Uma Catalunha independente?

No passado domingo a Catalunha foi a votos para, num arremedo de referendo, se expressar sobre a sua independência. O fundamento para a realização dessa espécie de referendo foi, assim nos foi dito, o exercício democrático do direito dos catalães a expressarem a sua opinião sobre o seu futuro político. Tratou-se, portanto, assim foi contado ao mundo, de uma manifestação do princípio democrático. Acontece, porém, que se levarmos a análise a um maior grau de profundidade e não nos ficarmos pela superficialidade da espuma dos sias, talvez esse dito princípio democrático tenha muito pouco de democrático.

Os organizadores do dito referendo limitaram-se a constatar que, a simples possibilidade de os catalães depositarem um papel numa urna, significaria que se estava perante um exercício de democracia. Nada mais falso, nada mais errado, nada mais desconforme com as regras e os princípios. É verdade que, sem votos, não existe democracia. Nenhuma democracia pode prescindir do exercício inalienável do direito de escolhe e esse direito exerce-se através do voto. Acontece, porém, que o voto, por si só, não é suficiente para demonstrar a existência de uma democracia. Também se vota na Venezuela. Também se vota na Coreia do Norte. Também se votava no Portugal de antes do 25 de Abril. E a ninguém de bom-senso passará pela cabeça sustentar ou defender que, na Venezuela, na Coreia do Norte ou no Portugal salazarista vigoravam regimes ou sistemas democráticos. Assentemos, portanto: sem votos não há democracia; mas o voto por si só não chega para afirmar a existência da democracia. Esta, para existir, na sua plenitude, supõe e exige que, a montante, antes do momento de se exercer o voto, estejam reunidos um conjunto de requisitos e pressupostos, também eles definidores do princípio democrático: no momento de apresentação de candidaturas, no momento de fixação de garantias sobre a forma como as votações decorrem, no momento de contagem e apuramento de resultados, no momento de fixação do colégio eleitoral, no momento de composição de assembleias de voto, etc, etc. Em todos esses momentos, a montante e prévios ao exercício do direito de voto, as regras democráticas da transparência e da legalidade hão-de estar presentes se quisermos ou pretendermos estar ante uma verdadeira manifestação do princípio democrático. Ora, nada disto ocorreu, no passado domingo, na Catalunha.

O pretenso referendo foi convocado à revelia da lei e por quem não tinha competência legal para o fazer; os cadernos eleitorais não existiam, possibilitando que um cidadão votasse mais de uma vez; as urnas não funcionaram em assembleias eleitorais devidamente constituídas mas chegaram a estar postas na rua; o secretismo do voto pura e simplesmente não existiu; as garantias de regularidade e transparência do processo eleitoral eram palavra vã; o apuramento dos resultados chegou a dar percentagens totais que em alguns casos ultrapassavam os 100%….

Tudo isto, e muitas outras irregularidades que se poderiam apontar, é suficiente para demonstrar o contrário do que se pretendeu afirmar com a realização do dito referendo: em nada o mesmo contribuiu para ilustrar o exercício da democracia por parte dos catalães.

E, como era de esperar, foi-nos dito que uma ampla maioria de votantes, na ordem dos 92% haviam votado a favor da independência da Catalunha. Com um tal enquadramento o espanto só pode, mesmo, residir na percentagem de votos que é indicada: “só” 92%? Obviamente que a própria comunidade internacional não esteve desatenta e não há notícia de quem quer seja, até agora, ter reconhecido tal referendo. Eventualmente, apenas Nicolas Maduro….

O problema é que, segundo notícias recentes, será este simulacro de referendo que estará na base das exigências do sector mais nacionalista do governo autónomo da Catalunha para, dentro de horas, proclamar a independência unilateral da Catalunha. Ora, a ser verdade e a confirmar-se um tal passo rumo ao abismo, parece inevitável que ao governo de Madrid outra opção não restará do que utilizar a sua bomba atómica constitucional – célebre artigo 155º da Constituição que prevê as situações em que o poder central possa derrogar e reverter as autonomias. Como se percebe, seria uma solução para a rebelião mas não uma solução para o problema.

