by João Pedro Simões Dias | Jul 14, 2015 | Diário de Aveiro
Enquanto a União Europeia tem andado entretida em torno dos encontros e desencontros com o governo grego de Alexis Tsipras, passando para o mundo a imagem duma organização internacional paralisada e imobilizada, refém das errâncias táticas do governo de um dos seus Estados-membros, na Europa que existe para lá das fronteiras externas da União – porque para além da UE existe mais Europa, para surpresa de alguns…. – assinala-se por estes dias a passagem do vigésimo aniversário de um dos mais horríveis e bárbaros crimes perpetrados contra a Humanidade e em solo europeu, nos anos mais recentes: o massacre de Srebrenica.
O horror remete-nos para a última guerra civil e fratricida vivida em território da Europa, no pós segunda guerra mundial, tendo por pretexto o desmembramento da ex-Jugoslávia – eventualmente o único erro em matéria europeia cometido pelo chanceler de boa memória, Helmut Kohl, ao apressar o reconhecimento alemão da Croácia auto-emancipada de Belgrado. Este reconhecimento, precipitado, apressou o fim da Jugoslávia da pior maneira possível – pela via armada, com a multiplicação dos conflitos e das guerras intra-nacionais e o sempre indesejado recrudescimento dos diferentes nacionalismos que Tito amordaçara e suprimira. Foi no quadro desse conflito generalizado, mas territorialmente circunscrito que, entre 11 e 20 de Julho de 1995, mais de 8.000 bósnios muçulmanos foram assassinados em massa por parte do exército servo-bósnio, armado pela Sérvia e comandado por Ratko Mladi? (que atualmente se encontra a ser julgado pelo Tribunal Penal para a Antiga Jugoslávia) perante a lamentável inação das forças das Nações Unidas a quem foi pedido que reforçasse a sua presença de capacetes azuis e defendesse aquela população.
Foi este mesmo Tribunal, de resto, que reconheceu este massacre como o primeiro genocídio da História a seguir ao Holocausto. O termo, aliás, voltou a ser utilizado pelo ex-Presidente dos EUA, Bill Clinton, na cerimónia oficial evocativa da tragédia. Curiosamente, também há poucos dias, em pleno Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Rússia de Putin vetou uma resolução apresentada pelo Reino Unido que qualificava esse mesmo massacre como um genocídio. Dir-se-á que os amigos nunca se esquecem nas horas difíceis….
Recordar Srebrenica no tempo histórico que vivemos e no circunstancialismo que a Europa conhece, pode ser mais do que uma simples e trágica coincidência. Quando, impotentes e quantas vezes revoltados, assistimos à desagregação do projeto europeu idealizado pelos pais fundadores como indispensável para garantir um futuro de paz na Europa, mais do que para assegurar vantagens económicas a uns Estados sobre outros, não podemos deixar de invocar os trágicos acontecimentos que assolaram este velho continente há, apenas, duas décadas. E era bom que aos governantes de turno, pese embora os saibamos destituídos da dimensão de estadistas, as mesmas imagens e os mesmos acontecimentos não se lhes escapasse da memória. Porque, voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, poderão estar a conduzir os restos sobrantes desta Europa ainda chamada da União para um destino e um futuro muito semelhante àquele que presidiu ao desmantelamento da velha Jugoslávia. Quem excluir, apenas porque sim, essa possibilidade, ignora os demónios que a Europa tem dentro de si, que tendem a despertar ciclicamente, e que nos últimos cem anos já a destruíram por duas vezes. A começar pelo demónio do nacionalismo que continua à espreita e pronto para renascer. E o dos populismos extremistas, de esquerda e de direita, que têm o estranho hábito de conseguirem coincidir nos momentos historicamente mais relevantes. Nunca é demais recordá-los e estarmos atentos para os seus efeitos nefastos.
