Secessionismos europeus

Vão conturbados e agitados, e não raro paradoxais, os tempos por esta Europa que teima em afirmar-se como sendo a da União, mas onde os sinais mais visíveis parece apontarem em sentido radicalmente diferente, de desunião e de crise, de marcha acentuada para o empobrecimento, de inversão do caminho da história. Esta crise que afecta o continente europeu, de resto, mais não é do que a expressão mais evidente da crise que afecta o Ocidente – de que a Europa foi durante muito tempo o rosto mais expressivo – neste tempo de “outono e falta de bússola”, para parafrasearmos o título da mais recente obra que nos é legada por Adriano Moreira. Falta de bússola que equivale a uma dramática ausência de uma escala de valores perceptível e compreen­sível e à proliferação de teses e teorias relativistas, sempre dispostas a tudo questionar e a tudo pôr em causa. Um dos mais recentes perigos com que esta Europa se está a defrontar provém dos riscos e dos perigos do fenómeno secessionista que parece querer pôr em causa a uni­dade de muitos Estados tal como os conhecemos no momento presente.
Na passada semana o Presidente da Generalitat – o governo autonómico da Catalunha –, Artur Mas, anunciou à Espanha e ao mundo que, no dia 9 de Novembro de 2014, o seu governo tenciona promover um referendo aos catalães cuja primeira pergunta será: “Quer que a Catalunha seja um Estado?”. E a que, em caso afirmativo, se seguirá uma segunda questão: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente?”. Não há memória, nos tempos recentes, de este movimento autonomista/independentista ter chegado tão longe e ter causado tamanha proporção. Decerto – as autoridades espa­nholas – com o Presidente do Governo, Mariano Rajoy, secundado pelo líder da oposi­ção, Alfredo Pérez-Rubalcaba – vieram, de imediato, declarar que o referendo não se realizaria, por evidente e flagrante violação da Constituição espanhola que defende a unidade do Estado autonómico e chega ao ponto de ficcionar a existência de uma “Na­ção espanhola”, mormente no seu artigo 2º, que tem uma redação tão abrangente quanto controversa quando afirma que “La Constitución se fundamenta en la indisolu­ble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”. A questão que merece, todavia, ficar para reflexão prende-se com as sementes que a iniciativa pode deixar e com o grau de ger­minação que podem alcançar. Mas o facto não é inédito nem original.
Três semanas antes, a 26 de novembro, em Glasgow, o líder do governo escocês, Alex Salmond, apresentou o seu livro branco sobre a independência da Escócia, tendo por referência o referendo sobre a independência do país, marcado para 18 de setembro de 2014. Alex Salmond, que é a favor do “sim” ao referendo, veio garantir que a Escócia tem “um grande potencial” enquanto país, ressalvando sempre, porém, que o mesmo teria de passar sempre por uma pertença à União Europeia. Curiosamente, ou talvez não, foi o Presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy, quem se apressou a vir de­clarar que se oporá à adesão da Escócia à União Europeia caso os escoceses optem pela independência. Como parece óbvio, dirigia-se a Glasgow mas falava para Barce­lona.
Num ponto, porém, os discursos catalão e escocês convergem – ambos anseiam por se sepa­rar dos Estados onde estão integrados explicitando, porém, a respectiva vincula­ção ao ideal e ao projecto europeu corporizado na União Europeia. Como já algumas vezes ti­vemos oportunidade de anotar, este é um dos mais fascinantes paradoxos do nosso tempo: pese embora a profundíssima crise que atravessa, seguramente a maior desde a sua fundação, o projecto comunitário continua a exercer enorme fascínio e imensa capacidade de atracão relativamente aos Estados que não o integram. E mesmo rela­tivamente àqueles que, ainda não sendo Estados, aspiram a sê-lo e veem a pertença à União Europeia como um verdadeiro seguro ou caução que assegure e mantenha essas independências ansiadas. Fenómeno, de resto, que não é novo – quando ruiu o Muro e implodiu a influência soviética no leste europeu, foi sob a protecção das organizações ocidentais (primeiro a NATO, logo depois a União Europeia) que as recém-recuperadas soberanias se quiseram acolher. As novas democracias foram protegidas mas o projecto europeu ficou imensamente debilitado.
Decerto – quem recordar o passado recente não poderá deixar de lembrar que a pró­pria União Europeia, e a esmagadora maioria dos seus Estados membros, muito por influência directa dos Estados Unidos (que na sua guerra contra o terrorismo queriam deixar transparecer que a mesma não era contra os Estados islâmicos), abriram as por­tas de par em par a este caminho perigoso quando reconheceram a independência do Kosovo, separando-o da Sérvia com base unicamente na uniformidade étnica, sem cu­rar de averiguar nem da viabilidade do novo Estado (militarmente defendido pelos norte-americanos e economicamente sustentado pela União Europeia) nem do poten­cial efeito contagio que tal independência podia suscitar.
Mas como a realidade se nos impõe, eis a Europa de 2014 confrontada, no mínimo, com duas crises secessionistas que poderão servir de rastilho para outras, semelhantes e não menos legítimas aspirações independentistas – do País Basco ao desmembra­mento da Bélgica, da Sicília à Sardenha, passando por outras incontáveis aspirações nacionalistas que se encontram adormecidas um pouco por essa Europa fora, com par­ticular ênfase nos territórios do antigo poder imperial soviético. Era, diria, o último problema com a Europa da União se deveria preocupar e confrontar nos tempos de emergência que atravessa. Paradoxalmente, porém, tudo leva a crer que será mais um dos problemas com que teremos de nos defrontar, a somar aos muitos já existentes.