A pergunta d’O Diabo

“Acha que faz sentido alterar as regras da cobertura jornalística da campanha eleitoral das europeias?”
Aproxima-se mais uma campanha eleitoral e volta a discussão sobre as regras legais que presidem à cobertura mediática da mesma. Aquando da última campanha autárquica todos constataram que a lei vigente era impraticável. Passou meio ano, o problema estava identificado, mas ninguém deu o primeiro passo para o alterar. E cabia aos partidos que têm representação parlamentar, promover a alteração legal que se impunha. Objetivamente, não o fizeram. Não terá sido por falta de tempo nem por desconhecimento do problema. Resta a única resposta possível – o regime legal existente, tal qual está, beneficia-os e favorece-os. Pese embora as declarações em sentido contrário, quem domina o sistema é quem mais dele beneficia. Contribui para manter a regra de bronze do nosso sistema político-partidário, impedindo que novos partidos e movimentos ganhem visibilidade e possam chegar às sedes do poder político. Foi mais uma prova clara de uma tremenda falta de autenticidade entre o que se diz e o que se faz. Lamentável.

A crise, a cimeira e a falta

1. A cada dia que passa, os efeitos da crise internacional que nos afecta vão ganhando novos e, cada vez mais graves, contornos – o que deixa os próprios especialistas que têm por missão prever, na medida do possível, os seus desenvolvimentos, cada vez mais manietados e cientes da falibilidade das suas próprias previsões. Ainda há poucos dias soube-se que a recessão de mais de 6% da economia norte-americana no último trimestre de 2008 encarregou-se, praticamente, de reduzir a cinzas o plano económico e financeiro que a administração de Barack Obama havia negociado com o Congresso há menos de duas semanas! Entre nós, ainda o orçamento rectificativo para 2009 não foi publicado e já os novos dados da macro e da micro-economia o tornaram, em muitos aspectos, obsoleto – sobretudo pelo disparar da taxa de desemprego e dos últimos números que nesse domínio se conheceram. Há, assim, a profunda convicção de estarmos a viver um verdadeiro tempo único no plano económico e financeiro internacional com características em absoluto diferentes de todas as crises antecessoras, incluindo a dos finais dos anos 20 do século passado, aquela que mais frequentemente com esta aparece comparada. Ora, pese embora a enorme incerteza dos tempos que passam, uma garantia pode ser dada por adquirida e segura: Estado algum, individualmente considerado e por muito poder de que disponha, reúne condições para, por si só, lhe fazer frente. A uma crise económica e financeira de verdadeiros contornos internacionais, apenas a colaboração e a concertação entre os diferentes Estados pode aspirar a dar resposta. No plano europeu, no âmbito da Europa da União, o traço mais significativo dos tempos recentes tem sido caracterizado pelo quase completo e absoluto silêncio face ao progresso e às novas manifestações que têm sido reveladas pela economia internacional. Enquanto tal, a União Europeia e as suas instituições – com a Comissão Europeia à cabeça – têm denotado lamentável abstenção e preocupante falta de iniciativa para concertar as políticas dos diferentes Estados-Membros. Após a aprovação do «Plano Barroso», no Conselho Europeu do passado mês de Dezembro, escassearam as iniciativas dignas de menção no domínio do combate à grave crise internacional do tempo que passa. Pior que tudo – em paralelo com o silêncio institucional europeu, nos mais diversos quadrantes e nas mais diferentes latitudes, começaram a fazer-se ouvir os primeiros apelos de forte feição proteccionista como (alegado) remédio para combater a crise económica e financeira que ameaça volver-se em crise social.
2. Face ao silêncio institucional europeu, a presidência rotativa e de turno do Conselho Europeu convocou para o passado domingo uma cimeira informal da cúpula institucional europeia, ciente de que as ameaças proteccionistas que começavam a despontar na União, a par da quase absoluta descoordenação política para enfrentar a crise não se afiguravam como os caminhos ideais para estruturar a resposta que a Europa espera da sua União. Como seria de esperar, os resultados da cimeira não se farão sentir no imediato. Mas se a mesma tiver tido por efeito directo restringir as tendências proteccionistas que pareciam ressurgir e dar os primeiros passos para a concertação das políticas económica e financeira dos diferentes Estados, então o tempo despendido no almoço de Bruxelas não poderá ter sido dado por perdido.
