by João Pedro Simões Dias | Jun 7, 2017 | Jornal Económico
Amanhã o Reino Unido vai a votos.
Na sequência do resultado do referendo sobre a permanência na União Europeia, que ditou o Brexit, e do consequente abandono do poder por parte de David Cameron, a primeira-ministra Theresa May optou por dissolver a Câmara dos Comuns para relegitimar o seu governo, reforçar a sua maioria e refrescar a sua liderança. Tudo para, em seu dizer, se encontrar em posição mais vantajosa para negociar com Bruxelas as condições de saída do Reino da União. Quando dissolveu a Câmara, as sondagens eram-lhe simpáticas: mais de vinte pontos percentuais de vantagem sobre um Partido Trabalhista anémico, radicalizado à esquerda em torno da liderança de um pouco ou nada carismático Jeremy Corbyn. May avaliou as suas possibilidades e arriscou. No entretanto, políticas internas mal percebidas ou mal explicadas, uma dose inesperada de arrogância que a levou a recusar debates eleitorais em que se fez substituir, uma colagem em muitos pontos da política externa às posições de Donald Trump e, sobretudo, a onda de ataques terroristas que teve obrigou a suspender a campanha eleitoral por duas vezes, na sequência dos ataques de Manchester e da London Bridge do passado sábado – tudo contribuiu para baralhar as opiniões e as sondagens, a ponto de, no momento em que este texto é escrito, a menos de 24 horas da abertura das urnas, os últimos números disponíveis apontem para a perda da maioria absoluta dos tories em Westminster e, necessariamente, para o surgimento de um governo mais débil, de uma maioria provavelmente só alcançada através de acordos parlamentares, ou seja, todo o contrário daquilo que Theresa May pretendia ao convocar estas eleições legislativas antecipadas.
Não seria, de resto, a primeira vez que tal sucederia. No referendo do ano passado, convocado por Cameron – e que, indiretamente, foi responsável por tudo o que se passou daí para cá em termos de estabilidade governativa britânica – a história foi a mesma: uma má avaliação do sentir e do sentimento de um povo, uma má perceção da tendência do eleitorado, que acabou por lhe custar a carreira política e mergulhar o Reino Unido no pântano de indefinição em que hoje se encontra. Theresa May que, recorde-se, no referendo do ano passado se destacou como defensora da permanência do Reino na União Europeia para, depois da queda de Cameron, acabar por aceitar liderar um governo que tinha como eixo central da sua existência fazer exatamente o oposto daquilo que ela própria defendeu e negociar com Bruxelas a saída do Reino da União, estará a ser vítima da sua própria errância política e da sua própria incoerência política. Tentou sanar ambas com o beneplácito do eleitorado e do sufrágio popular. Poderá estar a horas de ter de reconhecer ou admitir que a sua estratégia terá falhado.
Daí que, para respondermos à questão com que titulámos este texto – vai o Reino Unido mudar? – a nossa resposta só possa ser a de um receio de que, a haver mudança, a mesma seja em sentido negativo e na direção errada.
Dir-se-á – em que é que tudo isto nos toca ou nos interessa? Num mundo cada vez mais globalizado, toca-nos e interessa-nos de sobremaneira. Nós não votamos no Reino Unido nem escolhemos deputados para Westminster. Mas não nos podemos dar ao luxo de pensar que o que por lá acontece nos é estranho, alheio ou indiferente. Estamos perante uma eleição que vai influenciar significativamente o futuro da Europa na medida em que, qualquer que venha a ser o governo saído da mesma, a sua tarefa principal continuará a ser negociar as condições do brexit; nessa medida, nunca deixaremos de ser afetados pela decisão que os britânicos vierem a tomar. Estarmos atentos ao que por lá se vai passando é o mínimo que se nos pode exigir, em nome dos nossos próprios interesses e da nossa própria condição cidadã.