As autoridades centrais de Madrid desde sempre enfrentaram este desafio no plano jurídico, remetendo sempre para os Tribunais as decisões mais difíceis de tomar. Nunca assumiram a vertente política do caso e, por isso, nunca encetaram verdadeiras negociações políticas com as instâncias autonómicas de Barcelona. Foi um erro crasso que seguramente ainda lhes virá a custar caro. Mais caro do que já custou. É que se na Catalunha nem todos são independentistas ou soberanistas, quase todos ou a imensa maioria são, neste momento, anti-madridistas. E isso em nada contribui para a resolução do diferendo que existe, que é real e que está instalado.

Numa palavra, o desatino com que este processo tem sido conduzido de parte-a-parte só pode levar a uma “solução lose-lose”, em que ambas as partes saem perdedoras. Não se adivinha saída mais provável para esta crise. Em qualquer dos casos, parece certo que, por muitos e longos anos, a Espanha que conhecemos já acabou. Doravante será, sempre e necessariamente uma coisa diferente. Podemos não saber o quão diferente será. Mas será, certamente, diferente. Com ou sem a Catalunha.

O G20.

O passado fim de semana, na Alemanha e na Europa, foi dominado pela realização, em Hamburgo, da cimeira anual do G20 – o grupo das 20 maiores economias do mundo – e pelo regresso da violência urbana que lhe andou associada e que já há algum tempo não se via na Europa. Em nome do protesto contra o capitalismo e a globalização, mais de 800 grupos, grupinhos e grupelhos manifestaram-se nos arredores da cimeira e levaram o caos e a violência às ruas de Hamburgo.

O G20 é, hoje, eventualmente, a instância de cooperação político-económica multilateral que mais e melhor representa a sociedade internacional dos nossos dias. É sabido que, em cada momento histórico, a sociedade internacional tem uma instância que tende a representá-la e a refletir o equilíbrio de poderes que nela existem. No imediato pós segunda guerra mundial pretendeu-se que essa instância fosse a ONU, a única organização onde todos falam com todos, nas sempre bem lembradas palavras do Professor Adriano Moreira; durou pouco, porém, essa crença na organização de Nova Iorque, e o eclodir do período da guerra-fria e do mundo dual fez com que fossem as cimeiras entre as duas superpotências liderantes dos dois blocos político-militares (EUA e URSS) quem decidia dos destinos do mundo e onde quase todo o mundo se sentia representado, ou por uns, ou por outros; a queda do Muro e a implosão da URSS ditaram nova alteração desta realidade – passaram a ser as 7 maiores economias do mundo (Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão e Reino Unido), o G7 constituído anos antes pelos meados da década de setenta, quem assumiu a liderança e a representação dos maiores do mundo. G7 que, por cortesia, passaria a G8 quando a Rússia se reergueu dos escombros da defunta URSS e foi admitida à mesa das conversações. Mas foi por pouco tempo. O acelerar do processo de globalização e o reforço das economias emergentes encarregaram-se de demonstrar serem muitos os que continuavam de fora. E o G8 evoluiu, naturalmente, para o atual G20, a tal instância de cooperação político-económica multilateral que mais e melhor representa a sociedade internacional dos nossos dias. A instância que gere e regula, informalmente, a globalização e o dito capitalismo – e contra a qual se realizaram, em Hamburgo, no final da passada semana, mais de 800 (!) manifestações que originaram os tumultos conhecidos.

Pergunta-se: verdadeiramente, contra o que se manifestaram estes manifestantes? Contra a globalização e o capitalismo, dir-se-á. Desejosos, portanto, de um mundo menos globalizado, do regresso ao mundo das fronteiras fechadas, como se o progresso e o avanço, desde logo, da ciência e da técnica, permitissem que isso fosse possível! Mas parece que era este o anseio dos manifestantes de Hamburgo. Bem como, evidentemente, a luta contra o capitalismo. Em nome de quê? Provavelmente de um qualquer sistema político-económico que garantisse, para todos, amanhãs que cantam, ignorando o sofrimento que esses sistemas já causaram em milhões e milhões de europeus, que pela força do seu poder o derrubaram e o remeteram para o caixote do lixo da história.