3. Quem, antecipadamente, desvalorizou em absoluto a agenda de trabalhos da Cimeira extraordinária foi o Primeiro-Ministro José Sócrates. Optando por colocar os interesses partidários à frente dos interesses do Estado, optou por discursar no encerramento do Congresso do PS a representar o País na cimeira internacional. Nisso foi completamente original – nunca, até agora, um chefe de Estado ou de governo faltou a uma cimeira do Conselho Europeu, ordinária, extraordinária ou informal, por razões partidárias. As faltas que se registam na história dos Conselhos Europeus radicam sempre em motivos pessoais ou de Estado. Nunca em razões partidárias. E se havia Cimeira em que a presença portuguesa deveria ter sido confiada ao mais alto nível, teria sido esta. Justamente porque, tendo exercido – com sucesso – há bem pouco tempo a presidência do próprio Conselho Europeu, ao Primeiro-Ministro José Sócrates ter-se-ia exigido que tivesse erguido a sua voz contra a tendência do directório que se começa a desenhar na forma como a União Europeia pretende enfrentar a crise dos nossos dias. Tendência essa que teve a sua mais recente expressão na reunião, na Alemanha, há das semanas, dos 6 Estados da União que integram o G20 e que, em espírito de directório, pretenderam preparar a próxima Cimeira do grupo – ignorando em absoluto a posição dos demais Estados-Membros da União, numa quebra de solidariedade política que vai, por completo, ao arrepio do espírito que deve estar subjacente à própria União Europeia. O Primeiro-Ministro português teria, assim, uma oportunidade de excelência de utilizar o seu propalado peso político junto dos seus colegas de governo para protestar energicamente contra esta deriva institucional da própria União que, a manter-se, pode pôr em causa o próprio projecto europeu e a solidariedade que lhe deve estar subjacente. Infelizmente, em caso de colisão de agendas, preferiu as obrigações partidárias aos compromissos de Estado. Preferiu ser Secretário-Geral do PS a Primeiro-Ministro de Portugal. Em ano de eleições – europeias e legislativas – talvez não tenha feito a escolha mais assizada. Também por estas opções e por estas prioridades não deixará de ser julgado nas urnas.

O Plano Barroso

Não restam hoje quaisquer dúvidas sobre o carácter sistémico e global da crise económica e financeira que atingiu os mercados e as economias do mundo inteiro nesta segunda metade de 2008. Face à dimensão da crise, considerada por muitos já como mais grave que a célebre crise de 1929, seria de esperar que os remédios para lhe fazer face fossem buscados, predominantemente, num quadro de multilateralidade internacional que sentasse à volta de uma mesma mesa os dirigentes das principais econo­mias mundiais, das princi­pais organizações internacionais de cariz político-económico e todos os demais actores deste mundo globalizado que pudessem contribuir para encontrar as melhores soluções para fazer face a tão grave crise. A reali­dade, porém, encarregou-se de nos demonstrar algo de substancialmente diferente. Houve tentativas para encontrar res­postas multilaterais – mas das cimeiras conhecidas resultaram declarações pouco mais que inócuas, repositórios de boas intenções, de escassa e duvidosa utilidade prática. E, pelo contrário, a resposta tem sido, ainda, procurada isolada e individual­mente por cada Estado, recorrendo dentro do possível aos mecanismos que cada um ainda tem ao seu dispor. Aqui, baixam-se impostos; ali, aposta-se no investimento público; acolá dão-se avales estatais; além, nacionalizam-se bancos. A resposta sistémica, mul­tilateral, global e coe­rente – essa, continua por dar. A contradição resulta evidente – numa altura em que grande parte dos Estados, sobretudo os da Europa da União que integram a «euro zona», se encontram desprovidos de muitos instrumentos que lhes permitam actuar sobre a economia (por­que os transferiram para o BCE no quadro da criação da moeda comum europeia), são ainda as respostas individuais que são tentadas em lugar das respostas globais e coordenadas, de feição multilateral, que se impo­riam.