Srebrenica constituiu, provavelmente o mais recente exemplo da manifestação desses mesmos demónios europeus. O problema é que não está dito nem escrito, em lado algum, que tenha sido o último. Tenhamos sempre bem presente que a barbárie que aqui recordamos aconteceu aqui, na Europa. E foi só há 20 anos.
by João Pedro Simões Dias | Jul 8, 2015 | Diário de Aveiro
Depois do referendo do passado domingo criou-se, no mainstream do politicamente correto europeu, a ideia que os gregos haviam dado uma verdadeira lição de democracia à Europa e aos europeus que, com ela se deviam conformar e a deviam acatar. Com as devidas desculpas a quem professa tal credo, discordo do mesmo. Entendamo-nos:
A Grécia e os gregos, pátria, referência e matriz da democracia ocidental, são credores dos maiores encómios por parte dos europeus e da civilização ocidental. Quantas vezes, hoje, são “descobertos”, invocados e aplicados princípios e regras que, uma investigação mais aturada, acaba por revelar já terem sido descobertas e praticadas na Grécia antiga! Somos, por isso, devedores dessa contribuição grega para a civilização em que nos inserimos. Creio, todavia, que o crédito fica por aí. Com um pouco mais de boa vontade, estender-se-á à oposição que protagonizaram aos exércitos nazis por altura da segunda guerra mundial. Admito que também lhe possamos dever isso. E aceito que reconheçamos que o povo grego tem sido martirizado, humilhado e sofrido um empobrecimento sem limites fruto exclusivo das escolhas que têm efetuado.
Já não lhes devemos, porém, as opções políticas que têm feito, as escolhas erradas que têm efetuado, a destruição da sua economia que protagonizaram, a corrupção que encobriram, a desestruturação do Estado que originaram, o clima de impunidade e saque fiscal de que tanto gostam, os desvarios financeiros de que deram provas. E sobretudo, não lhes devemos a dívida que construíram, os défices orçamentais que aceitaram, o caos financeiro em que se meteram. Isso, nós não lhes devemos nem, por isso, podemos ser minimamente responsáveis. No limite, nós, europeus, podemos ser acusados de, assistindo a tudo isso termos sido complacentes. A complacência, todavia, não gera conivência nem produz co-responsabilização.
Admirador, portanto, da clássica civilização grega, não me sinto minimamente obrigado a admirar a prática dos atuais dirigentes políticos da Grécia contemporânea. Mais – acredito que essa prática envergonharia os expoentes e os arautos do pensamento político clássico ateniense. Muitos destes vultos de sempre, terão dado verdadeiras voltas nos seus túmulos assistindo aos princípios de governo dos seus atuais descendentes.
Dito isto, impõe-se destruir outro mito que saiu reforçado do referendo do passado domingo: não existiria Europa sem a Grécia. Coloquemos as coisas em perspetiva: se não poderia existir espírito europeu sem a contribuição dos clássicos gregos, estamos de acordo; se não poderia existir União Europeia sem a atual Grécia, lembremo-nos apenas das dezenas de anos de existência da mesma União (Comunidades Europeias) sem a Grécia a integrar. E não foi por isso que o projeto europeu deixou de ser criado e gerado pelos pais fundadores.
Vem isto a propósito das afirmações precipitadas que quiseram impor o resultado do referendo grego do passado domingo a toda a Europa comunitária, aos seus Estados e às suas instituições, como se o mesmo tivesse uma eficácia extra-territorial, impondo-se a Estados terceiros, a povos terceiros, mesmo àqueles que não haviam votado no referendo grego. Ou seja, os gregos teriam o dom de votar e decidir por todos os europeus; estes, dever-se-iam conformar e aceitar as escolhas gregas. Sem tugir nem mugir.
Acontece que este raciocínio esquece um “detalhe” fundamental – as democracias dos restantes Estados parceiros da Grécia, em nada são inferiores ou menores que a democracia grega. E se o gregos têm o dever de tratar da sua vida e defender os seus interesses, os restantes Estados Europeus têm idêntica obrigação e direito. E um desses direitos, se assim o entenderem, é decidir que não querem continuar a pôr dinheiro em cima do problema grego, para onde já transferiram mais de 260MM€! Visão egoísta? Pode ser que sim. Não mais egoísta, porém, do que algumas opções políticas gregas que têm pretendido condicionar a Europa, os seus Estados e as suas instituições. Imagine-se que alguém propunha um referendo europeu para os europeus decidirem se queriam que os seus impostos fossem pagar dívidas dos gregos. Alguém tem dúvida do que diriam os europeus?
