by João Pedro Simões Dias | Jun 21, 2017 | Diário de Aveiro
No final da passada semana faleceu Helmut Kohl, o chanceler que, ao longo de 16 anos, liderou primeiro a República Federal da Alemanha e, posteriormente, a Alema nha reunificada no pós segunda guerra mundial – e que terá sido o último crente e eu ropeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governaram a Europa, se gundo opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, têm de pres tar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro peus e do projeto de cons trução da unidade europeia.
Ideologicamente, foi um democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio como um neto político de Adenauer. Em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reativar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan çamento do projeto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projeto e de dar continuidade à atuação dos pais fundado res de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários. Com Mitterrand comungou a convicção de que “o nacionalismo significa guerra”. Contra esse mesmo nacionalismo, lutaram em conjunto e de forma solidária.
No plano da política interna alemã, Kohl chegou à chancelaria de Bona em 1982, atra vés de uma moção de censura construtiva que derrubou o governo de Helmut Sch midt, quando convenceu os liberais do FDP a abandonarem a sua coligação com os sociais-democratas do SPD, passando a aliar-se aos democratas-cristãos da CDU, que Kohl liderava. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi cação se tornou efetiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efetuar sobre a ação governativa do «chanceler da reunifica ção». No mais completo isolamento, elaborou pessoalmente um documento de “Dez pontos para a reunificação alemã” que muito irritou os seus aliados, sobretudo Mitterrand e Thatcher, tementes do renascimento de uma grande Alemanha no centro da Europa. Apenas George Bush, do outro lado do Atlântico, o apoiou sem reservas, tranquilizando e garantindo a Gorbachov que a reunificação iria andar a par da integração política da Europa. E assim se faria. O início da conferência intergovernamental para a união política que conduziria ao Tratado de Maastricht e da conferência intergoverna mental para a união económica e monetária arrancariam a par do processo de reunificação da Alemanha. Com a realização desta, cumpriase o desígnio de uma vida política: ver a sua pátria reunificada e integrada numa Europa unida. Como não se cansava de repetir, a unificação alemã tinha de ser feita no quadro da unificação europeia. Kohl anunciava uma “Alemanha europeia e não uma Europa alemã”.
No plano europeu, os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes e últimos sucessos regista dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Eu ropeia: a concre tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a con cretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis tência de uma moeda única europeia. O seu empenho nesta causa europeia foi determinante para que, em Dezembro de 1998, o Conselho Europeu reunido em Viena lhe viesse a atribuir o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos, então, quinze Estados membros da União Europeia, assinalaram e condecoraram uma vida “que pe los valores tra dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man teve de forma inabalável e autêntica. Sobre tudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato”.
Os últimos anos da sua vida foram marcados e vividos com uma indisfarçável tristeza, sobretudo perante o rumo que via a “sua” Europa tomar. E também por muitas das opções que a chanceler Angela Merkel ia tomando. A ponto de ter chegado a afirmar que Merkel estava “a dar cabo da sua Europa”. Foi um profundo juízo crítico sobre a obra e a atuação da sua sucessora – certamente não desligado do comportamento in fame e ignóbil que Merkel assumiu perante Kohl no momento em que este conheceu o período mais negro da sua vida política quando, para honrar a sua palavra, se recusou a divulgar as fontes de financiamento do seu Partido. Nesse momento de provação e de violentos ataques, Merkel deixou cair quem a promoveu, quem lhe havia dado a mão, quem a havia guindado ao poder. Kohl nunca esqueceu e nunca escondeu a amargura. Morreu na passada sexta-feira, amargurado, mas com o seu lugar na Histó ria garantido.
by João Pedro Simões Dias | Jun 16, 2017 | Diário
Morreu Helmut Kohl. A notícia acaba de ser divulgada há escassos minutos e, de imediato, apeteceu-me regressar ao que sobre ele tive oportunidade de escrever em texto já publicado. São essas linhas que aqui ficam:
«Não considerarão muitos o chanceler federal alemão [Helmut Kohl] o último crente e europeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governam hoje a Europa?» – a questão, perturbadora mas lúcida, colocada pelo Encarregado de Negócios da Embaixada da República Federal da Alemanha em Lisboa, no decurso de um Colóquio sobre «A Construção da Europa: problemas, pensadores e políticos», que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e no Instituto Cervantes, nos dias 9 e 10 de Maio de 1996 sintetiza o que, pelos finais do século XX, era opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, tinham de prestar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos europeus, do projecto de construção da unidade europeia e que, invariavelmente, concluíam pela enorme debilidade das diferentes lideranças europeias ou pela secundarização que as mesmas conferiam ao desígnio europeu e ao projecto europeu.