Na passada semana a Comissão Europeia – depois de muito criticada pelo silêncio a que se remetera face aos problemas emergentes e acusada de se deixar subalternizar pela presidência de turno exercida pelo Presidente Sarkozy – tentou inverter a situação e desenhou um esboço de resposta europeia às dificuldades que, sendo mundiais, não deixam de atingir a União Europeia de forma particular­mente vigorosa. Atendendo, porém, a que estamos em domínios onde as competências permanecem dos Esta­dos e não estão comunitarizadas, Durão Barroso e seus pares apenas tive­ram a possibilidade de dirigir uma comunicação ao Conselho Europeu onde elencaram um conjunto de medidas diversificadas, de diferente recorte e diversa natureza, cuja adopção foi sugerida aos Esta­dos-Mem­bros, e que no seu conjunto atingiam o valor global de 200 MM€ (dos quais, repare-se, apenas cerca de 30 MM€, cerca de 15% do valor total do Plano, sairiam do orçamento comunitário, cabendo o restante aos orça­mentos dos diferentes Estados-Membros). Se pensarmos que, só o governo portu­guês, por sua própria iniciativa, se responsabilizou por avali­zar empréstimos con­traídos no estrangeiro por bancos nacionais até ao montante de 20 MM€ (10% do valor total do Plano Barroso) teremos uma ideia precisa da escassa dimensão e reduzida ambição do Plano Barroso.
Aqui chegados, impõe-se uma reflexão que não pode deixar de ficar evi­denciada – e ela tem que ver, uma vez mais, com a quase completa ausência de meios e de mecanismos que permitam à organização euro­peia uma resposta eficaz e coerente a situações de emergência e grave crise económica e financeira. À semelhança do que acontece noutros domínios – e cite-se, a título meramente exemplificativo, as áreas da defesa, da segurança ou da política externa – as instituições comuns da União continuam desprovidas de meios e mecanismos que lhes permitam actuar de uma forma concertada e sistémica perante desafios e situações de emergência que possuam um alcance global. Nessas situações-limite, é ainda com respostas estaduais – e por isso não raro contraditórias entre si – que a Europa da União tem de lidar. Se há lição que esta crise económica e financeira global deve dar à própria União Europeia, é que também neste domínio o que há menos é integração europeia e que o que falta são mecanismos que lhe permitam actuar com mais competência e de uma forma mais expedita. Ficar à espera que crises globais sejam resolvi­das individual e isoladamente pelos Estados europeus é método que ainda não provou as suas vantagens.

Os desafios de Barack Obama

Numas eleições presidenciais que ultrapassaram, em muito, o seu significado estritamente nacional, os EUA votaram, o mundo escolheu e Barack Obama ganhou. Quando a generalidade dos balanços sobre os efeitos de tal vitória começam a surgir nos mais diferentes quadrantes políticos e de opinião pública e publicada, impõe-se reflectir sobre algumas das suas possíveis consequências e sobre as principais alterações que a nova política de Washington poderá vir a conhecer – circunscrevendo-nos, naturalmente, às questões de política externa porquanto é dessas que devemos curar, porquanto são essas que mais directamente nos podem afectar ou atingir, e por que para falar da política interna norte-americana confiemos que ainda chegam e bastam os próprios norte-americanos.
A primeira nota a merecer um registo especial parece ser a de que se as sondagens haviam indiciado um amplo, vasto e profundo movimento de mudança nos EUA, esse desejo teve tradução prática nos resultados eleitorais conhecidos. E, a crer na generalidade das análises que foram e vão sendo produzidas, estendeu-se também para além das fronteiras norte-americanas onde, tudo indica, Obama também teria ganho se tivesse ido a votos. Não foi a votos, não foi eleito, mas foi o escolhido, mas foi o preferido.