by João Pedro Simões Dias | Jan 6, 2014 | Diário de Aveiro
Terminado o ano de 2013, aqui se deixa a respectiva revista europeia (de A a Z) para efeitos de memória futura e com tudo o que de subjetivo e aleatório pode envolver uma escolha e um exercício desta natureza:
Alemanha – O gigante económico da Europa da União fortaleceu, a cada dia que passou, o seu poder político. Voluntária ou involuntariamente, é a um verdadeiro processo de germanização da Europa que assistimos, mais do que a um processo de europeização da Alemanha – enquanto os seus Estados parceiros oscilam entre o medo do fortalecimento desse poder e o receio de perderem o apoio que a Alemanha lhes pode dispensar. Contradição que 2013 não contribuiu em nada para resolver. Bem pelo contrário.
Barroso (José Manuel Durão) – Depois de um início de segundo mandato à frente da Comissão Europeia em que foi completamente ultrapassado pela lógica intergovernamental imposta pela Alemanha à União Europeia, recuperou algum protagonismo directamente proporcional à aproximação do fim do seu mandato. Se o sonho comanda a vida, o sonho de um inédito terceiro mandato pareceu comandar a sua actuação. Pode ter despertado tarde da sua letargia.
Chipre – Chipre constituiu o exemplo mais traumático de resgates efectuados pela troika, neste caso devido a grave crise do sector financeiro e bancário da ilha. Não pelo valor do empréstimo concedido mas pelas condicionantes impostas pelos credores, que obrigaram depositantes nos bancos a suportarem parte dos custos da respectiva recapitalização. Pela primeira vez na história da UE ultrapassou-se uma linha vermelha e abriu-se um precedente perigoso – os depósitos bancários passaram a poder ser confiscados para contribuir para pagar erros de gestão bancária. O Parlamento de Nicósia ainda ensaiou opor-se à medida, mas a força da realidade acabou por se impor.
Dijsselbloem (Jeroen) – O socialista holandês que sucedeu a Junker na presidência do Eurogrupo e que, não raro, se tem mostrado mais ortodoxo que os ortodoxos alemães em decisões concretas que têm sido tomadas – de que, talvez, o mecanismo de gestão de falências bancárias seja o exemplo mais acabado.
Eslovénia – A Eslovénia posiciona-se como um dos mais sérios candidatos a receber novo auxílio financeiro das instituições europeias quando, na sequência dos resultados dos testes de ‘stress’ supervisionados pela UE, se constata que as necessidades de recapitalização da banca do país ascende a 4,8MM€, até junho de 2014.
Federalismo – Por oposição ao trilho intergovernamental constitucionalizado com o Tratado de Lisboa, é cada vez mais o caminho alternativo que parece poder tirar a União da letargia para onde foi encaminhada. Durante muito tempo constituiu a palavra maldita e o conceito tabu do projecto europeu. Tão só porque ousaram equipará-lo a outros modelos federais existentes. Também aqui a UE deverá inovar – e optando por uma via federal será seguramente uma via original e não duplicada de qualquer outra existente. Terá como componente o necessário reforço das instituições comuns, a respectiva relegitimação democrática, a recusa do modelo do diretório, a afirmação da via supranacional e o respeito pelo princípio da subsidiariedade. Em 2013 prefigurou-se, sem complexos, como um dos (poucos) caminhos possíveis a seguir para se ultrapassar a crise que vivemos.
Grécia – Continuou a ser o país-problema da União Europeia. Com dois resgates e a caminho dum terceiro, cortes de dívida a credores particulares e enorme agitação social cabe-lhe entrar em 2014 a presidir ao Conselho da União – com a responsabilidade de demonstrar que um Estado pode estar em estado de emergência financeira sem que isso signifique que abdica das suas funções políticas no quadro da União.
Hollande (François) – Iniciou o seu mandato como a grande esperança da esquerda europeia contra o austeritarismo ortodoxo germânico e em nome das políticas de crescimento económico, como caminho que a própria Europa devia seguir; encerra 2013 com a França sujeita à mais elevada carga de austeridade fiscal da V República e os índices de popularidade mais baixos de qualquer chefe de Estado francês desde que há registos e medições dos mesmos. Pior saldo do ano – potencía o crescimento eleitoral da Frente Nacional de Marine Le Pen a patamares nunca antes vistos nem alcançados pela extrema-direita gaulesa.