Resta-nos, assim, recentrar o problema e a questão principal. A Grécia é importante para o projeto europeu e nele deve continuar. A situação em que voluntariamente se colocou e as suas próprias debilidades obrigam-na a negociar com os seus credores, obtendo plataformas de entendimento, consensualizando e acordando, cedendo e não impondo, abdicando de qualquer pseudo-superioridade moral por referência aos seus parceiros e credores. O seu povo já tem sido sujeito a sacrifícios sem paralelo por se haver colocado (in)conscientemente em situações que a tanto obrigaram. Merece tolerância, compreensão e auxílio europeu. A Europa, Estados e instituições credoras, por seu lado, têm o direito de exigir o cumprimento das regras da zona euro, o reembolso do que emprestaram aos gregos mas, simultaneamente, o bom-senso de não asfixiarem este povo e este Estado, sob pena de todos saírem a perder. Não são, pois, difíceis de enunciar os princípios que devem nortear um acordo que se deseja e por que se anseia.
Agora, por favor, não nos venham tentar impingir a ideia de que somos todos gregos porque, felizmente e a bem da própria Europa, não, não somos todos gregos. Somos todos europeus. Unidos, mas na nossa diversidade. A saída da Grécia da zona euro significaria um forte golpe no projeto político que constituiu o euro. Mas a sua permanência a qualquer custo, sob chantagem negocial, poderia acarretar, para este projeto, efeitos tão ou mais perniciosos que se impõe evitar. É a hora de a Europa que sobra e resta demonstrar que ainda tem um mínimo de bom-senso e de equilíbrio. Porque, no final, vai ser da Europa, dos seus Estados e instituições, a palavra final desta tragédia grega.
by João Pedro Simões Dias | Jun 23, 2015 | Diário de Aveiro
O folhetim grego, em torno de um diálogo que parece permanentemente inacabado e adiado entre a Grécia, as instituições europeias e os seus credores internacionais, tem concitado a generalidade da atenção da nossa opinião pública e publicada, a ponto de não faltar quem não seja especialista em assuntos gregos, peritos em economia internacional e europeia e outras sumidades cujas valências nestes domínios estavam absolutamente desperdiçadas e eram de todo desconhecidas. A tal ponto o assunto tem concitado as atenções gerais que, outros de extraordinária relevância, têm sido remetidos, invariavelmente, para notas de rodapé e pés de página informativos. A questão humanitária que continua a assolar a Europa é um desses assuntos.
Por tão repetidas e reiteradas, as tragédias continuam a suceder-se no Mediterrâneo que, neste início de milénio, corre o sério risco de se transformar na maior e mais trágica vala comum desta Europa dos nossos tempos. A instabilidade no norte de África teima em persistir e não pára de aumentar a busca incessante dos que preferem deixar tudo para trás em busca duma terra prometida por que anseiam neste Velho Continente. E para esta tragédia humanitária, a Europa, especialmente a da União, teima em não dar respostas nem encontrar soluções. A Itália tem sofrido a maior pressão migratória e o seu primeiro-ministro Renzi já fez o ultimato final aos seus parceiros europeus. Não, consta, porém, que tenha sido suficientemente persuasivo ou deveras convincente a ponto de levar os seus parceiros de Conselho Europeu a reverem as suas posições. E no entretanto a tragédia vai continuando. E as instituições europeias vão discutindo a melhor maneira de a evitarem. Estranho mundo este….
Na passada semana, todavia, deu-se mais um passo atrás neste processo de desconstrução europeia em curso – passo que voltou a passar despercebido à opinião pública europeia, refém da crise grega. Numa decisão inqualificável, o governo da Hungria decidiu começar a erguer um Muro ao longo dos 175 km de fronteira que separam a Hungria da Sérvia. O primeiro-ministro Viktor Orbán, pese embora o suporte popular que evidencia no seu país, não é propriamente um exemplo da democracia ocidental tal qual a concebemos nos nossos dias. Curiosa e paradoxalmente, é apontado como um servidor da extrema-direita europeia que – vão lá entender-se as razões da geopolítica que a razão tantas vezes desconhece…. – cultiva uma notória proximidade com muitas posições de Putin e da nova Rússia. Pois bem, para evitar a multiplicação da entrada de refugiados – sobretudo moldavos – através da fronteira sérvo-húngara (que este ano já ultrapassaram os 50.000 pedidos) o governo húngaro anunciou a construção de um Muro ao longo daquela fronteira para evitar as migrações terrestres! Esta decisão coloca-nos vários e diversos problemas.