Afastado do poder François Mitterand – cumpridos que foram os seus dois septanatos constitucionalmente admitidos e substituído por um Jacques Chirac mais virado para as contingências da política interna francesa do que sensibilizado para os desafios da integração europeia – a Europa, particularmente a da União, é atravessada por um sentimento geral de que, dos herdeiros dos pais fundadores da primeira geração, apenas restava no exercício do poder o chanceler alemão federal: aquele que, desde a criação da República Federal da Alemanha, por mais tempo levava no exercício do cargo e que, a seu crédito, apresentava o enorme feito de haver presidido à reunificação do seu país.
Democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio neto político de Adenauer – em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reactivar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Europeia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relançamento do projecto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projecto e de dar continuidade à actuação dos pais fundadores de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários.
Os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes sucessos registados pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Europeia: a concretização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a concretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a existência de uma moeda única europeia.
Mas seguramente não será só como um pai fundador de segunda geração que a história registará a passagem de Helmut Kohl pela liderança da potência germânica. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunificação se tornou efectiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efectuar sobre a acção governativa do «chanceler da reunificação».
Estes dois aspectos, todavia, não deverão ser encarados como desligados um do outro: em variados momentos o chanceler sempre proclamou que a sua visão da Europa unida andava a par da sua preocupação com a reunificação da sua pátria dividida. E nunca a Europa lograria encontrar a sua verdadeira unidade enquanto, no seu coração, permanecesse dividida a nação alemã. Não para restaurar qualquer «Europa alemã», mas sim em nome de uma verdadeira «Alemanha europeia».
Terá sido, seguramente, considerando estes aspectos, que o Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998, concedeu a Helmut Kohl o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos quinze estados membros da União Europeia tiveram oportunidade de testemunhar a vivência europeísta de Helmut Kohl, escrevendo de forma inequívoca e que dispensa quaisquer ulteriores considerações:
«No limiar do século XXI, ainda não passadas duas gerações sobre o fim de uma guerra devastadora, podem os povos do nosso continente contemplar retrospectivamente um caminho de sucesso sem igual na via da unificação europeia. Este momento histórico em que nos encontramos, com a introdução da moeda única europeia, mostra-nos bem como o devir da história pode ser em muitas ocasiões decisivamente moldado pela acção empenhada de algumas pessoas. É esta uma afirmação que se pode fazer em especial acerca do Dr. Helmut Kohl e da sua acção como Chanceler da República Federal da Alemanha nos últimos 16 anos. Profundamente marcado pelos valores tradicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre manteve de forma inabalável e autêntica. Sobretudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união económica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato. A mesma dedicação pôs nos esforços para superar a funesta divisão do nosso continente. No seu labor incansável para alcançar esses objectivos políticos, nunca se deixou desencorajar pelos reveses, dúvidas e resistências. As suas qualidades de fiabilidade, probidade, constância, cordialidade e sensibilidade fizeram do Dr. Helmut Kohl para nós, seus colegas, um exemplo pessoal de um político que foi coroado de êxitos mas sempre se manteve humano. É também nestes traços de carácter que reside o segredo da sua grande obra em prol da Europa e da integração europeia. A realização da unidade alemã e a consolidação da unificação europeia, que culminou na união económica e monetária, são a obra da vida de Helmut Kohl. Por este labor de toda uma vida, nós, os Chefes de Estado e de Governo da União Europeia e o Presidente da Comissão Europeia, lhe exprimimos o nosso sincero agradecimento e a nossa profunda admiração. Por todas estas razões, o Conselho Europeu de Viena decidiu conferir ao Dr.Helmut Kohl, antigo Chanceler Federal, Membro do Bundestag Alemão, o título de “Cidadão Honorário da Europa”».
by João Pedro Simões Dias | Jun 12, 2015 | Diário de Aveiro
1. A adesão de Portugal às Comunidades Europeias
Completam-se hoje, 12 de junho, trinta anos sobre a data em que Portugal assinou, no Mosteiro dos Jerónimos, o seu Tratado de Adesão às, então, Comunidades Europeias. Poucas horas depois, em Madrid, repetir-se-ia o ato com a assinatura do Tratado de Adesão espanhol. Culminando oito anos de intensas e difíceis negociações, iniciadas em 1977 sob os auspícios do primeiro-ministro Mário Soares e do ministro dos negócios estrangeiros Medeiros Ferreira, naquele 12 de Junho de 1985 as Comunidades Europeias davam o primeiro passo para deixarem de ter 10 membros e passarem a constituir, a partir de 1 de janeiro seguinte, a “Europa dos doze”. Assim se manteria até 1995 quando os “doze” deram lugar aos “quinze”, com as adesões da Finlândia, Áustria e Suécia. Trinta anos depois impõe-se recordar o ambiente daquela Europa a que aderimos; e, em texto próximo, ensaiarmos uma avaliação ou balanço dessa aventura europeia nacional.