Irlanda – Termina 2013 anunciando que, finalizado o seu resgate, quer ver-se livre da troika e das instituições europeias com uma “saída limpa”, sem depender dos humores dos burocratas de Bruxelas, sem segundo resgate ou, sequer, sem essa incógnita chamada programa cautelar. Decerto – os juros a dez anos na ordem dos 3%, uma almofada financeira de cerca de 25MM€ e as necessidades de financiamento garantidas até meados de 2015 ajudaram a tomar uma atitude que objectivamente espantou quase tudo e quase todos.
Junker (Jean-Claude) – O democrata-cristão decano dos líderes europeus, talvez o mais europeísta de todos eles, resto sobrante da geração de Kohl e Mitterrand, deixou de ser Presidente do Eurogrupo e Primeiro Ministro do Luxemburgo (apesar de aqui ter ganho as eleições legislativas, ainda que só com maioria relativa). Paradoxalmente, pode ser a oportunidade para um 2014 mais risonho, com a Presidência da Comissão Europeia ou a Presidência do Conselho Europeu.
Kenny (Enda) – O Taioseach (Primeiro-Ministro) irlandês viu-se catapultado para as luzes da ribalta europeia quando o plano de ajustamento que negociou e conseguiu impor à troika terminou com uma “saída limpa”, sem necessidade de qualquer programa cautelar. Com discrição mas firmeza, sem subserviências nem seguidismos provincianos, liderou um país sob resgate com prudência e bom-senso. Os resultados viram-se. Declarou prescindir de novos apoios internacionais e granjeou reputação e credibilidade suficiente para ser encarado como uma das mais fortes possibilidades para vir a suceder a Durão Barroso à frente da Comissão Europeia. Resta saber se o desejará.
Letta (Enrico) – O democrata-cristão, membro do Partido Democrático de centro-esquerda, salta para a primeira linha da política europeia ao conseguir formar governo em Itália, baseado numa coligação instável com o Povo da Liberdade de Silvio Berlusconi. Teve o difícil encargo de suceder a Mario Monti, o eurocrata que liderou o governo de Roma entre Novembro de 2011 e Abril de 2013 restituindo-lhe a credibilidade perdida sob a liderança de Berlusconi. Apostou inequivocamente na via europeia para rumo dos primeiros meses da sua governação.
Merkel (Angela) – A chanceler alemã, que traiu Helmut Kohl e desonrou o seu legado europeísta, foi uma das grandes vencedoras de 2013. A sua política ortodoxa e austeritária face ao sul da Europa em provação e de germanização da UE foi amplamente sufragada pelos seus concidadãos em eleições internas. Cada vez mais governa mais a Europa sendo escolhida apenas pelos alemães. Nem a mudança de parceiro político lhe alterou os hábitos ou fez mudar o rumo. Nos sociais-democratas do SPD encontrou aliados para a sustentação de uma política europeia que ainda acredita que podem existir ilhas de prosperidade em mares de desesperança. Quando a desesperança der à costa da ilha germânica, o rumo será alterado. Até lá, vai mandando. Bruxelas e as demais capitais europeias vão obedecendo.
NATO – Ainda não foi em 2013 que a organização de defesa militar do ocidente logrou alcançar um nível de articulação satisfatório com a União Europeia em matérias de segurança e defesa. É um daqueles casos em que a responsabilidade não pode ser assacada à organização transatlântica. Se o pilar europeu da aliança não se mostra suficientemente sensibilizado para o tema nem se consegue articular e coordenar satisfatoriamente entre si, dificilmente a União que formam se pode entender com a organização de defesa que, paradoxalmente, quase todos integram.