O segundo aspecto a reter é o de que – queira-se ou não, goste-se ou não – aparece associado à eleição de Obama um profundo sentimento de esperança. Esperança num mundo novo e melhor, num messianismo que é típico das épocas conturbadas como aquela em que vivemos. Obviamente que a prudência manda baixar as expectativas e dosear as aspirações, para que a desilusão não se venha a fazer sentir num imediato mais breve do que será normal. É que em política externa e no campo das relações internacionais as mudanças não são rupturas, as alterações não são revoluções e os efeitos das mudanças levam o seu tempo a fazerem-se sentir. Este é, porventura, um daqueles exemplos típicos em que, como ensina Adriano Moreira, o tempo acelerado em que vivemos não coincide com o tempo social das reformas. Não se esperem, pois, para amanhã, mudanças na política externa dos EUA, pois não será já no imediato que novos amanhãs cantarão.
Há, todavia, e isso parece inquestionável, a convicção de que se abre uma nova era nas relações internacionais – e que essa era será caracterizada, sobretudo, por um regresso dos EUA aos princípios do direito internacional e da multilateralidade, rompendo com as aventuras unilaterais da administração de George W. Bush que, em várias latitudes do globo (o Iraque é o caso mais paradigmático) conduziu os EUA para autênticos «becos sem saída» – sobretudo numa fase de acentuada crise económica e financeira mundial, em que só os princípios da cooperação multilateral podem ajudar a resolver os problemas emergentes.
Da mesma forma e por igual, parece adequado recuperarem-se os sonhos de abandono das tentações de criação de uma república imperial em que, com frequência, a administração norte-americana cessante pareceu cair – arrogando-se o direito de se assumir como polícia do mundo, mas um especial tipo de polícia, daqueles que, não raro, actuam à margem da própria legalidade e exercem a sua função sem mandato expresso e bastante que a tanto autorizasse.
Numa palavra – é indissociável desta eleição a expectativa de que os EUA saibam colocar a sua incomensurável superioridade tecnológica e militar ao serviço dos valores do ocidente, actuando com firmeza quando tal se impuser mas sempre dentro do quadro da legalidade internacional que é um princípio estruturante do legado político do ocidente de que os EUA são parte integrante mas que parece ter sido esquecido em momentos bem recentes da sua história. A participação na reforma de algumas das principais instituições internacionais – a começar pela ONU – será oportunidade de excelência para a afirmação desta nova postura.
E no que à Europa diz respeito? Por muito que isso possa custar a alguns, quem acompanhou as eleições norte-americanas e as principais propostas dos dois candidatos apercebeu-se de uma inevitabilidade: a Europa não está no topo das prioridades de Obama. Os motivos são vários e distintos – mas os EUA continuam a ser para a Europa muito mais relevantes em termos de política externa do que a Europa o é para os próprios EUA. Washington tenderá, seguramente, a focalizar as suas prioridades e as suas atenções noutras zonas do globo – no triângulo Afeganistão-Iraque-Irão, por motivos óbvios (a que se pode vir a juntar o Paquistão); nas economias emergentes mas fortemente dimensionadas da China (um dos principais credores da dívida externa dos EUA) e da Índia; e na região do Pacífico. Em termos estritamente europeus não parece arriscado supor que a tendência apontará para o fortalecimento de laços bilaterais com alguns dos principais Estados da Europa da União, desvalorizando esta enquanto tal – sobretudo enquanto as suas regras próprias não a dotarem da possibilidade de ter uma política externa coesa e coerente que lhe permita falar a uma só voz. Em síntese, se a União Europeia como tal se quiser fazer escutar pela nova administração de Washington, terá de previamente se reformar, de aprofundar a sua integração e dotar-se das instituições necessárias ao estatuto de parceiro de diálogo confiante e credível. Mas esse é o desafio da Europa.

