargo que conservou nos governos seguintes de Raymond Barre até julho de 1979).

Após os primeiros passos do projecto europeu do pós-segunda guerra mundial, empenha-se activamente na causa do europeísmo militante. Tornou-se deputada ao Parlamento Europeu em 1979 presidindo a esta instituição entre 1979 e 1982 (foi a primeira mulher a presidir à Assembleia de Estrasburgo). Entre 1984 e 1989 liderou o Grupo Liberal e Democrático do mesmo Parlamento. Ficaram célebres as suas expressões em que afirmava ser uma optimista mas, desde 1945, já não ter ilusões. Ou aqueloutra onde afirmava que “o facto de ter feito a Europa reconciliou-me com o século XX”. Foi uma protagonista de excepção desta causa europeia, à qual emprestou a sua credibilidade e a sua honorabilidade.

Terminada a sua passagem pelas instituições europeias, voltou à vida política ativa na sua pátria – em Março de 1993, com Jacques Chirac na Presidência da República, foi nomeada Ministra de Estado, Ministra dos Assuntos Sociais e da Cidade no governo liderado por Édouard Balladur, cargo que desempenhou até Julho de 1995). Em 1998 foi nomeada membro do Conselho Constitucional de França onde permaneceu até 2007, ano em que terminou seu mandato, abandonando as suas funções públicas com o apoio à eleição presidencial de Nicolas Sarkozy.

A consagração do se percurso de vida, tanto no plano político como nos planos académico e cultural, é coroada em 2008 com a sua eleição para a Academia Francesa, tornando-se a sexagésima mulher a pertencer à instituição.

A sua voz tornou-se, gradualmente, uma das mais escutadas, em França e na Europa, sendo-lhe reconhecida, unanimemente, uma enorme integridade moral e uma profunda auctoritas. Poderíamos aplicar-lhe, na íntegra, a velha figura de retórica regularmente utilizada pelo Professor Adriano Moreira: a Europa acaba de perder uma daquelas raras vozes encantatórias, destinadas a falarem ao ouvido dos príncipes. E com isto a Europa acaba de ficar mais pobre; e todos nós com ela.

Ficámos, aliás, duplamente mais pobres – com a perda de Helmut Kohl e de Simone Veil são dois dos símbolos da construção do ideal europeu que nos deixam, não se vislumbrando, de momento, que possa ser o legatário dos seus exemplos, dos seus valores e das suas convicções. Ambos personificaram estadistas e valores europeus, coisa que, infelizmente, nos nossos dias, vai rareando e escasseando.

Louvemo-nos nestes dois exemplos que nos foram legados e tentemos apreender o essencial do que nos deixaram. Será a melhor forma de suprirmos a perda que a sua partida nos proporcionou.

Simone Veil. In memoriam.

Faleceu hoje Simone Veil, 89 anos, voz de respeito na sociedade francesa, ícone da resistência ao nazismo e figura de referência da segunda geração dos construtores do projecto europeu.

Nascida a 13 de julho de 1927, em Nice, no seio de uma família judia e laica, foi vítima, na sua infância, dos horrores de Auschwitz. Aliás, toda a sua família foi deportada em 1944 para campos de concentração: o seu pai e o seu irmão, Jean, para a Lituânia, uma das irmãs para Ravensbruck, e ela, a sua mãe e uma segunda irmã foram deportadas para Auschwitz. Tornou-se Advogada e subiu a pulso na vida política francesa, onde chegou a ser Ministra por várias vezes (com a eleição de Valéry Giscard d’Estaing para a Presidência da República francesa em 1974, foi nomeada Ministra da Saúde no governo liderado por Jacques Chirac, cargo que conservou nos governos seguintes de Raymond Barre até julho de 1979).