Orban (Viktor) – A Hungria, liderada pelo Primeiro-Ministro Viktor Órban, conseguiu saldar a dívida de 20MM€ que tinha para com o Fundo Monetário Internacional desde 2008, sete meses antes do prazo previsto. Com uma liderança frequentemente criticada pelas suas opções conservadoras, o Governo de Órban considerou que a Hungria vai conseguir financiar-se nos mercados financeiros internacionais depois do que chamou “uma luta pela liberdade de atuação do país”.
Portugal – Exemplo acabado e consumado das políticas erráticas concebidas e impostas pela troika, inicialmente acolhidas com entusiasmo por parte do governo, entusiasmo que se foi perdendo à medida que o tempo foi passando. Quem se der ao trabalho de comparar os números previstos para final de 2013 no memorando de entendimento original e aqueles que, de facto, se atingiram (em termos de défice, dívida pública e desemprego, por exemplo) tem a noção clara da errância das referidas políticas austeritárias.
Quadro financeiro 2014-2020 – O Conselho e o Parlamento Europeu puseram-se de acordo relativamente ao quadro financeiro plurianual da UE. Denotou ambição pouca e ousadia nenhuma. Com orçamentos que continuam a ser inferiores a 1% do PIB comunitário não é possível ousar sonhar qualquer aprofundamento das políticas comuns. Enquanto a UE não se dotar de meios financeiros suficientemente capazes, as suas capacidades de intervenção estão limitadas e definitivamente cerceadas.
Rompuy (Herman Van) – O Presidente permanente do Conselho Europeu pareceu ganhar algum protagonismo à medida que a crise por que passou a UE em 2013 foi abrandando e foram surgindo ligeiros sinais de retoma económica. Pese embora esse facto, continuou por se perceber a utilidade do cargo e da função. E se o hábito não faz o monge, neste caso o monge não fez nem justificou uma função que veio, inequivocamente, introduzir um elemento de confusão na estabilidade institucional da União Europeia. Terminará o seu segundo mandato em 2014.
Secessionismos e Separatismos – Constituem o pior legado que 2013 deixa a 2014: a marcação de referendos independentistas e separatistas em 2014 para a Escócia e para a Catalunha podem obrigar a União Europeia a defrontar-se com um problema novo em mais de 60 anos de projecto europeu – o da integridade territorial dos seus Estados-membros, que é como quem diz, da sua própria integridade territorial. Mais grave que isso, os referendos prometidos, a realizarem-se, podem constituir precedente sério para outras aspirações independentistas que se encontram apenas adormecidas.
Troika – Os coordenadores dos principais grupos políticos na Comissão Económica e de Assuntos Monetários do Parlamento Europeu e, posteriormente, a própria eurocâmara, decidem lançar um processo de inquérito à actuação da troika nos planos de resgate lançados nos últimos três anos. A investigação pretende apurar, ainda, a “legitimação democrática das decisões tomadas” pela troika nesses processos.
Ucrânia – Não pertencendo à União, foi o palco onde se travou a última disputa entre a UE e a Rússia sobre as respectivas esferas de influência. Contra a vontade de milhares que se manifestaram nas ruas, o governo de Kiev deu sinais de tombar para o lado de Moscovo, recusando associar-se à parceria com Bruxelas. Território de fronteira e zona de influência ambicionada tanto pela Rússia como pela União Europeia, protagonizou o reavivar dos tempos da guerra-fria, onde a influência em cada palmo de terreno geoestratégico era disputada ao milímetro. Estando fora da União, por paradoxal que pareça, a Ucrânia pode vir a determinar muito do sucesso ou insucesso da sempre anunciada e nunca concretizada política externa e de segurança comum.
Vilnius – Foi na capital da Lituânia que ocorreu um dos maiores desaires da UE em matéria de política exterior comum no ano de 2013. A Cimeira da Parceria Oriental da UE com a Ucrânia, a Geórgia, a Moldávia, a Bielorrússia, a Arménia e o Azerbaijão ficou marcada pelo desacordo entre a Ucrânia – pressionada por Moscovo para não assinar qualquer acordo com a União – e a UE. Ao não assinar o acordo que marcaria a aproximação ucraniana à UE os resultados da Cimeira restringiram-se à assinatura duma primeira versão de acordo com a Geórgia e a Moldávia e um acordo de facilitação de vistos com o Azerbaijão. Foi pouco.