O diretório europeu

O último Conselho Europeu reuniu sob auspícios da grave crise económica e financeira que perpassa praças e mercados cada vez mais globalizados e, por isso mesmo, cada vez mais sujeitos às mútuas e recíprocas influências que entre si se vão estabelecendo. Atendendo à gravidade da crise, talvez fosse difícil ser de outra forma; talvez fosse impossível não ser esse o tema dominante da Cimeira. Nesse plano, portanto, nenhuma novidade merece realce ou destaque.
O que, eventualmente, merecerá uma reflexão será o caminho percorrido pelos líderes europeus que antecedeu e preparou as deliberações adoptadas formalmente pelo Conselho Europeu. Recordemos esse caminho.
A 4 de Outubro, numa «mini-cimeira», os líderes dos quatro países europeus que integram o G8 – que continua a ser o verdadeiro centro do poder do mundo globalizado do pós-guerra-fria – Nicolas Sarkozy, Angela Merkel, Silvio Berlusconi e Gordon Brown, juntamente com Durão Barroso, reuniram em Paris e acordaram solicitar ao BEI 31,5 MM de euros para apoio às pequenas e médias empresas e às instituições bancárias europeias que mostrem dificuldade em suportar a crise mundial.
Uma semana depois, a 12, durante a cimeira dos Chefes de Estado ou de Governo dos Quinze países do euro – espécie de «Conselho Europeu do Euro» que Sarkozy convocou para reunir pela primeira vez na história – os governos de Portugal, Espanha, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Itália, Grécia, Irlanda, Áustria, Finlândia, Eslovénia, Malta e Chipre não só ratificaram o que fora decidido uma semana antes como assumiram o compromisso de garantir os novos empréstimos entre os bancos no seu território, de modo a desbloquear o mercado do crédito interbancário, através de garantias de Estado, sobre empréstimos contraídos até 31 de Dezembro de 2009 – compromisso acordado «a 15» devendo ser apresentado aos restantes 12 Estados-Membros da UE na Cimeira do Conselho Europeu.
Nesta, na Cimeira propriamente dita, o Conselho Europeu (i) consensualizou o alargamento aos 27 do acordo alcançado pelos 15 da zona euro no sentido de garantir os empréstimos intra-bancários e a recapitalização, se necessário, dos bancos comerciais – para além de (ii) chegar a acordo sobre a necessidade de uma reforma profunda no sistema financeiro mundial; (iii) proclamar a necessidade de uma cimeira internacional com a presença dos líderes de todas as grandes economias, incluindo as dos países emergentes, para debater a questão do sistema financeiro mundial; (vi) reafirmar os compromissos em matéria de política energética e climática, apesar das objecções levantadas por vários países devido aos custos dos mesmos numa altura de desaceleração económica; e (iv) adoptar formalmente o Pacto para a Imigração e Asilo.
Aqui chegados, e independentemente do mérito das deliberações adoptadas – que conseguiram transmitir a ideia de uma Europa concertada para encarar a crise mundial e que foram tributárias da acção precursora de Gordon Brown no Reino Unido – impossível será não concluir que o núcleo fundamental dessas mesmas deliberações acabou por ser fruto, em primeira e última instância, do que foi decidido pelas quatro grandes potências económicas da Europa da União, posteriormente confirmado pelo «Conselho Europeu do Euro» e, finalmente, comunicado e aceite aos restantes 12 Estados da UE. Foi, a todos os títulos, um processo decisório sui generis, em que as deliberações essenciais foram adoptadas por uma sucessão de círculos concêntricos e cada vez mais alargados e em cuja origem se encontra o directório das quatro grandes economias da UE.
É provável que, no cenário atual e face à gravidade da situação, não pudesse ter sido de outro modo e não tivesse sido possível outra metodologia. A questão que permanece em aberto, todavia, é a de saber se o método e o modelo adotados foram excecionais, em vista da excecionalidade da própria crise internacional, ou se, pelo contrário, vieram para ficar e não caminharemos a passos largos nesta Europa da União cada vez mais alargada e cada vez menos preparada institucionalmente para responder aos grandes desafios que o mundo lhe lança, para que o método agora seguido se transforme em procedimento-regra, reconstruindo velhas práticas de diretório que, quando observadas, nunca conduziram a Europa a tempos de felicidade. Ora, numa Europa cada vez mais à la carte – onde, fruto de sucessivos e mal preparados alargamentos, cada vez mais se registam várias velocidades de integração política e económica, sendo uns os Estados que aderem ao Euro, outros os que partilham Schengen, outros os que reclamam diferentes opting-outs e outros ainda, por exemplo, os que desejam reforçar a sua integração política e até mesmo militar – a resposta a esta questão permanece em aberto e por esclarecer. No entretanto a ameaça de uma Europa de diretório volta a assomar à porta dos europeus.