Após os primeiros passos do projecto europeu do pós-segunda guerra mundial, empenha-se activamente na causa do europeísmo militante. Tornou-se deputada ao Parlamento Europeu em 1979 presidindo a esta instituição entre 1979 e 1982 (foi a primeira mulher a presidir à Assembleia de Estrasburgo). Entre 1984 e 1989 liderou o Grupo Liberal e Democrático do mesmo Parlamento. Ficaram célebres as suas expressões em que afirmava ser uma optimista mas, desde 1945, já não ter ilusões. Ou aqueloutra onde afirmava que “o facto de ter feito a Europa reconciliou-me com o século XX”. Foi uma protagonista de excepção desta causa europeia, à qual emprestou a sua credibilidade e a sua honorabilidade.

Terminada a sua passagem pelas instituições europeias, voltou à vida política ativa na sua pátria – em Março de 1993, com Jacques Chirac na Presidência da República, foi nomeada Ministra de Estado, Ministra dos Assuntos Sociais e da Cidade no governo liderado por Édouard Balladur, cargo que desempenhou até Julho de 1995). Em 1998 foi nomeada membro do Conselho Constitucional de França onde permaneceu até 2007, ano em que terminou seu mandato, abandonando as suas funções públicas com o apoio à eleição presidencial de Nicolas Sarkozy.

A consagração do se percurso de vida, tanto no plano político como nos planos académico e cultural, é coroada em 2008 com a sua eleição para a Academia Francesa, tornando-se a sexagésima mulher a pertencer à instituição.

A sua voz tornou-se, gradualmente, uma das mais escutadas, em França e na Europa, sendo-lhe reconhecida, unanimemente, uma enorme integridade moral e uma profunda auctoritas. Poderíamos aplicar-lhe, na íntegra, a velha figura de retórica regularmente utilizada pelo Professor Adriano Moreira: a Europa acaba de perder uma daquelas raras vozes encantatórias, destinadas a falarem ao ouvido dos príncipes. E com isto a Europa acaba de ficar mais pobre; e todos nós com ela. Que descanse em paz.