Acontece, todavia, e ainda, que se é verdade que cada época histórica tem a sua instância de referência, aquela que tendencialmente a representa e na qual a sociedade internacional de cada tempo se revê, então teremos de aceitar que nunca, como hoje, essa representação foi tão democrática, tão abrangente, nunca envolveu tantos países e tantos Estados (África do Sul, Argentina, Brasil, Canadá, EUA, México, China, Japão, Coreia do Sul, Índia, Indonésia, Arábia Saudita, Turquia, Alemanha, França, Itália, Rússia, Reino Unido, Austrália e União Europeia), representando mais de 90% do PIB mundial, mais de 80% do comércio mundial e mais de dois terços da população mundial. À exceção da descredibilizada ONU, nenhuma outra instância internacional (nem o Conselho de Segurança da ONU) pode reclamar tão ampla representação. Mas foi também contra esta forma de “governo” político-económico mundial que os representantes das ruas de Hamburgo se sublevaram. Com saudades, provavelmente, do tempo e da era que que tudo se tratava bilateralmente, “a dois”, entre as duas superpotências emergentes da segunda guerra mundial, cujas decisões eram, posteriormente, adotadas por todos os restantes Estados da sociedade internacional. Porque, em bom rigor, outro motivo não se vislumbra para os protestos contra a cimeira da instância mais ampla, democrática e abrangente que em mais de um século assumiu as principais tarefas de regulação de um mundo já de si tão desregulado e desgovernado. Valham-nos, apesar de tudo, estas cimeiras como instâncias de regulação mínima de uma sociedade internacional que, sem elas, correria o risco de andar definitivamente à deriva e, ainda mais, em busca do seu norte. É certo que não constitui o modelo ideal de governação do mundo. Mas à falta de outro e de melhor, louvemo-nos na sua existência e nos documentos que vai aprovando.

Claro, como se viu em Hamburgo, há sempre quem tenha saudades de um mundo já passado, de uma ordem já acabada, de uma história já vivida. Gente definitivamente ultrapassada que ainda nem sequer compreendeu os tempos em que vive.

 

O Estado-exíguo.

Foi o Professor Adriano Moreira quem, pelo início dos anos oitenta do século passado, trouxe para o nosso vocabulário político e promoveu a divulgação da expressão “Estado exí­guo”, com ela querendo significar ou ilustrar um Estado incapaz de cumprir as suas tare­fas mais básicas, aquele mínimo de atribuições que justificam a sua existência e que a clássica ciência política ensina como sendo a segurança, a justiça e o bem estar e bem co­mum dos seus cidadãos. Um Estado que não seja capaz de cumprir e dar resposta a es­ses objetivos ou finalidades, é um Estado que não tem razão de existir, que não cum­pre as finalidades para as quais é criado, que não desempenha o mínimo indispensável de tarefas que os seus cidadãos lhe confiam por meio do contrato social em que o mesmo Estado se funda. Chamava, na altura, o Professor Adriano Moreira a atenção para o facto de, nesses idos do século passado, Portugal caminhar assustadora e vertiginosa­ mente para essa condição de Estado exíguo, incapaz de desempenhar o mí­nimo de tarefas essenciais que os cidadãos dele esperavam e para as quais abdicaram de uma parcela da sua liberdade individual e dos seus direitos para os confiarem a esse mesmo Estado.

Pese embora tenha introduzido o conceito pelos anos oitenta do século passado, o que o nosso querido Mestre nunca terá, por certo, imaginado foi a situação que este nosso País viveu nas últimas duas semanas e que, salvo outra e melhor opinião, veio ilustrar na perfeição o exemplo de um verdadeiro Estado exíguo, incapaz de prover às mais elementa­res necessidades dos seus cidadãos, falhando rotundamente onde não seria su­ posto que um Estado, na plenitude das suas competências, pudesse falhar.

Em primeiro lugar foi a tragédia de Pedrógão Grande e concelhos limítrofes. Não, não foi o Estado e o seu aparelho político-administrativo que foram responsáveis pelo eclodir dos incêndios. Mas já não podemos subscrever idêntico juízo absolvedor relativamente à forma como esse mesmo aparelho político-administrativo (não) reagiu ao eclodir da tragé­dia. A multiplicidade de serviços, agências e corporações que foram convocadas para (não) responderem à catástrofe, não só nos evidenciam a completa e desorgani­zada dispersão do poder por inúmeros organismos e entidades como, mais importante que tudo, demonstram à saciedade a total desorganização e a completa falta de coordena­ção entre todos esses serviços dependentes de um mesmo e único Estado. En­tre entidades convocadas para a previsão do fenómeno meteorológico até entidades responsá­veis pela prevenção dos incêndios, pelo combate, pelo socorro, pelo policia­mento, pela segurança, pela assistência, pelas comunicações – contam-se mais de uma de­zena os serviços públicos, de variada natureza e diversa finalidade que, chamados a actua­rem, fizeram o melhor que puderam sem embargo de se reconhecer, hoje, que esse me­lhor possível ficou muito distante do mínimo exigido. Ou seja, perante um fenómeno natu­ral de magnitude sem precedente, que ninguém exigiria que o Estado pudesse anteci­par ou evitar, constatou-se impreparação das entidades públicas para atenuarem os seus efeitos e curarem das suas consequências. Em matéria de segurança e proteção da vida e dos bens dos seus cidadãos, o Estado, o nosso Estado, falhou e demonstrou-se impreparado para o cumprimento da sua missão. O auxílio e recurso a meios externos para o cumprimento de uma missão que devia ser, em primeiro lugar, nacional, não deter­mina a exiguidade do Estado. Mas ajuda a perceber que o Estado se assumiu como um verdadeiro “Estado exíguo”. 64 vidas humanas foi o preço a pagar pela impreparação dos diferentes serviços e agências da nossa administração e do nosso poder político.