A caminho do reconhecimento do Kosovo

1. As movimentações político-diplomáticas – e até partidárias – que ocorreram nos últimos dias deixam antever que o governo estará prestes a reconhecer a independência do Kosovo – na esteira do que já aconteceu com a maioria dos Estados-Membros da UE. O que não significa, necessariamente, que seja a decisão mais correcta ou mais acertada. Impõe-se, portanto, uma reflexão mais alargada sobre o que verdadeiramente está em causa quando se aproxima mais um reconhecimento do Estado kosovar.
2. Comecemos pela questão jurídica. Independentemente do número de Estados ou da dimensão das correntes de opinião que sustentem o reconhecimento internacional do novo Estado, estimulado e incentivado pela administração norte-americana empenhada em provar que a sua luta contra o terrorismo islâmico não é uma luta contra o islamismo ou Estados islâmicos, ainda ninguém conseguiu provar ou demonstrar que esse reconhecimento, assente numa proclamação unilateral do que até à data era um território reconhecido como parte integrante de outro Estado, foi feito segundo as mais elementares regras do direito internacional público. E, nessa medida, dúvida alguma poderá subsistir quanto à ilegitimidade jurídica desse acto – desse acto que, recorde-se, ainda não foi reconhecido pela esmagadora maioria dos Estados das Nações Unidas, mas que pelos vistos o governo de Lisboa se prepara para reconhecer, alterando a posição cautelosa que Portugal vinha assumindo na matéria até este momento, sem que se perceba muito bem qual ou quais as razões ou os motivos que poderão determinar tal alteração.
Ora, à medida que cada novo Estado vai reconhecendo a situação juridicamente irregular que redundou na proclamação unilateral da independência do Kosovo, é um cada vez mais sério e grave precedente que se abre e se vai sedimentando na comunidade internacional – precedente tão mais sério e tão mais grave quanto, doravante, qualquer Estado que conheça problemas de minorias étnicas no seu seio não se poderá dizer livre de conhecer uma situação semelhante. Na Europa, da nossa vizinha Espanha (lembremo-nos do País Basco ou da própria Catalunha, cujo estatuto autonómico começa por proclamar que a Catalunha é uma nação….) ao longínquo Cáucaso (onde a recente crise entre a Geórgia e a Rússia regressada à sua ancestral vocação imperial a propósito das regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abkházia deveria ter servido de alerta suficiente para as lideranças ocidentais), passando pela região central e historicamente complexa dos Balcãs, poucos serão os Estados que se poderão considerar a salvo de idêntica ameaça à sua integridade territorial.
3. Algo de semelhante se passa no plano económico. É comummente aceite que a independência do Kosovo reconhecida e aceite pela comunidade internacional em nada contribuirá para a emergência de mais um Estado europeu viável na conturbada região dos Balcãs nem, tão pouco, contribuirá para acalmar e pacificar uma das regiões da Europa onde mais necessária é uma política de estabilização verdadeiramente assumida e desenvolvida por toda a União Europeia. Condenado a oscilar entre a condição de um protectorado da União Europeia ou um mero prolongamento da Albânia, as estatísticas não mentem e afirmam inequivocamente a inviabilidade do novo Estado, independentemente do número de declarações de reconhecimento de que tenha beneficiado. Em bom rigor, o novo Estado não é capaz, por si só, de afirmar e exercer as funções básicas de soberania que estão associadas ao próprio conceito de Estado. Serão poderes estrangeiros (leia-se – a Europa da União e os europeus) que pagarão a factura da independência, garantirão a integridade do território, armarão o exército e formarão a polícia, institucionalizarão os mecanismos de justiça, numa palavra, garantirão a viabilidade do novo Estado.