A primeira questão que importa recordar prende-se com o mito que escutámos durante muitos anos segundo o qual, com a adesão às Comunidades Europeias, Portugal havia “aderido à Europa”. Sempre questionámos essa afirmação, por simplista e incorreta. E, em trabalho académico publicado (“A cooperação europeia e Portugal, 1945-1986”, SPB Editora, Lisboa 1997), tivemos oportunidade de detalhar o erro da afirmação relembrando e recordando, de forma aprofundada, que desde o fim da segunda guerra mundial, pese embora o regime político vigente no país, Portugal esteve, quase sempre, presente e envolvido em todas as organizações europeias que se constituíram, nos mais diferentes domínios de atividade. As exceções foram, justamente, as Comunidades Europeias e o Conselho da Europa. Excluindo estas duas organizações, Portugal esteve nas restantes que se criaram na Europa ou a partir da Europa do pós segunda guerra mundial.
Foi assim, no domínio económico, com a OECE (que se viria a transformar em OCDE), criada para gerir os fundos transferidos dos EUA para a Europa ao abrigo do Plano Marshall, para fazer face à reconstrução europeia (e isto apesar de não termos tido envolvimento direto no conflito militar mundial) – num processo negocial, de resto, recheado de peripécias e movimentações diplomáticas curiosíssimas que permitiu que Portugal tivesse o estatuto de Estado fundador; foi assim, no domínio político-militar, com o Tratado de Washington ou do Atlântico Norte que instituiu a Aliança Atlântica (NATO), unindo os Estados da Europa ocidental aos EUA e ao Canadá, com o pretexto de defender o ocidente do perigo russo, e da qual Portugal foi também membro fundador; foi assim, no plano político-económico, com a EFTA – tentativa de resposta britânica à criação das Comunidades Europeias, de que o nosso país também foi fundador; e foi assim quando, em meados da década de cinquenta, Portugal foi admitido na ONU, a organização global feita à imagem dos vencedores da segunda guerra mundial. Fenece, assim, em absoluto, a ideia que durante muito tempo fez o seu caminho entre nós, segundo a qual, aderindo às Comunidades Europeias, tínhamos “aderido à Europa”. Não, não é verdade; além de já lá estarmos e integrarmos geograficamente essa Europa desde o nosso nascimento como Estado e Nação, já nela e nas suas principais organizações económicas, políticas e militares nos encontrávamos desde o fim da segunda guerra mundial e antes mesmo de aderirmos às Comunidades Europeias.
A segunda questão que importa realçar e recordar é que, tendo “apenas” passado trinta anos sobre o evento que evocamos, no plano histórico parece ter sido uma eternidade tantos e tais foram os acontecimentos que se sucederam, muitas vezes a uma velocidade vertiginosa; a ponto de, deles tendo sido testemunhas diretas, na maior parte dos casos não havermos assimilado totalmente a dimensão daquilo a que assistíamos.
Vivíamos, na altura, em pleno mundo caracterizado por uma ordem mundial estranha – que era o mundo saído da segunda guerra mundial ou, por simplificação de linguagem, o mundo da guerra-fria. Numa palavra, estava-se em pleno mundo bipolar. Eram dois os dois blocos estratégicos: o Ocidente e o Oriente; eram duas as superpotências existentes: os EUA e a URSS; eram duas as “Europas” politicamente relevantes: a “Europa Ocidental” e a “Europa Oriental”; eram duas as organizações de defesa preocupadas com o território europeu: a NATO e o Pacto de Varsóvia; eram duas as organizações económicas de feição europeia: a CEE e o COMECOM; eram duas as Alemanhas existentes: a República Federal da Alemanha e a República Democrática da Alemanha; e, finalmente e para cúmulo, eram duas as cidades de Berlim: Berlim ocidental e Berlim leste.
Quatro anos depois da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, “esta” Europa a que acabávamos de aderir desapareceu. Dentro e fora das Comunidades. Estas, encetaram o caminho da UEM e da união política – e surgiriam as CIG’s que estariam na origem do Tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia e abriria caminho para a criação da moeda única europeia; fora das Comunidades, no plano geopolítico, tudo mudou – ruiu o Muro, reunificou-se a Alemanha, implodiu a URSS, dissolveram-se o COMECON e o Pacto de Varsóvia, multiplicaram-se os Estados e as nações no centro e no leste da Europa, renasceram os nacionalismos, abriu-se a porta ao alargamento, ad absurdum, da União Europeia. Estava, pois, criado o caldo de cultura suficiente e necessário para a Europa e o espírito europeu entrarem em crise, serem postos em causa na raiz da sua essência, anunciando períodos de crise que, sabemos hoje, não deixariam de fazer a sua aparição.