Xavier (Bettel) – O Presidente da Câmara da Cidade do Luxemburgo tornou-se o improvável Primeiro-Ministro do Grã-Ducado, após a realização de eleições legislativas em que Jean-Claude Juncker, apesar de liderar o partido mais votado, não logra alcançar a maioria absoluta, deixando o poder nas mãos de uma coligação governamental formada pelo Partido Democrático, o Partido Operário Socialista e Os Verdes.
Yousafzai (Malala) – Jovem paquistanesa de 16 anos que, baleada na cabeça pelos talibãs quando regressava da escola, recebeu o “Prémio Sakharov do Parlamento Europeu para a Liberdade de Consciência” perante o plenário da eurocâmara de Estrasburgo, apelando de forma vigorosa ao direito das crianças à educação.
Wharton (James) – Deputado conservador britânico, autor de um projeto de lei aprovado pela Câmara dos Comuns – numa sessão em que a oposição trabalhista apenas participou no debate e esteve ausente da votação – destinado à realização de um referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE em 2017.
Zagreb – Foi nas ruas de Zagreb que os croatas assinalaram, em clima de festa, a 1 de Julho de 2013, a adesão do seu país à União que, assim, se tornou o 28º Estado-Membro da UE, numa altura em que esta atravessa a sua mais profunda crise desde a origem do projeto europeu.
by João Pedro Simões Dias | Jan 23, 2005 | Diário
[Chicago, Illinois, EUA] O discurso de Tony Blair no Parlamento Europeu, para apresentar o programa da próxima presidência britânica da União Europeia, permitiu evidenciar, mais uma vez, o clima de crise política e económico-financeira que atravessa a Europa da União. A que se soma agora – e a alocução evidenciou-o de forma clara – um dispensável e de todo indesejável clima de crispação pessoal entre alguns dos líderes europeus.
A partir de Chicago (Illinois, EUA) e aproveitando as maravilhas do progresso técnico, tivemos oportunidade de produzir um primeiro comentário sobre o discurso de Mr Blair aos microfones da TSF poucos minutos depois de o mesmo ter terminado – comentário que aqui agora se reproduz de forma desenvolvida.
A primeira reflexão que se impõe fazer é que Tony Blair se viu na contingência de ter de fazer uma profissão de fé no ideal europeu e declarar-se um “apaixonado” pela Europa e pela União Europeia – talvez venha a propósito, aqui, agora, recordar que a paixão é um estado de alma passageiro e transitório, que na maior parte das vezes vai com a mesma rapidez com que vem… O primeiro-ministro britânico, que saiu da última cimeira europeia com o anátema da responsabilidade pelo fracasso da mesma no plano das perspectivas financeiras, escolheu claramente a sede parlamentar da União para se defender dos ataques e das pressões sofridas em público (e presume-se que em privado, durante os trabalhos do Conselho Europeu) – e esse caminho não beneficia o clima institucional no quadro da União Europeia, pois o Parlamento Europeu não deve servir de contrapeso ao Conselho nem de caixa de ressonância de problemas deixados em aberto e por resolver na sede intergovernamental.
Por outro lado, perpassou por quase todo o discurso de Blair a sombra do Presidente francês Jacques Chirac. Sem nunca ter citado ou mencionado o chefe de Estado francês, foi para Paris e para o Palácio do Eliseu que a maior parte dos recados deixados por Blair se dirigiram. E não foram recados meigos ou simpáticos. Desde logo quando afirmou taxativamente que a crise europeia não é institucional mas é de lideranças, recordando (bem) que não foram artigos concretos do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa que foram derrotados nos referendos – mas sim políticas concretas personificadas e interpretadas por líderes concretos. Era impossível Blair ser mais directo em mensagem dirigida ao Eliseu. Pena foi não ter explicado se manteria a sua tese se, como todos os estudos de opinião deixavam perceber, idêntico referendo se realizasse no Reino Unido e o “não” também obtivesse vantagem. Mas nesse capítulo, convenhamos, franceses e holandeses facilitaram-lhe a vida, dispensando-o, pelo menos para já, de realizar a prometida consulta ao eleitorado o qual, por sua vez, já lhe havia prometido resultado nada favorável.