Mal refeitos da tragédia incendiária, fomos confrontados, na passada semana, com um assalto a um dos principais depósitos de armamento militar do país, em Tancos, donde foram furtados (porque nem de roubo se tratou…) mate­rial capaz de espoletar um conflito militar em qualquer parte do mundo. Pela imprensa espa­nhola (!), soubemos que o furto abrangeu um verdadeiro arsenal (1450 cartuchos de 9 mm; 22 Bobinas ativadoras por tração; 1 Disparador de descompressão; 24 Disparado­res de tração lateral multidimensional inerte; 6 Granadas de mão de gás lacrimogé­neo CS / MOD M7; 10 Granadas de mão de gás lacrimogéneo CM Antimotim; 2 Granadas de mão de gás lacrimogéneo Triplex CS; 90 Granadas de mão ofensivas M321; 30 Granadas de mão ofensivas M962; 30 Granadas de mão ofensivas M321; 44 Grana­ das foguete antitanque carro 66 mm com espoleta; 264 Unidades de explosivo plás­ tico PE4A; 30 CCD10 (Carga de corte); 57 CCD20 (Carga de corte); 15 CCD30 (Carga de corte); 60 Iniciadores IKS; 30,5 Lâminas Explosivas KSL), Numa Europa sem fronteiras, ou de fronteiras transparentes, poderemos imaginar onde o mesmo já estará. E podere­mos, também, aquilatar com facilitar as insónias que este furto em Portugal terá provo­cado em todos os nossos aliados, numa época em que o combate ao terrorismo é fim eri­gido em prioridade máxima por (quase) toda a comunidade internacional. Da dimen­são do facto e listagem de todo o material furtado, viemos a ter notícia pela imprensa espa­nhola – certamente a partir da notificação efetuada pelas autoridades nacionais. Ficámos a conhe­cer a dimensão do facto mas não pudemos ficar a confiar nas autoridades espanho­las. Ao divulgarem, ou ao não saberem proteger, informação confidencial relativa a material reser­vado de um seu parceiro e aliado demonstraram que não são de confiança. Devem-nos, inequivocamente, um pedido de desculpas. Mas independentemente disso (que não é pouco), Portugal voltou a dar outro exemplo de impreparação para o desempenho duma tarefa essencial da sua função soberana (ou daquilo que resta dela). Ao não saber guar­dar e proteger o seu material militar, colocou em causa a defesa, a segurança e o bem-estar dos seus nacionais e, por extensão, daqueles a quem estamos ligados por trata­ dos de associação. São acontecimentos ou eventos que apenas esperamos ver em filmes de TV ou em Estados-falhados. Nunca em Estados do dito primeiro mundo, países membros duma Aliança Atlântica, aspirando a participar numa qualquer força europeia de defesa que se possa vir a criar. Também aqui demonstrámos o quão perto estamos de resvalar para a condição de “Estado-exíguo”.

Infelizmente, mesmo face a todos estes acontecimentos, o poder parece que meteu férias. Fez algumas perguntas, demitiu alguns oficiais, constituiu uma comissão de inquérito e foi, tranquilamente, gozar a vilegiatura. O país, ainda que caminhando aceleradamente para a condição de “Estado-exíguo”, pode esperar.

A Sra Theresa May.