Em primeiro lugar é um sintoma do estado de desunião e de degenerescência a que esta União Europeia chegou, postergando os mais elementares valores e tradições em que se fundou e com base nos quais o projeto europeu foi iniciado. Qualquer semelhança entre esta união e o projeto concebido pelos pais fundadores é, seguramente, mera coincidência; e não mais do que isso.
Em segundo lugar, uma questão profundamente simbólica. Esta Europa, alargada e por isso mesmo ingovernada, que teima em chamar-se da União, por paradoxal que pareça, alicerça-se no derrube do Muro, do Muro de Berlim, que simbolizou a reunificação alemã, mas também o reencontro da Europa consigo mesma, com a sua unidade, com a sua tradição, com a sua história. A Hungria que agora ergue muros, nunca teria ingressado na União se os muros tivessem permanecido de pé e se o Muro de Berlim não tivesse sido derrubado. É o cúmulo do paroxismo e da contradição ser essa mesma Hungria a reerguer muros nesta segunda década do século XXI.
Em terceiro lugar – a prática que agora se anuncia para além de violar princípios, valores e um verdadeiro acervo moral de que a União Europeia se fez depositária, viola também regras e princípios elementares dum direito comum e duma jurisprudência comum que, lentamente, se tem vindo a construir. O que significa que, a passar-se do anúncio à prática das medidas anunciadas, é a própria União que, violando o direito que ela própria tem vindo a construir, corre o sério risco de deixar de ser uma verdadeira comunidade de direito.
Numa União Europeia em que a política prevalecesse sobre o económico e o financeiro e que estivesse solidamente alicerçada num projeto político, estas práticas seriam, pura e simplesmente, impossíveis de acontecer. Nesta União, porém, que confere a primazia ao económico e ao financeiro, secundarizando a dimensão social e o pilar político, e que é servido não por estadistas mas por governantes, parece que tudo é possível, parece que tudo é admissível. Estranha-se, apenas, que haja quem proclame a sua surpresa pela emergência, um pouco por toda a Europa da União, dos extremismos que, no limite, questionam esse mesmo projeto europeu.
Esses radicalismos extremistas, de esquerda e de direita, que dividem e pulverizam os partidos tradicionais nos diferentes Estados europeus, não constituem causa do estado a que a União chegou. Constituem consequência desse mesmo estado. Quem não perceber esta diferença, dificilmente perceberá os dias que se vivem na União Europeia. A começar pela situação grega e a acabar no novo muro da vergonha que para vergonha de todos nós leva no frontispício o nome do Sr Viktor Orbán.
by João Pedro Simões Dias | Jun 16, 2015 | Diário de Aveiro
2. Os impactos da adesão
A adesão de Portugal às Comunidades Europeias, trinta anos após a sua concretização, continua por estudar nos seus múltiplos aspectos e nas suas diferentes dimensões. É uma lacuna que urge suprir e em que os nossos centros de excelência nacionais (com as Universidades e outras instituições de ensino superior à cabeça) já deveriam estar envolvidos.
De uma forma muito simplificada, dir-se-á que essa adesão teve duas consequências principais – uma geopolítica e outra económico-financeira.