Mas houve outras mensagens com o mesmo destinatário: a afirmação de que foi ele, Blair, o primeiro líder britânico a admitir colocar em cima da mesa, para ser negociado, o famoso “cheque britânico”, contrariamente ao que a delegação francesa ao Conselho Europeu divulgou até à exaustão (embora Blair não tenha dito, e teria sido útil dizê-lo, como e em que termos se dispôs a negociar o famoso “cheque”); a afirmação que nunca pretendeu discutir o custo da agricultura francesa para o orçamento agrícola comum como “moeda de troca” para a diminuição do mesmo “cheque” que Londres recebe desde 1984 e que foi concebido, justamente, como contrapartida dada ao Reino Unido pelo peso na política agrícola comum da agricultura francesa; e – sobretudo – a afirmação de que, apesar da crise que atravessa, a Europa da União não pode nem deve travar os projectos e processos de alargamento em curso – todo o contrário, recorde-se, da primeira declaração tornada pública por Chirac, no primeiro dia do último Conselho Europeu, quando preconizou que os novos alargamentos deveriam ser seriamente repensados, face à crise resultante da não aprovação do tratado constitucional europeu. Com tanta resposta directamente endereçada a Chirac, este foi o verdadeiro “ausente-presente” ao longo de todo o discurso de Blair. O que revela de forma insofismável que o relacionamento pessoal entre ambos deixa muito a desejar. E a questão apenas é politicamente relevante porquanto quem se detiver um pouco a ler algumas biografias de antigos estadistas europeus dos anos oitenta ou noventa aperceber-se-á do quão importante é o bom relacionamento pessoal entre os membros do Conselho Europeu para garantir o sucesso dos seus trabalhos. Na monografia que dedicámos ao estudo da instituição (João Pedro Simões Dias, O Conselho Europeu, estudo de direito comunitário institucional, Editora Quarteto, Coimbra, 2002) pudemos evidenciar de forma particular esse aspecto. Inexistindo esse bom relacionamento, está aberto o caminho para o inêxito e para o insucesso. A cimeira da passada semana comprovou-o em absoluto – se necessário fosse ou dúvidas existissem na matéria.
Outro ponto a merecer destaque neste “discurso da paixão” de Blair – a afirmação de que não pretende concentrar os esforços da sua presidência apenas na dimensão comercial da União, porquanto não vê esta apenas como um amplo espaço de livre comércio intraeuropeu, antes lhe reconhece, também, uma efectiva dimensão política objectivada nos vectores da segurança, do combate à criminalidade e ao terrorismo, eventualmente na justiça. Ao mesmo tempo, porém, uma fortíssima crítica era desferida ao modelo social europeu – responsável, entre outras coisas, por um passivo social que conta com mais de 20 milhões de desempregados. pena que o líder britânico – que nesta Europa de crise de lideranças, como o próprio reconheceu, é dos poucos que podem aspirar ao verdadeiro estatuto de estadista na esteira dos que lideraram a União nos anos oitenta e noventa – não tenha ido mais além, explicitando o seu pensamento e as suas propostas em matéria social.
Em todo o caso, este “discurso da paixão” – que teve tanto de justificativo quanto de omisso relativamente a questões nucleares com que se debate actualmente a União – não pode ser visto como um estimulante suficientemente forte para afastar as sombrias núvens outonais que perpassam sobre este projecto comunitário que envolve 25 Estados europeus. Resta esperar que a prática revele maior arte e não menor empenho do governo de Londres na forma como se propõe enfrentar os desafios que terá pela frente.