No momento em que este texto é escrito, a primeira-ministra britância, Theresa May, está envolvida em dois complexos processos negociais, qual deles o mais difícil, qual deles capaz e suscetível de lhe poder vir a custar o cargo. Perguntar-se-á o que temos nós, portugueses, a ver com isso? Já tentei responder anteriormente, em textos aqui publicados nesta coluna regular, explicando que, neste mundo globalizado e cada vez mais interdependente, e sobretudo nesta Europa que, apesar de tudo persiste em dizer-se da União, não nos podemos dar ao luxo de nos declararmos estranhos, estrangeiros ou alheios ao que quer que, de relevante, se passe em qualquer dos países com os quais mantemos relações de associação, vizinhança e proximidade, sejam elas meramente geográficas ou, verdadeiramente, políticas. Creio que este é mais um desses casos. Vejamos:

No plano estrito da política interna britânica, May tenta sobreviver ao desastre eleitoral que se autoinfligiu quando, num momento de irracional deslumbre e autoconvencimento decidiu antecipar as eleições legislativas, fiada nas sondagens e crente nos mais de vinte pontos percentuais que aparentava ter de vantagem sobre os trabalhistas. Por razões conhecidas, os cálculos saíram-lhe furados e a busca de uma maioria absoluta maior do que aquela de que dispunha transformou-se na perda dessa mesma maioria, no quadro de um hung parliament, levando à necessidade de ter de ser construída um pouco comum (em termos britânicos) acordo de incidência parlamentar para apoio governamental. É essa coligação ou acordo parlamentar que May tentou cerzir, com muito custo e dificuldade, socorrendo-se da dezena de deputados unionistas irlandeses que lhe poderão garantir o mínimo de votos em Westminster necessários para governar. O quadro, todavia, apresenta-se cinzento. As primeiras notícias dão conta de que May terá comprado (uso o verbo, deliberadamente, sem aspas) o apoio dos unionistas irlandeses por cerca de mil milhões de libras, qualquer coisa como 1,25MM€. É uma verba muito significativa a ser gasta ou investida na Irlanda do Norte o que, de imediato, suscitou os óbvios e naturais protestos das restantes nacionalidades britânicas – galeses e escoceses. Mas esta não é a única dificuldade que uma aproximação aos unionistas irlandeses pode suscitar. Para compreender o que está em causa, teremos de recuar aos célebres Acordos da Sexta-Feira Santa, outorgados em Belfast em 10 de abril de 1998 pelos governos britânico e irlandês e apoiado pela que tiveram por finalidade acabar com os conflitos entre nacionalistas maioritariamente católicos e unionistas predominantemente protestantes, sobre a questão da união da Irlanda do Norte com a República da Irlanda, ou sua continuação como parte do Reino Unido. Acordos que, recorde-se, acabariam por ser sufragados e aprovados em referendos separados, nas duas Irlandas. Independentemente das tecnicidades jurídicas destes Acordos, dos mesmos relevou um dado político que, nos últimos dias tem sido sobejamente relembrado: o compromisso do governo de Londres de se manter rigorosamente neutral e equidistante face às questões e divergências irlandesas. Ora, ao buscar apoio para governar, em Londres, nos deputados eleitos por uma das partes daqueles Acordos, pelos protestantes unionistas, contrários à União Europeia e conservadores numa série de políticas, não falta quem lembre ou recorde que é o próprio compromisso inglês que pode vir a estar em causa. O compromisso da isenção. Da equidistância. Do equilíbrio. Ao ganhar estabilidade em Londres, May pode estar a abrir a porta da instabilidade com Belfast e Dublin.

Em paralelo com este acordo no plano da política interna, o governo de May começou a negociar há uma semana a concretização do brexit. Também aqui a senhora May aparece, indubitavelmente, enfraquecida e politicamente diminuída. Quis reforçar o seu poder, mas os britânicos, nas urnas, reduziram-no. É, assim, uma primeira-ministra politicamente débil que se senta perante os negociadores europeus, ela que sonhou desfrutar de condições que lhe permitissem impor o seu muito sonhado “hard brexit”. Terá de se contentar, na melhor das hipóteses, com um “soft brexit” – admitindo que chegará a haver brexit….. Donald Tusk, o Presidente do Conselho Europeu, no início da cimeira da passada semana, deixou clara a mensagem de que o projeto europeu é filho do sonho, da ousadia e da ambição. E que, relativamente ao brexit, ele ainda não tinha perdido o sonho….