No plano geopolítico, a adesão significou a inclusão de um pequeno país, europeu e periférico, na organização político-económica mais representativa da Europa dos meados dos anos oitenta. E que nos anos seguintes não deixou de ganhar protagonismo e importância. Constituiu uma inserção que resultou de uma clara opção política por parte dos partidos que integravam o arco da governação e significava, ela própria, um pacto de regime que, nas suas linhas fundamentais, se tem mantido em vigor até aos nossos dias. Na sua essência, porém, nos primeiros anos, teve a particularidade de constituir uma alternativa à dimensão e vocação atlântica que sempre foi histórica para Portugal mas que, naquela concreta situação dos meados da década de oitenta do século passado, ainda não havia digerido por inteiro o trauma e as consequências dum processo de descolonização que, por tardio, não deixou de fazer a sua mossa e deixar as suas cicatrizes. A “Europa” volveu-se, assim, para Portugal, por alguns anos, em alternativa ao “Atlântico”. Teriam de passar muitos anos para que os nossos governantes percebessem e entendessem que ambas as dimensões não eram antagónicas, antes se completavam. Mais – que quanto mais Portugal valorizasse a sua dimensão atlântica, maior poderia ser a sua importância relativa no quadro europeu em que passava a posicionar-se. Naturalmente – esta inserção política teve o seu custo e o seu preço: Portugal passou a ter de partilhar domínios importantes da sua soberania com os restantes Estados membros das Comunidades a que aderiu. Passou a ter de transferir para as instituições europeias áreas cada vez mais alargadas de competências que até então detinha em exclusivo, passou a ter de se sujeitar às deliberações que nesses domínios fossem tomadas preferencialmente em Bruxelas, viu o direito comunitário passar a ter de se lhe aplicar de forma directa e com primazia sobre o seu próprio direito nacional. Foram, digamos, assim, os custos ou o preço da adesão, o preço de ter passado, também, a ter uma palavra em domínios e matérias que lhe estavam vedados.
Mas foi, talvez, no plano económico ou financeiro que os impactos da adesão portuguesa às Comunidades mais se fizeram sentir e, talvez, maior visibilidade pública ganharam. Fruto do atraso económico e social que conhecia, tendo por comparação os seus novos parceiros europeus, os baixos índices de crescimento e de desenvolvimento e, sobretudo, as assimetrias perante a generalidade dos índices médios comunitários, Portugal foi colocado na cauda de quase todas os rankings que na altura se fizeram. O que contribuiu decisivamente para, no período de transição e mesmo depois dele, virmos a ser beneficiários líquidos dos orçamentos comuns, isto é, recebermos mais (incomparavelmente mais….) das Comunidades do que aquilo com que contribuíamos para o referido orçamento comum. E essa viria a ser uma marca indelével de todo o processo português de integração europeia. Durante anos a fio – durante sucessivos quadros comunitários de apoio – a nossa pertença ao projecto comunitário europeu teve, para o cidadão comum, um único e simples sinónimo: dinheiro, muito dinheiro, que Bruxelas transferia para Lisboa, à razão de milhões de euros/dia. E a nossa elite dirigente facilitou e contribuiu para ampliar essa percepção. Criou-se a mentalidade que o dinheiro europeu não tinha fim, substituía tudo, comprava tudo, compensava tudo, dava para tudo. Com ele pagou-se a desarticulação de vastas zonas do nosso sector produtivo primário e secundário; terciarizou-se a nossa economia; indemnizou-se e pagou-se para não produzir ou deixar de produzir; apostou-se em formação dita profissional que muitas vezes não passou de pura fachada e, sobretudo, apostou-se à outrance em obra pública de betão armado para suprir as necessidades e lacunas do país e para ir muito além delas. O critério era fácil: havia dinheiro, era barato, saltava à vista e rendia votos. Esse terá sido o principal erro associado à nossa integração europeia: a mentalidade que se deixou criar que aderir às Comunidades Europeias significava receber muito dinheiro que podia ser gasto sem regra nem critério e, depois e sobretudo, visto à distância, as opções políticas que presidiram à despesa efectuada com essas quantias fabulosas. Muito pouca aposta na formação humana em razão inversa da aposta feita na obra pública; e, sobretudo, a desindustrialização provocada numa economia que precisava de se regenerar mais do que se terciarizar.
