Os muros estão de volta à Europa?

O folhetim grego, em torno de um diálogo que parece permanentemente inacabado e adiado entre a Grécia, as instituições europeias e os seus credores internacionais, tem concitado a generalidade da atenção da nossa opinião pública e publicada, a ponto de não faltar quem não seja especialista em assuntos gregos, peritos em economia internacional e europeia e outras sumidades cujas valências nestes domínios estavam absolutamente desperdiçadas e eram de todo desconhecidas. A tal ponto o assunto tem concitado as atenções gerais que, outros de extraordinária relevância, têm sido remetidos, invariavelmente, para notas de rodapé e pés de página informativos. A questão humanitária que continua a assolar a Europa é um desses assuntos.
Por tão repetidas e reiteradas, as tragédias continuam a suceder-se no Mediterrâneo que, neste início de milénio, corre o sério risco de se transformar na maior e mais trágica vala comum desta Europa dos nossos tempos. A instabilidade no norte de África teima em persistir e não pára de aumentar a busca incessante dos que preferem deixar tudo para trás em busca duma terra prometida por que anseiam neste Velho Continente. E para esta tragédia humanitária, a Europa, especialmente a da União, teima em não dar respostas nem encontrar soluções. A Itália tem sofrido a maior pressão migratória e o seu primeiro-ministro Renzi já fez o ultimato final aos seus parceiros europeus. Não, consta, porém, que tenha sido suficientemente persuasivo ou deveras convincente a ponto de levar os seus parceiros de Conselho Europeu a reverem as suas posições. E no entretanto a tragédia vai continuando. E as instituições europeias vão discutindo a melhor maneira de a evitarem. Estranho mundo este….
Na passada semana, todavia, deu-se mais um passo atrás neste processo de desconstrução europeia em curso – passo que voltou a passar despercebido à opinião pública europeia, refém da crise grega. Numa decisão inqualificável, o governo da Hungria decidiu começar a erguer um Muro ao longo dos 175 km de fronteira que separam a Hungria da Sérvia. O primeiro-ministro Viktor Orbán, pese embora o suporte popular que evidencia no seu país, não é propriamente um exemplo da democracia ocidental tal qual a concebemos nos nossos dias. Curiosa e paradoxalmente, é apontado como um servidor da extrema-direita europeia que – vão lá entender-se as razões da geopolítica que a razão tantas vezes desconhece…. – cultiva uma notória proximidade com muitas posições de Putin e da nova Rússia. Pois bem, para evitar a multiplicação da entrada de refugiados – sobretudo moldavos – através da fronteira sérvo-húngara (que este ano já ultrapassaram os 50.000 pedidos) o governo húngaro anunciou a construção de um Muro ao longo daquela fronteira para evitar as migrações terrestres! Esta decisão coloca-nos vários e diversos problemas.
Em primeiro lugar é um sintoma do estado de desunião e de degenerescência a que esta União Europeia chegou, postergando os mais elementares valores e tradições em que se fundou e com base nos quais o projeto europeu foi iniciado. Qualquer semelhança entre esta união e o projeto concebido pelos pais fundadores é, seguramente, mera coincidência; e não mais do que isso.
Em segundo lugar, uma questão profundamente simbólica. Esta Europa, alargada e por isso mesmo ingovernada, que teima em chamar-se da União, por paradoxal que pareça, alicerça-se no derrube do Muro, do Muro de Berlim, que simbolizou a reunificação alemã, mas também o reencontro da Europa consigo mesma, com a sua unidade, com a sua tradição, com a sua história. A Hungria que agora ergue muros, nunca teria ingressado na União se os muros tivessem permanecido de pé e se o Muro de Berlim não tivesse sido derrubado. É o cúmulo do paroxismo e da contradição ser essa mesma Hungria a reerguer muros nesta segunda década do século XXI.
Em terceiro lugar – a prática que agora se anuncia para além de violar princípios, valores e um verdadeiro acervo moral de que a União Europeia se fez depositária, viola também regras e princípios elementares dum direito comum e duma jurisprudência comum que, lentamente, se tem vindo a construir. O que significa que, a passar-se do anúncio à prática das medidas anunciadas, é a própria União que, violando o direito que ela própria tem vindo a construir, corre o sério risco de deixar de ser uma verdadeira comunidade de direito.
Numa União Europeia em que a política prevalecesse sobre o económico e o financeiro e que estivesse solidamente alicerçada num projeto político, estas práticas seriam, pura e simplesmente, impossíveis de acontecer. Nesta União, porém, que confere a primazia ao económico e ao financeiro, secundarizando a dimensão social e o pilar político, e que é servido não por estadistas mas por governantes, parece que tudo é possível, parece que tudo é admissível. Estranha-se, apenas, que haja quem proclame a sua surpresa pela emergência, um pouco por toda a Europa da União, dos extremismos que, no limite, questionam esse mesmo projeto europeu.
Esses radicalismos extremistas, de esquerda e de direita, que dividem e pulverizam os partidos tradicionais nos diferentes Estados europeus, não constituem causa do estado a que a União chegou. Constituem consequência desse mesmo estado. Quem não perceber esta diferença, dificilmente perceberá os dias que se vivem na União Europeia. A começar pela situação grega e a acabar no novo muro da vergonha que para vergonha de todos nós leva no frontispício o nome do Sr Viktor Orbán.