Nestas negociações, difíceis e complexas, o primeiro dossier em cima da mesa prende-se com as pessoas, a liberdade de circulação e os direitos de cidadãos europeus já radicados no Reino Unido, bem como os daqueles que, depois da saída britânica se pretenderem radicar no Reino. A primeira proposta que May se prepara para levar às negociações é deveras ambígua. Quer no que respeita aos cidadãos já residentes há menos de 5 anos quer no que respeita aos que, após o brexit, se pretenderem instalar no Reino Unido. E a simples cláusula da reciprocidade, que Londres pretende consagrar, afigura-se como escassa e limitada para o que está em causa. E o mesmo se diga sobre o papel que, neste domínio, Londres recusa que seja desempenhado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Theresa May confirmou ainda que não quer que seja o Tribunal de Justiça da União Europeia a ter a última palavra sobre os direitos dos cidadãos europeus depois do “Brexit” – cláusula que se afigura de todo inaceitável para a União Europeia, por pôr em causa um dos principais pilares do sistema jurídico europeu. As próximas semanas vão-nos trazer, inevitavelmente, novidades nestas matérias.

Em qualquer dos casos referidos, em ambas as situações, a vida de Theresa May não se afigura fácil e os seus dias de graça há muito que caíram em desgraça. O que significa, inequivocamente, que terão de ir sombrios os dias do governo britânico. O que, independentemente das posições que o mesmo possa assumir em matérias de política interna ou externa, é sempre uma má notícia para a Europa. Porque, quer dentro quer fora do projeto europeu, não deixamos de estar a considerar o governo de uma das grandes potências europeias atuais. Enganam-se, pois, os que jogam e apostam no enfraquecimento do Reino Unido como condição para o benefício da União Europeia. A ser assim, seria erro crasso.

Helmut Kohl, Cidadão Honorário da Europa. In memoriam.

No final da passada semana faleceu Helmut Kohl, o chanceler que, ao longo de 16 anos, liderou primeiro a República Federal da Alemanha e, posteriormente, a Alema­ nha reunificada no pós segunda guerra mundial – e que terá sido o último crente e eu­ ropeu convicto entre os chefes de Estado e de governo que governaram a Europa, se­ gundo opinião comum partilhada entre todos os que, por dever de ofício, têm de pres­ tar a sua atenção à evolução da Europa, dos assuntos euro­ peus e do projeto de cons­ trução da unidade europeia.

Ideologicamente, foi um democrata-cristão de sempre – considerando-se a si próprio como um neto político de Adenauer. Em parceria privilegiada com o socialista François Mitterrand, soube Kohl reativar o eixo Paris-Bona como motor essencial do progresso da União Euro­ peia, reeditando e reforçando a parceria décadas atrás assinada por de Gaulle e Adenauer quando, em 1963, outorgaram o longínquo Tratado do Eliseu. Para além do entendimento entre os dois homens estabelecido a nível pessoal, não eram apenas a França e a reunificada República Federal da Alemanha que se empenhavam no relan­ çamento do projeto comunitário europeu – eram também os dois mais representativos estadistas das famílias políticas europeias (a democracia-cristã e a socialista) que tinham protagonizado o arranque da empresa comunitária que denunciavam a intenção de prosseguir com o projeto e de dar continuidade à atuação dos pais fundado­ res de cuja tradição eram herdeiros e de cujo legado político eram depositários. Com Mitterrand comungou a convicção de que “o nacionalismo significa guerra”. Contra esse mesmo nacionalismo, lutaram em conjunto e de forma solidária.

No plano da política interna alemã, Kohl chegou à chancelaria de Bona em 1982, atra­ vés de uma moção de censura construtiva que derrubou o governo de Helmut Sch­ midt, quando convenceu os liberais do FDP a abandonarem a sua coligação com os sociais-democratas do SPD, passando a aliar-se aos democratas-cristãos da CDU, que Kohl liderava. O incansável e incessante labor em prol da unificação da sua pátria – aproveitando com indesmentível mestria os ventos favoráveis que sopravam de Moscovo – concretizado simbolicamente naquele distante 9 de Novembro de 1989 que assistiu à queda do Muro de Berlim e oficialmente proclamada a 3 de Outubro do ano seguinte, quando a reunifi­ cação se tornou efetiva, presidirão por certo ao juízo que a história não deixará de efetuar sobre a ação governativa do «chanceler da reunifica­ ção». No mais completo isolamento, elaborou pessoalmente um documento de “Dez pontos para a reunificação alemã” que muito irritou os seus aliados, sobretudo Mitterrand e Thatcher, tementes do renascimento de uma grande Alemanha no centro da Europa. Apenas George Bush, do outro lado do Atlântico, o apoiou sem reservas, tranquilizando e garantindo a Gorbachov que a reunificação iria andar a par da integração política da Europa. E assim se faria. O início da conferência intergovernamental para a união política que conduziria ao Tratado de Maastricht e da conferência intergoverna­ mental para a união económica e monetária arrancariam a par do processo de reunificação da Alemanha. Com a realização desta, cumpriase o desígnio de uma vida política: ver a sua pátria reunificada e integrada numa Europa unida. Como não se cansava de repetir, a unificação alemã tinha de ser feita no quadro da unificação europeia. Kohl anunciava uma “Alemanha europeia e não uma Europa alemã”.