Sendo certo que, como se disse a abrir este texto, o balanço global da nossa adesão às Comunidades Europeias (entretanto transformadas em União Europeia) continua por fazer, e pese embora os erros enormes associados a um caminho que completará 30 anos no próximo dia 1 de janeiro, a verdade que se nos afigura inquestionável é que o saldo da opção tomada em 1977 tem de se haver por francamente positivo. Dito de outra forma – à data que a questão da adesão se colocou, dificilmente a opção tomada por Portugal poderia ter sido outra, diferente ou distinta. Com as portas do Atlântico, à data, circunstancialmente encerradas pela conjuntura histórica acabada de viver, a opção europeia era a única que Portugal tinha se pretendia ter alguma voz ou relevo nos assuntos europeus e mundiais. Se, daí em diante, nem tudo correu da melhor forma ou da forma mais adequada, não se busque a responsabilidade na adesão ou projecto europeu, busquemo-la, antes, nas opções políticas menos acertadas que, também em política europeia, têm sido uma constante aos longos destas últimas três décadas.
by João Pedro Simões Dias | Jun 12, 2015 | Diário de Aveiro
1. A adesão de Portugal às Comunidades Europeias
Completam-se hoje, 12 de junho, trinta anos sobre a data em que Portugal assinou, no Mosteiro dos Jerónimos, o seu Tratado de Adesão às, então, Comunidades Europeias. Poucas horas depois, em Madrid, repetir-se-ia o ato com a assinatura do Tratado de Adesão espanhol. Culminando oito anos de intensas e difíceis negociações, iniciadas em 1977 sob os auspícios do primeiro-ministro Mário Soares e do ministro dos negócios estrangeiros Medeiros Ferreira, naquele 12 de Junho de 1985 as Comunidades Europeias davam o primeiro passo para deixarem de ter 10 membros e passarem a constituir, a partir de 1 de janeiro seguinte, a “Europa dos doze”. Assim se manteria até 1995 quando os “doze” deram lugar aos “quinze”, com as adesões da Finlândia, Áustria e Suécia. Trinta anos depois impõe-se recordar o ambiente daquela Europa a que aderimos; e, em texto próximo, ensaiarmos uma avaliação ou balanço dessa aventura europeia nacional.
A primeira questão que importa recordar prende-se com o mito que escutámos durante muitos anos segundo o qual, com a adesão às Comunidades Europeias, Portugal havia “aderido à Europa”. Sempre questionámos essa afirmação, por simplista e incorreta. E, em trabalho académico publicado (“A cooperação europeia e Portugal, 1945-1986”, SPB Editora, Lisboa 1997), tivemos oportunidade de detalhar o erro da afirmação relembrando e recordando, de forma aprofundada, que desde o fim da segunda guerra mundial, pese embora o regime político vigente no país, Portugal esteve, quase sempre, presente e envolvido em todas as organizações europeias que se constituíram, nos mais diferentes domínios de atividade. As exceções foram, justamente, as Comunidades Europeias e o Conselho da Europa. Excluindo estas duas organizações, Portugal esteve nas restantes que se criaram na Europa ou a partir da Europa do pós segunda guerra mundial.
Foi assim, no domínio económico, com a OECE (que se viria a transformar em OCDE), criada para gerir os fundos transferidos dos EUA para a Europa ao abrigo do Plano Marshall, para fazer face à reconstrução europeia (e isto apesar de não termos tido envolvimento direto no conflito militar mundial) – num processo negocial, de resto, recheado de peripécias e movimentações diplomáticas curiosíssimas que permitiu que Portugal tivesse o estatuto de Estado fundador; foi assim, no domínio político-militar, com o Tratado de Washington ou do Atlântico Norte que instituiu a Aliança Atlântica (NATO), unindo os Estados da Europa ocidental aos EUA e ao Canadá, com o pretexto de defender o ocidente do perigo russo, e da qual Portugal foi também membro fundador; foi assim, no plano político-económico, com a EFTA – tentativa de resposta britânica à criação das Comunidades Europeias, de que o nosso país também foi fundador; e foi assim quando, em meados da década de cinquenta, Portugal foi admitido na ONU, a organização global feita à imagem dos vencedores da segunda guerra mundial. Fenece, assim, em absoluto, a ideia que durante muito tempo fez o seu caminho entre nós, segundo a qual, aderindo às Comunidades Europeias, tínhamos “aderido à Europa”. Não, não é verdade; além de já lá estarmos e integrarmos geograficamente essa Europa desde o nosso nascimento como Estado e Nação, já nela e nas suas principais organizações económicas, políticas e militares nos encontrávamos desde o fim da segunda guerra mundial e antes mesmo de aderirmos às Comunidades Europeias.