4. Analisemos, então, a vertente política do problema – aquela que se afigura mais complexa e mais controvertida. E comecemos por reconhecer que a questão kosovar assume contornos de especial gravidade para a Sérvia. Reconhecer o Kosovo, sobretudo tendo por base uma declaração unilateral de independência juridicamente inválida, significa, objectivamente, hostilizar Belgrado. E nesta fase talvez fosse mais prudente cativar a Sérvia para a causa europeia do que, hostilizando-a, empurrá-la para os braços abertos de uma Rússia desejosa de voltar a exercer a sua influência em regiões cada vez mais alargadas do continente europeu…. Se quisermos ter uma noção do que significa para a Sérvia a independência do Kosovo, admitamos o seguinte exemplo académico: imaginemos que uma qualquer comunidade estrangeira, etnicamente homogénea, vinha Europa-fora instalar-se na zona de Guimarães, berço da nossa nacionalidade e que, ao fim de alguns anos, baseada apenas da sua permanência nessa zona do território nacional e na sua homogeneidade étnica, proclamava ou reivindicava a independência unilateral desse território. Como nos sentiríamos? É assim que os sérvios se sentem e encaram a independência do Kosovo.
Mas este problema do Kosovo, reconheça-se, é em tudo fruto de uma errada política europeia que não soube lidar nem estava preparada para lidar com o derrube do muro de Berlim e a aspiração de muitos Estados do ex-leste europeu em acederam à sua verdadeira e plena independência. Uma das situações onde mais tragicamente essa falta de preparação europeia se revelou foi em todo o processo que conduziu ao desmantelamento da ex-Jugoslávia – com o papel liderante da Alemanha a reconhecer apressadamente novas Repúblicas saídas daquele desmantelamento. Num processo que, visto à distância, só pode envergonhar a Europa, a da União e a outra, porquanto se caracterizou por situações e conflitos dos mais fratricidas que o velho continente conheceu após a segunda guerra mundial, onde não faltaram guerras civis, genocídios e limpezas étnicas, levando à intervenção militar da NATO, sem mandato da ONU, que na altura poucos reclamaram, por se ter entendido que se impunha acabar com as permanentes violações dos direitos humanos por parte dos poderes e dos exércitos e milícias em confronto. Ora, a questão fundamental não se resolveu até hoje, nem é suposto que se resolva doravante, com a multiplicação de entidades políticas estaduais, incapazes de exercerem as competências que supostamente deveriam possuir.
A multiplicação dessas entidades políticas estaduais, numa região com a história dos Balcãs, em lugar de contribuir para a pacificação e a integração das diferentes comunidades que ali se foram formando e localizando, em vez de ajudar a resolver os múltiplos problemas que por ali ainda pairam, corre o risco sério de os potenciar e de reabrir feridas ancestrais que a prudência mandaria que fossem cicatrizadas em vez de reabertas.
4. Por tudo isto enfileirar agora no rol dos que apressadamente quiseram reconhecer o novo Estado kosovar – sem que situação alguma o reclame ou haja sido modificada nos tempos mais recentes e quando tal reconhecimento não foi efectuado no momento em que os Estados mais céleres se apressaram a fazê-lo logo após a respectiva declaração unilateral – não só não contribui politicamente para serenar os ânimos na região dos Balcãs como, sobretudo, pode ser interpretado como um sinal errado do caminho que deve ser seguido e trilhado pela União Europeia face àquela região do continente. Para além de demonstrar, uma vez mais, o quão longe a comunidade internacional ainda se encontra de possuir o estatuto de uma verdadeira comunidade de direito. Para tristeza de todos os que cultivam o direito internacional, acreditando nos seus mecanismos e nas suas regras, e para gáudio dos que não se cansam de proclamar que as relações internacionais continuam a ser, antes de tudo e apesar de tudo, relações de força e de poder.