No plano europeu, os dezasseis anos do consulado de Helmut Kohl à frente do governo federal (1982-1998) ficaram indelevelmente associados aos mais recentes e últimos sucessos regista­ dos pelas Comunidades Europeias no seu percurso rumo à União Eu­ ropeia: a concre­ tização do grande mercado único, a assinatura do Acto Único Europeu, a outorga do Tratado de Maastricht que formalmente criou a própria União Europeia, o alargamento a Portugal, Espanha, Áustria, Finlândia e Suécia, mas, sobretudo, a con­ cretização desse grande desígnio de muitos europeístas visionários que sonharam com a exis­ tência de uma moeda única europeia. O seu empenho nesta causa europeia foi determinante para que, em Dezembro de 1998, o Conselho Europeu reunido em Viena lhe viesse a atribuir o título de “Cidadão Honorário da Europa”. Na Resolução então aprovada, os chefes de Estado e de governo dos, então, quinze Estados membros da União Europeia, assinalaram e condecoraram uma vida “que pe­ los valores tra­ dicionais e pelas experiências da sua juventude durante a guerra e no pós-guerra, cedo ganhou convicções fundamentais que sempre man­ teve de forma inabalável e autêntica. Sobre­ tudo, a sua firme crença na força pacificadora de uma cada vez maior união eco­ nómica e política da Europa e na possível reunificação da sua pátria balizada por tais princípios foi confirmada pelos marcantes acontecimentos ocorridos durante o seu mandato”.

Os últimos anos da sua vida foram marcados e vividos com uma indisfarçável tristeza, sobretudo perante o rumo que via a “sua” Europa tomar. E também por muitas das opções que a chanceler Angela Merkel ia tomando. A ponto de ter chegado a afirmar que Merkel estava “a dar cabo da sua Europa”. Foi um profundo juízo crítico sobre a obra e a atuação da sua sucessora – certamente não desligado do comportamento in­ fame e ignóbil que Merkel assumiu perante Kohl no momento em que este conheceu o período mais negro da sua vida política quando, para honrar a sua palavra, se recusou a divulgar as fontes de financiamento do seu Partido. Nesse momento de provação e de violentos ataques, Merkel deixou cair quem a promoveu, quem lhe havia dado a mão, quem a havia guindado ao poder. Kohl nunca esqueceu e nunca escondeu a amargura. Morreu na passada sexta-feira, amargurado, mas com o seu lugar na Histó­ ria garantido.