A segunda questão que importa realçar e recordar é que, tendo “apenas” passado trinta anos sobre o evento que evocamos, no plano histórico parece ter sido uma eternidade tantos e tais foram os acontecimentos que se sucederam, muitas vezes a uma velocidade vertiginosa; a ponto de, deles tendo sido testemunhas diretas, na maior parte dos casos não havermos assimilado totalmente a dimensão daquilo a que assistíamos.
Vivíamos, na altura, em pleno mundo caracterizado por uma ordem mundial estranha – que era o mundo saído da segunda guerra mundial ou, por simplificação de linguagem, o mundo da guerra-fria. Numa palavra, estava-se em pleno mundo bipolar. Eram dois os dois blocos estratégicos: o Ocidente e o Oriente; eram duas as superpotências existentes: os EUA e a URSS; eram duas as “Europas” politicamente relevantes: a “Europa Ocidental” e a “Europa Oriental”; eram duas as organizações de defesa preocupadas com o território europeu: a NATO e o Pacto de Varsóvia; eram duas as organizações económicas de feição europeia: a CEE e o COMECOM; eram duas as Alemanhas existentes: a República Federal da Alemanha e a República Democrática da Alemanha; e, finalmente e para cúmulo, eram duas as cidades de Berlim: Berlim ocidental e Berlim leste.
Quatro anos depois da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, “esta” Europa a que acabávamos de aderir desapareceu. Dentro e fora das Comunidades. Estas, encetaram o caminho da UEM e da união política – e surgiriam as CIG’s que estariam na origem do Tratado de Maastricht que instituiu a União Europeia e abriria caminho para a criação da moeda única europeia; fora das Comunidades, no plano geopolítico, tudo mudou – ruiu o Muro, reunificou-se a Alemanha, implodiu a URSS, dissolveram-se o COMECON e o Pacto de Varsóvia, multiplicaram-se os Estados e as nações no centro e no leste da Europa, renasceram os nacionalismos, abriu-se a porta ao alargamento, ad absurdum, da União Europeia. Estava, pois, criado o caldo de cultura suficiente e necessário para a Europa e o espírito europeu entrarem em crise, serem postos em causa na raiz da sua essência, anunciando períodos de crise que, sabemos hoje, não deixariam de fazer a sua aparição.
by João Pedro Simões Dias | Jun 2, 2015 | Diário de Aveiro
Foi preciso Loretta Lynch tomar posse, há cerca de um mês, como Secretária da Justiça dos Estados Unidos, para o mundo do futebol sofrer um dos maiores abalos que a sua história regista e quebrar-se, pela primeira vez, a sensação de impunidade que parecia cobrir as atuações dos principais dirigentes da sua estrutura de cúpula mundial. Duma assentada, e sem que nada o fizesse prever, foram detidos oito membros da direção da FIFA, acusados duma diversidade de crimes que incluem a corrupção, a fraude fiscal, o branqueamento de capitais, a burla, vários outros. Dum momento para o outro, o edifício do futebol mundial tremeu – mas, ainda assim, não ruiu. E apesar de o seu líder máximo se encontrar sob investigação policial na Suíça, impedido de abandonar o país, reelegeu-o para mais um mandato de quatro anos à frente da sua federação mundial. Federação que, em muitos domínios, a começar pelo económico e financeiro, se assemelha em muito a um verdadeiro Estado transnacional, alicerçado num poder tentacular, hegemónico, insindicável, não raro despótico.