Secessionismos europeus

Vão conturbados e agitados, e não raro paradoxais, os tempos por esta Europa que teima em afirmar-se como sendo a da União, mas onde os sinais mais visíveis parece apontarem em sentido radicalmente diferente, de desunião e de crise, de marcha acentuada para o empobrecimento, de inversão do caminho da história. Esta crise que afecta o continente europeu, de resto, mais não é do que a expressão mais evidente da crise que afecta o Ocidente – de que a Europa foi durante muito tempo o rosto mais expressivo – neste tempo de “outono e falta de bússola”, para parafrasearmos o título da mais recente obra que nos é legada por Adriano Moreira. Falta de bússola que equivale a uma dramática ausência de uma escala de valores perceptível e compreen­sível e à proliferação de teses e teorias relativistas, sempre dispostas a tudo questionar e a tudo pôr em causa. Um dos mais recentes perigos com que esta Europa se está a defrontar provém dos riscos e dos perigos do fenómeno secessionista que parece querer pôr em causa a uni­dade de muitos Estados tal como os conhecemos no momento presente.
Na passada semana o Presidente da Generalitat – o governo autonómico da Catalunha –, Artur Mas, anunciou à Espanha e ao mundo que, no dia 9 de Novembro de 2014, o seu governo tenciona promover um referendo aos catalães cuja primeira pergunta será: “Quer que a Catalunha seja um Estado?”. E a que, em caso afirmativo, se seguirá uma segunda questão: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente?”. Não há memória, nos tempos recentes, de este movimento autonomista/independentista ter chegado tão longe e ter causado tamanha proporção. Decerto – as autoridades espa­nholas – com o Presidente do Governo, Mariano Rajoy, secundado pelo líder da oposi­ção, Alfredo Pérez-Rubalcaba – vieram, de imediato, declarar que o referendo não se realizaria, por evidente e flagrante violação da Constituição espanhola que defende a unidade do Estado autonómico e chega ao ponto de ficcionar a existência de uma “Na­ção espanhola”, mormente no seu artigo 2º, que tem uma redação tão abrangente quanto controversa quando afirma que “La Constitución se fundamenta en la indisolu­ble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas”. A questão que merece, todavia, ficar para reflexão prende-se com as sementes que a iniciativa pode deixar e com o grau de ger­minação que podem alcançar. Mas o facto não é inédito nem original.
Três semanas antes, a 26 de novembro, em Glasgow, o líder do governo escocês, Alex Salmond, apresentou o seu livro branco sobre a independência da Escócia, tendo por referência o referendo sobre a independência do país, marcado para 18 de setembro de 2014. Alex Salmond, que é a favor do “sim” ao referendo, veio garantir que a Escócia tem “um grande potencial” enquanto país, ressalvando sempre, porém, que o mesmo teria de passar sempre por uma pertença à União Europeia. Curiosamente, ou talvez não, foi o Presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy, quem se apressou a vir de­clarar que se oporá à adesão da Escócia à União Europeia caso os escoceses optem pela independência. Como parece óbvio, dirigia-se a Glasgow mas falava para Barce­lona.
Num ponto, porém, os discursos catalão e escocês convergem – ambos anseiam por se sepa­rar dos Estados onde estão integrados explicitando, porém, a respectiva vincula­ção ao ideal e ao projecto europeu corporizado na União Europeia. Como já algumas vezes ti­vemos oportunidade de anotar, este é um dos mais fascinantes paradoxos do nosso tempo: pese embora a profundíssima crise que atravessa, seguramente a maior desde a sua fundação, o projecto comunitário continua a exercer enorme fascínio e imensa capacidade de atracão relativamente aos Estados que não o integram. E mesmo rela­tivamente àqueles que, ainda não sendo Estados, aspiram a sê-lo e veem a pertença à União Europeia como um verdadeiro seguro ou caução que assegure e mantenha essas independências ansiadas. Fenómeno, de resto, que não é novo – quando ruiu o Muro e implodiu a influência soviética no leste europeu, foi sob a protecção das organizações ocidentais (primeiro a NATO, logo depois a União Europeia) que as recém-recuperadas soberanias se quiseram acolher. As novas democracias foram protegidas mas o projecto europeu ficou imensamente debilitado.
Decerto – quem recordar o passado recente não poderá deixar de lembrar que a pró­pria União Europeia, e a esmagadora maioria dos seus Estados membros, muito por influência directa dos Estados Unidos (que na sua guerra contra o terrorismo queriam deixar transparecer que a mesma não era contra os Estados islâmicos), abriram as por­tas de par em par a este caminho perigoso quando reconheceram a independência do Kosovo, separando-o da Sérvia com base unicamente na uniformidade étnica, sem cu­rar de averiguar nem da viabilidade do novo Estado (militarmente defendido pelos norte-americanos e economicamente sustentado pela União Europeia) nem do poten­cial efeito contagio que tal independência podia suscitar.
Mas como a realidade se nos impõe, eis a Europa de 2014 confrontada, no mínimo, com duas crises secessionistas que poderão servir de rastilho para outras, semelhantes e não menos legítimas aspirações independentistas – do País Basco ao desmembra­mento da Bélgica, da Sicília à Sardenha, passando por outras incontáveis aspirações nacionalistas que se encontram adormecidas um pouco por essa Europa fora, com par­ticular ênfase nos territórios do antigo poder imperial soviético. Era, diria, o último problema com a Europa da União se deveria preocupar e confrontar nos tempos de emergência que atravessa. Paradoxalmente, porém, tudo leva a crer que será mais um dos problemas com que teremos de nos defrontar, a somar aos muitos já existentes.