The Hung Parliament

Há precisamente um ano, na sequência duma decisão bizarra e incompreensível do então Primeiro-Ministro britânico, David Cameron – que, de resto, acabaria por lhe custar o cargo e a carreira política – o Reino Unido enfrentava uma campanha eleitoral para o referendo que iria decidir da continuidade, ou não, do Reino na União Europeia. O resultado é conhecido: a maioria dos britânicos optaram pelo brexit, escolhendo sair da União.
A primeira consequência deste referendo, recorde-se, foi a demissão de David Cameron da liderança do governo britânico. Para dar cumprimento ao resultado eleitoral, impunha-se que o governo britânico encetasse o processo de separação de Bruxelas. Cameron, que tinha apostado todas as suas fichas no “remain”, não tinha condições, nem pessoais nem politicas, para continuar no nº 10 de Downing Street. Surpreendentemente, a bancada conservadora em Westminster acabou por escolher para liderar o governo a, até então, responsável pela administração interna nos governos de Cameron, Theresa May.
Theresa May que, no referendo acabado de realizar, havia militado na causa do seu Primeiro-Ministro e havia-se comprometido em favor da permanência do Reino na União Europeia. A perplexidade foi imediata – a condução de todo o processo de separação do Reino Unido da União Europeia iria ser confiado a alguém que, semanas antes, se havia empenhado em defender justamente o contrário, isto é, a permanência do Reino na União Europeia. Foi um começo pouco fiável e nada de molde a justificar grandes entusiasmos. Seguidamente, seria a própria nova Primeira-Ministra a, reiteradamente, afirmar que se sentia confortável com a maioria absoluta de que dispunha na Câmara dos Comuns, herdada de Cameron, e que, por isso, não tencionava convocar eleições legislativas antecipadas.
Em Abril passado, porém, prestes a iniciar as conversações com Bruxelas, numa altura em que os estudos eleitorais davam mais de vinte pontos percentuais de vantagem aos conservadores sobre os trabalhistas de um Jeremy Corbyn pouco menos do que desacreditado, May vislumbrou uma janela de oportunidade para reforçar a sua maioria, dizimar o seu adversário e fortalecer o seu poder. Violando a palavra dada, convocou eleições legislativas que decorreram na passada semana. E, contrariamente às expectativas de que partiu, em vez de reforçar a sua maioria absoluta, perdeu-a; em lugar de aniquilar o seu adversário, reforçou-o; querendo fortalecer o seu poder, acabou enfraquecida. Pela segunda vez em menos de um ano, o eleitorado trocou as voltas aos Primeiros-Ministros britânicos e puniu May como há um ano tinha punido Cameron – qual deles o menos hábil a interpretar e avaliar o sentido e o sentimento do eleitorado britânico. É certo que, desta feita, houve razões acrescidas para essa punição eleitoral que recaiu sobre May: a falta à palavra dada; a tergiversação em matéria de princípios e valores; a postura arrogante assumida durante a campanha eleitoral; propostas eleitoralmente mal apresentadas, nomeadamente de natureza fiscal; a colagem, em matéria de política externa, às errâncias de Donald Trump. E, obviamente, a questão do terrorismo; sobretudo tendo sido May, durante seis anos, a ministra responsável pela pasta da segurança interna.
Esta errada avaliação eleitoral, da exclusiva responsabilidade da Primeira-Ministra britânica, acabou por estar na origem daquilo que os britânicos designam por um “parlamento suspenso” (um “hung parliament”) – um parlamento sem maioria absoluta de nenhum partido, num país com um sistema eleitoral maioritário a uma volta, propenso à emergência de um sistema partidário de bipartidarismo tendencialmente perfeito. Os conservadores perderam a sua maioria absoluta mas, continuando a ser o partido mais votado, persistiram na indicação de Theresa May para a liderança de um governo minoritário que, tudo o indica, alcançará a maioria através de um entendimento parlamentar com os unionistas da Irlanda do Norte (DUP). É, num primeiro momento, uma aliança eivada de espinhos que podem vir a revelar-se fatais com o decurso do tempo. Uma vez mais, mais do que na questão das políticas internas, será na postura face ao brexit que se podem vir a revelar as maiores contradições deste acordo de conveniência, necessariamente a prazo. E nem parece improvável que as primeiras e mais graves contradições surjam de dentro do próprio Partido Conservador. De resto, já há notícias de movimentações internas as quais, se num primeiro momento até poderão permitir o surgimento de um novo gabinete de May, a médio prazo poderão torná-lo completamente inviável, sacrificando a sua própria liderança. Mais do que nunca, Theresa May deverá sentir-se uma Primeira-Ministra a prazo. E a prazo curto.
E o calendário promete não a ajudar. Se a apresentação do seu programa de governo (o célebre “Queens Speech”, discurso da Rainha que apresenta o programa e as diretivas do governo para o ano legislativo subsequente) já foi adiado “sine die”, para o início da próxima semana estão agendadas as primeiras conversações entre o Reino Unido e a União Europeia para concretização do brexit. Será o grande desafio que o próximo governo vai ter pela frente. E será um governo enfraquecido eleitoralmente, diminuído politicamente e minoritário partidariamente que terá de enfrentar o maior desafio político do Reino Unido desde o final da segunda guerra mundial.
Num quadro de tanta indecisão, de tanta indefinição e de tanta turbulência, não será risco demasiado voltarmos a uma convicção que já anteriormente tivemos oportunidade de expressar – há brexits que estão condenados a concretizarem-se como …… remains.