O dia de véspera
Não chegasse ao Presidente francês, François Hollande, ter de se defrontar com a grave crise política resultante das últimas eleições autárquicas – que levou, inclusivamente, à remodelação governamental e à substituição de Jean-Marc Ayrault por Manuel Valls como Primeiro-Ministro – onde os socialistas franceses quase foram varridos do mapa autárquico gaulês nas cidades que verdadeiramente contam (com excepção de Paris) e a extrema-direita alcançou resultados nunca antes alcançados, os mais recentes dados conhecidos da economia francesa fizeram, igualmente, soar as campainhas de alarme tanto em Paris como em Bruxelas. Com a economia a crescer 0,3% no último trimestre, mas com o desemprego acima dos 11% e o buraco fiscal por resolver, o défice de 2013 foi de 4,3% do PIB, dois pontos acima da meta decidida por Bruxelas. E segundo as previsões da Comissão Europeia, se nada for feito, a diferença será ainda maior no final deste ano. Face a este cenário macroeconómico, o Presidente francês terá solicitado mais tempo a Bruxelas para cumprir as metas do défice público – mas tanto Olli Rehn, o liberal finlandês vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelas questões económicas, como Jeroen Dijsselbloem, o socialista holandês presidente do Eurogrupo, terão recusado liminarmente o pedido de Hollande, recordando que já tinham sido oferecidos à França dois anos para estancar o buraco fiscal e que o que agora faltava eram medidas efectivas para acelerar as reformas estruturais de que o país necessita. Em linguagem simples: enveredar pela adopção de políticas austeritárias, à semelhança das que já estão a ser impostas aos “relapsos incumpridores” do sul da Europa.
Pessoalmente, há muito tempo que sustento que essa política austeritária que os grandes da Europa e as próprias instituições europeias têm imposto aos Estados em dificuldade do Sul da Europa só mudará no dia em que essas mesmas grandes economias da Europa começarem a “provar do seu próprio veneno”, tendo de enveredar por políticas igualmente austeritárias e recessivas. Porque não creio ser possível existirem ilhas de progresso em oceanos de pobreza, ou algumas poucas economias europeias pujantes numa Europa em crise ou recessão económica e social, acredito que nesse dia o apelo aos valores europeus, da solidariedade, da partilha, da coesão, falem mais alto, se façam ouvir e se traduzam na adopção de medidas concretas que dêem forma e corpo a esses princípios. No fundo – quando a política voltar a prevalecer sobre a economia, os valores e os princípios voltarem a sobrepor-se às folhas de excel. Quando a Europa, e sobretudo a da União, voltar a ter líderes e lideranças do jaez das que já conheceu e que lhe abriu as portas do sonho, da ousadia, da própria utopia.
Mas para isso acontecer será inevitável que, antes, os ditos grandes tenham de sofrer na pele um pouco do que tem sido imposto – do que têm imposto e ajudado a impor – a muitos outros Estados e povos europeus. Note-se: sem que isso signifique laxismo nas contas públicas, défices orçamentais ou aumentos exponenciais de dívida pública, mas também sem uma obediência cega à teologia dos mercados e à ditadura das finanças e dos orçamentos, antes buscando uma sábia e prudente combinação de políticas que reúnam princípios e critérios de rigor e exigência com adequadas doses de estímulo ao crescimento económico e, sobretudo, de combate a esse flagelo social constituído pelo exército de desempregados que rouba a esperança a mais de 25 milhões de europeus. Sempre tendo presente que o Estado existe para as pessoas e não são estas que devem estar ao serviço do Estado. A França parece ser a primeira grande economia europeia a ter de se defrontar com esse problema.
Nessa medida, por paradoxal que possa parecer, ver um grande Estado europeu e uma grande economia europeia a atravessarem algumas dificuldades pode não ser, necessariamente, uma má notícia para a Europa. Mais: se tiver de ser o preço a pagar para a Europa da União e as suas instituições reverem práticas, políticas, objectivo e metas poderá ser, mesmo, o dia de vésperas de melhores dias para este velho continente, matriz dum ocidente sem bússola, sem valores, sem rumo.