O fim da ordem internacional ocidental

Foi no final da passada semana que, na habitual Conferência sobre Segurança que costuma reunir anualmente em Munique os principais líderes mundiais com a comunidade académica e científica transatlântica, o ministro dos negócios estrangeiros russo, Sergei Lavrov, pediu o fim da ordem mundial dominada pelo Ocidente e afirmou que Moscovo pretende estabelecer uma relação “pragmática” com os EUA. O governante russo adiantou que o tempo em que o Ocidente disparava acabou e, considerando a NATO como uma relíquia da Guerra Fria, afirmou: “Espero que o mundo venha a escolher uma ordem mundial democrática – uma ordem pós-Ocidente – em que cada país é definido pela sua própria soberania”. Esta intervenção teve a particularidade de se seguir à do Vice-Presidente norte-americano, Mike Pence que, falando em nome do Presidente Donald Truman, reiterou a fidelidade e o empenho dos EUA na Aliança Atlântica desde que, não se esqueceu de o reafirmar, os restantes Estados-membros suportem a respectiva quota-parte nas despesas da organização.
Historicamente este desejo de Moscovo ver surgir uma ordem internacional pós-ocidental – que talvez melhor se apelidasse de uma ordem internacional pós-NATO – não constitui em si mesmo nenhuma novidade. É um tema recorrente no discurso internacional de Moscovo que conheceu particular acuidade nos tempos que se seguiram à queda da União Soviética e ao desmantelamento de todas as organizações internacionais que esta patrocinava, nomeadamente o Pacto de Varsóvia. Já na altura – finais dos anos oitenta, princípios dos anos noventa do século passado – nomeadamente quando Kohl e Gorbachov discutiam o processo de reunificação da Alemanha, uma das pretensões ou exigências de Moscovo passou pelo desmantelamento da Aliança Atlântica e, depois, pela solene afirmação de que nunca permitiria que uma Alemanha reunificada integrasse a Aliança Atlântica. Sabe-se o que aconteceu: a NATO permaneceu e a Alemanha reunificada manteve a sua presença no quadro da organização. Posteriormente, poucos anos volvidos, ouviram-se semelhantes exigências aquando do processo de adesão dos Estados bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) à Aliança. Moscovo voltou a sustentar que a NATO deveria ser dissolvida e que os Estados bálticos, antigas repúblicas socialistas soviéticas integrantes da extinta URSS, nunca adeririam à organização. Sabe-se, também, o que aconteceu: não só a NATO subsistiu como, entre 1999 e 2004, acabariam por integrar a Aliança uma série de Estados que uma década antes constituíam satélites soviéticos na Europa: a Hungria, a Polónia, a República Checa, a Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Roménia, a Eslováquia e a Eslovénia. Ou seja, uma vez mais a cruzada soviético-russa contra a Aliança Atlântica havia fracassado. E percebem-se bem as razões desta obstinação soviético-russa contra a Aliança ocidental.
Tendo perdido, objetivamente, sem apelo nem agravo, a guerra-fria; tendo visto o seu império esboroar-se como um castelo de cartas com os Estados dominados e os Estados-satélites a escolherem, um após outro, o campo ocidental e livre; com o comunismo, a ideologia mater do império a ser reduzida à sua mais absoluta irrelevância, passando num ápice de ideologia temida que assustava muitos a ideologia errónea que deixou de assustar quem quer que fosse – toda esta sucessão de factos e de acontecimentos foi alcançada pelo mundo livre e ocidental sob o manto protetor da NATO, a aliança transatlântica que associava os Estados Unidos aos Estados europeus ocidentais que haviam formado a meia-Europa livre do pós-segunda guerra mundial. Nessa medida, se alguém pode, legitimamente, reivindicar o título de vencedor da guerra-fria, esse alguém foi, objetivamente, a Aliança Atlântica, fruto da visão, da estratégia, da firmeza e da determinação dos seus líderes que nunca tergiversaram nem nunca cederam ante as mais diversas manobras, infiltrações e manipulações da opinião pública ocidental (lembram-se do “antes vermelhos que mortos”?) ensaiadas por Moscovo. A eles e à geração desses líderes de referência, de ambos os lados do Atlântico, devemos hoje o facto de vivermos em liberdade e de a NATO haver ganho a guerra-fria.
Moscovo sabe disso perfeitamente e nunca lidou bem com essa evidência. Como continua a não lidar. E por isso, no momento em que os Estados Unidos, o principal membro da Aliança Atlântica e a superpotência sobrante do mundo da guerra-fria, vive um estado de transtorno geral fruto das errâncias da sua nova administração, Moscovo volta, uma vez mais, ao seu tema de estimação: é preciso que a NATO desapareça; a NATO é um resquício do mundo da guerra-fria; é preciso uma nova ordem internacional pós-ocidental, que o mesmo é dizer, pós-NATO. Ou seja, em termos muito simples, uma nova ordem internacional onde o papel liderante se transfira dos Estados Unidos para a Rússia. No fundo, foi isto que Sergei Lavrov foi defender a Munique no final da semana passada. É criticável? De forma alguma – é a Rússia a defender os seus interesses. Da mesma forma que defende os seus interesses quando interfere nas eleições norte-americanas ou quando subsidia a Frente Nacional de Le Pen com milhões de dólares. Fazendo-nos ver que estes interesses diferem em muito pouco dos que foram os interesses territorialmente expansionistas da defunta União Soviética e que coincidem ainda mais com os métodos de atuação que esta desenvolvia nos tempos da guerra-fria, comprando a fidelidade de parte das opiniões públicas ocidentais. Cabe-nos a nós, cabe ao Ocidente, cabe aos Estados ocidentais, hoje como inúmeras vezes no passado, manterem-se coesos na defesa da sua aliança transatlântica e evidenciarem que não estão interessados em viver nessa tal ordem pós-ocidental que Moscovo propugna e defende.
Não será uma tarefa fácil, tanto mais que, atualmente, as nossas lideranças ocidentais não se comparam às que outrora fizeram frente às ambições do Kremlin. A começar, obviamente, na liderança norte-americana. Mas no dia em que for admitida, ainda que no puro plano teórico, a possibilidade de se evoluir para o tal mundo pós-ocidental defendido por Moscovo, estejamos bem cientes que nada será como dantes.
E que pouco sobrará do Ocidente para contar a sua história. Putin não costuma brincar em serviço.