O poder de que a FIFA tem beneficiado tem progredido na direta proporção da evolução do futebol de uma simples modalidade desportiva para uma indústria e um dos negócios mais relevantes do mundo, movimentando verbas e quantias cada vez mais incalculáveis, estendendo a sua influência a sectores cada vez mais amplos de um número cada vez maior de países e de Estados. Mais do que uma federação ou confederação desportiva, a FIFA é, hoje, uma das mais poderosas organizações internacionais que se movimentam à face do planeta, que beneficia do facto de atuar sem qualquer concorrência e que se dá ao luxo de, inclusivamente, beneficiar de um sistema jurídico próprio, chamando a si, em domínios cada vez mais extensos, a competência exclusiva para a regulação de um leque cada vez mais alargado de matérias. O seu poder é crescente, beneficiando da capacidade de regulamentar um fenómeno que, por natureza, é um fenómeno de massas – o futebol internacional. É a coberto do futebol internacional que gira toda uma poderosíssima máquina organizativa, burocrática, comercial que tanto cumpre a função desportiva que lhe está incumbida como se movimenta no mundo paralelo dos negócios internacionais chegando ao ponto de, não raro, forçar a mão e impor a sua vontade aos próprios Estados que incumbe de organizar as suas provas. Coordena e integra mais de 200 federações nacionais, estabelece protocolos de colaboração com entidades como a ONU ou a União Europeia, gere uma riqueza superior ao PIB de muitos Estados de pequena e média dimensão – e fá-lo, por regra, impunemente e sem prestar contas a quem quer que seja. Verdade se diga – beneficia da demissão e dos favores que muitos Estados lhe prestam e do temor reverencial que suscita em muitos governantes por esse mundo fora. Sobretudo nos Estados menos desenvolvidos e, por isso, mais atreitos e predispostos à traficância de interesses e à submissão colaborante com quem dispõe do acesso e do poder de financiar quem manda e quem governa.
Mas se as suspeitas e os rumores sobre a (i)legalidade das suas práticas e dos seus negócios não são de hoje nem de ontem, foi preciso que a suspeita tocasse solo norte-americano para soarem as campainhas de alerta e se desencadeassem os procedimentos de cooperação judicial internacional em matéria penal que culminaram com as detenções que se fizeram públicas a escassas quarenta e oito horas da FIFA reeleger Blatter para o seu quinto mandato consecutivo. Este, por seu turno, optou pelo eventual único caminho que lhe sobrava – avançando para a sua própria reeleição na convicção que o manto do cargo o possa proteger (ou retardar) as mais que prováveis acusações a que dificilmente escapará. É a típica fuga em frente de quem, por desespero, não consegue divisar caminho alternativo. O seu destino, porém, parece talhado – e não será feito nem de honra nem de glória. Se dúvidas houver, basta atentar no que foi declarado pelo dono do grupo Traffic (um verdadeiro império onde se contava a sociedade até há pouco tempo detentora da SAD do Estoril-Praia), o brasileiro José Hawilla, um dos envolvidos que aceitou colaborar com a justiça norte-americana na investigação sobre fraude, lavagem de dinheiro e corrupção nos últimos 24 anos, durante os quais, segundo as autoridades, foram pagos cerca de 140 milhões de euros em subornos.
É esta, infelizmente, a realidade de futebol internacional, na sua superestrututura dirigente, nos dias que correm. Uma realidade, infelizmente, percepcionada pelo grande público, ainda que não de forma absolutamente igual ou idêntica em todas as latitudes, mas que contribui, indelevelmente, para que o futebol seja hoje em dia uma modalidade que não escapa imune à suspeição da permeabilidade aos mais diferentes tipos de interesses e negócios. E que, em vários continentes – sobretudo em África e na Ásia – não é separada das próprias ligações promíscuas aos detentores dos diferentes poderes políticos instalados. Que manobra, que controla, que compra e de que chega a dispor. É, nessa medida, um agente que atua à escala planetária e que não é estranho ao próprio fenómeno político. Ou não tem sido estranha a esse fenómeno. Se dúvidas houver, basta atentar nas reações políticas que estas diligências judiciais motivaram – de Putin a Cameron, da França à Alemanha. Se a iniciativa judicial norte-americana contribuir para, pelo menos, ajudar a separar as águas entre estas duas dimensões, já terá valido a pena. Independentemente dos objetivos ou sucessos que consiga lograr no estrito âmbito da atividade da FIFA.